Aquele Braço de Mar - Por Mário Gurgel
Fomos ver, de bem longe, o espetáculo emocionante da draga, tirando do fundo das águas da baia a areia morna e escura, para jogá-la através dos tubos imensos e negros, na face do mar calmo, no trabalho surpreendente do novo aterro.
Fomos gravar, antes que desapareça para sempre, o retrato daquele pedaço de água verde e remançosa, que deu tanto trabalho, fortaleceu tanto pulso, consumiu tantas vidas, alimentou tantas bocas famintas, refrescou tantos corpos, transportou tantos olhares de amor e de ódio. Comandou tantas despedidas! Viu, sobretudo, tanto desperdício, tanta irresponsabilidade, assistiu a tantas transformações havidas nesta cidade, na história destas duas ilhas, de Vitoria e do Príncipe.
Alí já foi cemitério de navios. Agora vai haver, inicialmente, um imenso areal. Depois levantarão construções, passarão estradas, desfilarão automóveis, conduzindo desfiles políticos. Não se sabe que novo nome terá a Ilha do Príncipe, quando não for mais ilha. Primeiro ela foi um imenso deserto verde e pedregoso. Depois foi lazareto. Lembramo-nos de quando em 1926, mal chegados, passávamos no bonde da Central pela Vila Rubim rumo ao bairro de Santo Antônio. Víamos a professora seguir remando uma pequena canoa em demanda da Ilha.
Depois fomos morar lá, na época da construção do primeiro trecho de cais pela Societé de Construction du Port de Bahia. Ficamos alojados no mesmo e velho barracão, antes cooperativa, em que vivemos os longos e felizes trinta anos de nossa vida, ate que a política se apoderou dela. Nadamos naquele braço de mar. Tiramos dali, durante anos e anos, o alimento para a nossa fome nos dias amargos do desemprego de nosso pai, nos dias inesquecíveis de suas viagens intermináveis, velho cigano da vida, Luiz Gurgel, no destino irrequieto, andador infatigável, velha semente do Nordeste, morrendo e pensando em voltar ao longínquo Ceará, saudoso do Amazonas e das seringueiras amigas da sua mocidade.
Dali saíram mortos para os bravos dos pais, das noivas, dos amigos, vários companheiros da nossa vida. Nas águas verdes, as vezes pardacentas, muitos canoeiros ganharam o amargo pão de toda a sua vida, criaram os filhos, conduziram para a estação da estrada de ferro rapazes que fracassaram, mortos que venceram a batalha da existência, pais que deixaram para sempre as suas famílias e nunca mais retornaram ao calor sacrossanto dos iares. Terminado o futebol, de dia ou nas noites de lua cheia, era no seio quente da maré que íamos, a rapaziada de então, mergulhar e nadar, ou morrer. Todos os corpos ali desaparecidos, todos, invariavelmente todos, nos foram devolvidos pelo mar amigo. Nós os sepultamos no calor da terra e no dia seguinte íamos chorar o companheiro morto no banho costumeiro das madrugadas. No porto do mercado — aonde chegavam noite afora, madrugada alta, os produtos das rocas próximas, as cargas do Rio Santa Maria, do Rio Marinho, da Ilha das Caieiras, o peixe do Suá, os navios de mar largo — íamos sempre, para o copo de mingau da Cora Maria, na nossa infância. Nesse porto residiu a grande utilidade do braço de mar que o progresso vai sacrificar agora.
Os alunos de Dona Colatina Mascarenhas, de Dona Thereza Costa Labre, de Lucila Lamego Passos, Carmelita, sua irmã, Ludovica Salloker, Maria Santos Pereira de Souza, lone Serrat Diniz, Estelita Ramos, Lêda Simões de Lima Santos, e tantos outros alunos de tantas outras professoras tomaram ali os seus banhos de mar na hora criminosa das gazetas escolares, únicas alegrias que tiveram na sua vida de rapazes pobres. Lembramo-nos do levantamento de piso de cimento da grande ponte. Da passagem dos revolucionários mineiros na grande luta fracassada, na grande ilusão da nova República, tão apodrecida hoje, tão inutilmente alimentada nos seus estertores. Ali passou depois a primeira locomotiva. Por cima das águas. O engenheiro em cima do carro, na expectativa do desmoronamento da Ponte Florentino Avidos. Alí chegavam antigamente as regatas, ponto de chegada ou de saída. O Álvares Cabral e o Náutico Brasil, cuja sede primeira era um velho barracão de estuque e zinco, perto do pé de geriquitim, pros lados da casa de Dona Hermosa.
