Anchieta, pela primeira vez no ES - Por Guilherme Santos Neves
Era no começo de dezembro do ano de 1553. A população da Vila da Vitória acudiu curiosa à praínha junto ao mar, a ver aquela nau desarvorada, que mansamente entrava a pequena baía.
À frente da indiada e dos colonos, Bernardo Sanches de la Pimenta, (então dirigindo a Capitania, na ausência de Vasco Fernandes) e os padres Afonso Brás e Leonardo Nunes.
A velha nau fundeou a pouca distância. No seu velame descosido e rôto, no casco remendado em reparos recentes, na mastreação refeita de troncos ainda verdes, bem se podem ver os sinais da desapoderada tormenta que sofrera. Também no rosto macilento dos jesuítas que agora chegam a terra, em grupo, esquálidos e cansados, olhos fundos, faces maceradas, deixou vinco profundo o áspero naufrágio.
Nesse grupo soturno, atrás de todos, vem um mocinho, "estatura medíocre, côr trigueira, diminuto de carne"; sob a roupeta surrada nota-se-lhe a corcunda que o deforma: é o irmão José de Anchieta.
Abraçam-se aos pobres náufragos, os que esperam na praia; conduzem-no, amparados nos braços, até ao pequeno Seminário de meninos que Afonso Brás aqui erguera e fundara, no mesmo local onde, mais tarde, se levantará a Casa da Companhia, a Igreja de São Tiago, o atual Palácio do Governo. Aí crivam de perguntas, principalmente o padre Leonardo que anciosamente os esperava, pois tendo saído na mesma ocasião da Bahia, em outra nau, aqui chegara antes deles havia tempo.
O irmão José, a um canto, narra as peripécias da agitada e túrbida viagem: "Tendo eu e quatro irmãos saído da cidade do Salvador, depois de fazermos 240 milhas por um mar tranquilo à feição do vento, chegamos a uns bancos de areia que, estendendo-se para o mar na distância de 90 milhas, e oferecendo uma como muralha em linha reta, tornam difícil a navegação; aí deitando a cada passo a sonda, gastamos todo o dia e, fundeada a embarcação, pelo meio de estreitos canais entrincheirados por montes de areia, por onde se costumava navegar; no dia seguinte, porém, reunidos felizmente todos à tarde, os marinheiros, julgando-se já livres de perigo, tranquilizaram-se e não pensaram mais nele, quando, de repente, sem ninguém o esperar, o leme salta fora dos eixos e encalha o navio; sobrevém ao mesmo tempo uma repentina tempestade de vento e aguaceiro, que nos atira para apertados estreitos; o navio era arrastado sulcando areias e, por causa dos frequentes solavancos, temíamos que se fizesse todo em pedaços".
— E depois? — indagam curiosos os circunstantes, impressionados com a narrativa. Anchieta prossegue, após ligeira pausa: "... levados para um lugar baixo e inclinando-se a embarcação toda para um lado, lembramo-nos de implorar o socorro divino, expondo as relíquias dos Santos, que conosco trazíamos, e lançando às ondas um Agnus Dei, aplacou-se a tormenta; caímos em um pego mais fundo, onde, deitando-se a cada passo a âncora, e colocado o leme em seu lugar próprio com pequeno trabalho e grande admiração de todos nós, esperávamos ficar tranquilos até romper da aurora. Era um lugar fechado de todas as partes por cachopos e montículos de areia, e somente para o lado da proa havia uma estreita saída; quando, no entanto, se começava a descansar, eis que tudo se perturba na ameaçadora escuridão da noite, os ventos sopram com violência do Sul, caem imensos aguaceiros e, revolvido em todos os sentidos, o mar abalava violentamente a embarcação, a qual, já gasta pelo tempo, pouca resistência oferecia; aberta embaixo para as ondas, estava tudo coberto dágua; esgotava-se o porão em cima para as chuvas, quatro ou cinco vezes por hora e, para dizer a verdade, nunca se esvaziava; ninguém podia conservar-se a pé firme, mas andando de gatinhas, e para dizer corriam uns pelo tombadilho, outros cortavam os mastros, aqueloutros preparavam as cordas e amarras; neste comenos, a lancha, que estava atada à extremidade do navio, foi arrebatada pelo mar, partindo-se o cabo que a prendia; então começamos todos a tremer e a sentir veemente terror; via-se a morte diante dos olhos; toda a esperança de salvação estava posta em uma corda e, quebrada esta, a nave ia inevitàvelmente despedaçar-se nos baixios que a cercavam pela pôpa e pelos lados; corre-se à confissão: já não vinham cada um por sua vez, mas dois a dois e o mais depressa que cada qual podia. Em uma palavra, fora fastidioso contar tudo que se passou. Rompeu-se a amarra: "Está tudo acabado!" — gritaram todos. Todavia, no meio de tudo isso não deixávamos de confiar com toda a fé em Deus, se bem que cada um contasse com certeza morrer ali, e mais curasse de salvar a alma do que o corpo; confiávamos não só nas relíquias dos Santos, como também no patrocínio da Santíssima Virgem Maria, na véspera de cuja Apresentação tinham acontecido estas cousas". "Entretanto, não nos servindo das velas nem de auxílio algum humano, éramos levados sãos e salvos pelo meio dos escolhos, para onde a corrente nos arrebatava, esperando a todo o momento que se despedaçasse a embarcação, expostos à chuva, flagelados por tremenda tempestade, vendo a morte a cada instante, passamos aquela noite sem dormir. Ao romper do dia, recobrando algum alento, consertamos da melhor maneira as velas, e, procurando a terra, desejávamos encalhar o navio na praia; mas, levados por uma corrente mais favorável do que esperávamos, chegamos a um porto bastante seguro, habitado por índios, onde nos acolheram eles benignamemte, e nos trataram com humanidade". (1)
- Ora graças a Deus! esclamaram alguns. — Sim, graças a Deus! repete Anchieta. Deus ali nos levou com o seu poder e graça. E conta: "No dia seguinte ao da nossa arribada, visitando eu e alguns irmãos as habitações dos Indios, foi-nos apresentada uma criancinha quase prestes a expirar, e falando nós a seus pais para batizá-la, eles anuiram de boa mente a isso; batizâmo-la e algumas horas depois foi levada para céu. Feliz naufrágio que conseguiu tal resultado!" (2)
- Tem nome esse lugar? — indaga Bernardo Sanches.