Alí haviam inscrito a nossa primeira propaganda política. Foi Bel magro, de Dona Jocelina, cuja geração de filhos ali nasceu e cresceu. Agora, os companheiros do passado, vivos e mortos, presentes e ausentes, do alto da Igreja branca ou de cima do Morro do Cabral, olhamos todos, nos nossos quarenta e tantos anos de amor a esta Ilha, olhamos a invasão das areias escuras, matando o nosso Braço de Mar.
Walter não trará mais o seu violão cheio de lágrimas nas cordas afinadas. Edgard não cantara mais as toadas que falavam da lua. Zé de Freitas, João Caneludo, Lauro Gibóia, Dé, Irênio, Bôto, Manoel Tavares, Dudú, Jerônimo, Antônio de Felix, Joáiz, o filho de Sapo Seco, Miss Bacalhau, Gaturamo, Mituca, Nelson, os Ximenes, tantos outros, não trarão mais os seus palpites e as suas toadas para o pedaço de água que vai morrer. Pedro Tenório, Luiz Coppi, Tião Coppi, Doroteu, Delegado, Otávio, Marcolino, Pedrinho, Firmino, Perete, Garage, Luiz Lustosa, todos, todos velhos capitães da velha guarda, todos ales olham sem compreender o ousado desafio das maquinas.
Agora, os novos correrão no areal. Passarão os trens e os automóveis. Falarão os políticos que vão surgindo. Adalberto Simão Nader, vitorioso, Presidente da Câmara Municipal, excelente rapaz. Outros virão. Mas nós, os que comeram produtos daquelas águas, que nelas sonhamos e choramos, que delas tiramos os nossos mortos, nos olhamos até com raiva, a marcha do progresso assassinando o nosso braço de mar ...
(O Diário de 17/01/61)
Sobre o autor no prefácio do livro:
Mário Gurgel
Em 1946, jornalista plumitivo de A Tribuna, gerenciada à época pelo saudoso poeta Antenor de Carvalho e dirigida por Pedro Lafayette, publiquei uma sensacionalista reportagem intitulada: "Ilha do Príncipe — onde reinam a miséria e a fome". Os aspectos negativos ali levantados não ficaram sem resposta. O amazonense Mário Gurgel, que a mão de Deus conduzira à Ilha do Príncipe, escreveu ao jornal extensa e lúcida carta, em que mostrava o quanto de "gente" havia naquele belo rincão de nossa terra. A carta foi publicada, na íntegra, e creio que foi o primeiro texto de Gurgel a ganhar letra de forma.
Depois nós o conhecemos na Academia Capixaba dos Novos, cujo "Concurso Anchieta" fora por ele vencido galhardamente. Lá, em memoráveis tertúlias, aprendemos — eu e os demais membros Orlando Cariello, Romulo Salles de Sá, Christiano Dias Lopes, Setembrino Pelissari, Durval Cardoso, Guilherme Sá, Nélio Espíndula — e tantos mais, aprendemos, dizia, a admirar seu estilo clássico, sua compostura, sua humildade, sua grandeza.
A vida nos afastou. Lembro-me quando ele se casou com Hely Mendes, nossa colega do DSP, uma extraordinária pessoa humana. Lembro quando ele, deputado estadual, em resposta a uma interpelação da 1° Dama, minha querida prima Maria, fundou a Casa do Menino, num galpão abandonado na cabeça das Cinco Pontes, que tantos serviços tem prestado nestes últimos 40 anos à infância desvalida de nossa ilha.
Acompanhei-o (eu no interior) como deputado estadual, Prefeito de Vitória, deputado federal cassado, e advogado na Capital.
Acompanhei-o, de longe, através da imprensa, em suas crônicas de O Diário que agora, graças à diligência do Jornalista Antonio Gurgel, seu filho, ganham a eternidade breve do livro.
Em todas, nota-se o lado humano que é o forte de MÁRIO GURGEL, o que é comprovado pelo prêmio internacional que mereceu em forma, "Gândi".
Uma coisa eu lamento: a não ser no breve tempo em que ele liderou aqui o MTR de Fernando Ferrari, sempre estivemos em lados adversos na política, mas isto nunca me impediu de admirar o grande capixaba de adoção que agora publica seu primeiro livro de crônicas.
Convidado para lançar aqui as famosas "duas palavras" de apresentação, sinto-me profundamente honrado em estar, quarenta e cinco anos depois, novamente junto com o grande e admirável MÁRIO GURGEL.
Renato José Costa Pacheco
Fonte: Crônicas de Vitória - 1991
Autor: Mário Gurgel
Compilação: Walter de Aguiar Filho, fevereiro/2019
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