Brás Lourenço responde: É a boca de um rio “que chamam das Caravelas". E prossegue: "Depois que o navio foi aparelhado, o qual se aparelhou com o despojo de outro navio que vinha conosco e que deu à costa e não se salvou mais que a gente alguma parte, da carga (enfim que andava Nosso Senhor conosco a trazer-nos o remédio de outras partes!), assim desta maneira nos embarcamos e viemos a este Espírito Santo..." (3)
Com esta narrativa de Anchieta e a do Padre Brás Lourenço — as quais poderiam incluir-se nas famosas relações de naufrágios das "Histórias trágico-marítimas" — bem se pode seguir, quase passo a passo, o roteiro de Anchieta, de Caravelas até o Espírito Santo, precisando-se, tanto quanto possível, o dia exato em que aqui pisou pela primeira vez.
Sabe-se, através da relação citada, que, no dia 20 de novembro de 1553 — véspera da Apresentação de Nossa Senhora — sofreram os jesuítas que se dirigiam da Bahia para São Vicente, o naufrágio já descrito. No dia seguinte, 21, estavam eles em Caravelas, aí permanecendo, para reparos da embarcação, oito dias, como informa Anchieta neste passo. "Ai demorâmo-nos oito dias por causa dos ventos contrários que reinavam" ( 4) . Depois, seguiram viagem até o Espírito Santo.
Diz o reverendo e culto Padre Hélio Abranches Viotti, S. J. (5) "De Caravelas devem ter saído entre 29 e 30 de no vembro, para estar assim na primeira quinzena de dezembro em Vitória".
Basílio Daemon também o diz, citando o mês de dezembro, mas sem referir a quinzena nem o dia. (6)
Vamos tentar apertar um pouco mais os pontos, reduzindo, a um ou a dois dias apenas, a dúvida que envolve a data em que pisou Anchieta a terra capixaba.
De Caravelas ao Espírito Santo, segundo Gabriel Soares de Souza (7), são sessenta léguas mais ou menos. Confirma-o Afonso Brás, em carta escrita do Espírito Santo, datada de 1551 (8) . Essas sessenta léguas correspondem aproximadamente a 180 milhas marítimas.
Ora, segundo informe que pedimos à cultura eminente de Luiz da Câmara Cascudo, (9) — outrora "as caravelas velejavam entre quatro e cinco milhas horárias, folgadas, na travessia para o Brasil. Por aí, descendo da Bahia para o Espirito Santo, com Anchieta a bordo, uma nau, nau da Companhia, veleira e leve, devia e podia fazer mais ajudada pelo empurro dos alísios amáveis como gente capixaba. Digamos, pois, cinco a seis milhas per hora".
Isto posto, as 180 milhas que distam, mais ou menos, de Caravelas a Vitória, podiam ter sido velejadas pela nau de São Vicente — aquela em que vinha Anchieta (ajudada pelo empurro dos alísios "amáveis como gente capixaba" — na expressão gentil de Câmara Cascudo) — gastando-se no percurso mais ou menos 36 horas.
Se assim foi – e nada impede que assim fosse – partindo aquela nau de Caravelas a 29 ou 30 de novembro de 1553, aqui estaria entrando a nossa barra na tarde do dia 1º ou na manhã do dia 2 de dezembro.
Foi esse o primeiro contato entre Anchieta e a terra capixaba, terra que ele abençoou com a sua presença, terra que ele cresceu com o seu ensinamento, terra que agasalhou, na morte, em 1597, seu macerado corpo — tão leve, tão leve.. , — bendita terra capixaba!
Notas — 1) "Cartas de Anchieta" Publicações da Academia Brasileira de Letras, (Rio, 1933 págs. 108/110)
2) Idem, pag . 110
3) Apud Padre Viotti, "A viagem de Anchieta em 1553 para São Vicente", in "Jornal do Brasil", 25.7.1953
4) "Cartas de Anchieta", pág . 110
5) Padre Viotti, estudo citado.
6) "Descoberta, História e Estatística da Província do Espírito Santo", Rio, 1879, p. 67.
7) "Tratado Descritivo do Brasil, 3a. ed. pags. 66/75
8) "Cartas avulsas", Publ. Academia Brasileira de Letras, 1931, p. 87
9) Carta particular, datada de 17-X-953
Fonte: Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo, 1961 - nº 21
Autor: Guilherme Santos Neves
Compilação: Walter de Aguiar Filho, março/2014
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