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As lutas contra a discriminação racial - Por Cleber Maciel

Capa do Livro Negros no Espírito Santo - Autor: Cleber Maciel

É um fato incontestável que ao longo do século XX os negros, na maioria, continuaram muito pobres, enquanto os imigrantes europeus e seus descendentes foram melhorando suas vidas e prosperando até chegar às posições de comando político e social, partilhando o poder com as antigas elites dominantes. Para os negros ficava a expectativa de lutar pela modificação dessa realidade, compreender suas causas e, através de muito esforço, lutar por transformações que visassem à melhoria de suas condições sociais, econômicas e políticas de vida.

Nos estados brasileiros onde, por força da dinâmica econômica, alguns negros puderam ter melhores condições sociais de vida e organizar-se em torno de entidades de defesa dos seus interesses, como jornais, associações culturais, beneficentes e de lazer desde o final da escravidão, já eram comuns os projetos, denúncias e reivindicações contra os racistas brancos brasileiros e suas tentativas de implantar aqui regimes semelhantes aos da segregação racial norte-americana e do apartheid da África do Sul.

Desde o final do século XIX, no Rio de Janeiro, São Paulo e Bahia, por exemplo, grupos de negros organizados lutavam contra o racismo das classes dominantes, contra o desemprego, por melhores condições de vida para a população pobre, melhores salários, pelo respeito aos direitos de cidadania, contra a violência das forças policiais e contra os crimes, inclusive assassinatos impunes, cometidos regularmente contra os negros. Entretanto, a violência policial, a perseguição racista e a enganação dos politiqueiros fizeram com que muitas dessas organizações fossem destruídas e desarticuladas, com depredações dos jornais, prisões, torturas e pressões sobre os líderes.

Isso aconteceu, por exemplo, com os jornais paulistas “O Getulino”, “A Libertadora”, “Alvorada” e outros. O mesmo ocorreu com a quase totalidade das organizações “de defesa dos interesses dos homens de cor”. Da mesma forma, foi dissolvida a Frente Negra Brasileira, uma organização de caráter social e político que realizava um enorme e importante trabalho de conscientização de negros e brancos pobres em defesa de seus direitos e contra o racismo.

Enquanto aconteciam as atrocidades, ocorriam as perseguições, assassinavam e discriminavam os negros, os governantes brasileiros identificavam-se, perante os estrangeiros, como representantes de um povo branco, de tradições católicas e europeias, negando a origem indígena e negra, negando o povo não branco e toda sua grande contribuição física, econômica, social e cultural para a formação brasileira. Para esconder essa realidade, os governantes mentiam sobre os dados estatísticos e censitários, para fazer parecer que os brancos eram a maioria da população. Mentiam sobre a situação de vida dos índios e negros, dizendo que havia uma feliz e harmoniosa “democracia racial”, onde todos tinham as mesmas oportunidades e tratamento. Mentiam fazendo crer aos próprios negros que a “culpa” pela sua situação de miséria era deles mesmos, dizendo que, por causa da “preguiça e indolência própria dos índios e dos negros”, eles somente tinham dado à formação do povo brasileiro a “malandragem e o samba”. Além disso, os mentirosos governantes, apoiados por falsos cientistas racistas, acrescentavam que os europeus, principalmente italianos e alemães, eram raças superiores, símbolos do trabalho, da criação e da prosperidade nacional.

Mais grave ainda: os governantes racistas utilizavam os próprios negros como agentes da destruição física e cultural dos negros. Exemplos disso podem assim ser descritos: por um lado, os racistas brancos e seus teóricos elaboravam seus discursos incitando o ódio contra os negros e, como dominavam os meios de divulgação das ideias, passavam-nas para toda a população, chegando mesmo a convencer muitos negros de que ser negro era uma vergonha, sinônimo de preguiça, marginalidade e banditismo.

Dessa forma, não era de se estranhar que muitos negros tentassem esticar os cabelos para disfarçar sua negritude e tentar parecer com os brancos(90).

Por causa da propaganda racista, muitos negros foram levados a desprezar outros negros, afastando-os do seu convívio, buscando aproximação com os brancos, tentando, embora não podendo, mudar sua aparência, ser um “negro de alma branca” e procurando casar com pessoas brancas, mesmo que elas evitassem envolvimento com eles. Por outro lado, tendo os próprios negros sido convencidos de que ser negro era um malefício, tornava-se muito fácil para as autoridades racistas fazer com que a ação dos policiais fosse impiedosa e cruel no trato com os negros.

É curioso notar que, se durante a escravidão, muitos negros foram usados como capitães-do-mato, capatazes e carrascos torturadores dos seus “irmãos de cor”, depois de 1888 muitos negros passaram a ser utilizados como policiais para aterrorizar a assassinar muitos outros. A polícia era, em sua maioria, constituída nos escalões mais baixos por negros, pois ser soldado era uma boa opção de trabalho, embora ruim, e de salário pequeno. Isso além de possibilitar o exercício de certo poder, ainda que fosse o de ser violento.

Outro exemplo dessa situação era o fato de que, convencidos de que não eram inteligentes e capazes, os próprios negros dificilmente usavam seu direito de votar na tentativa de eleger um negro para um cargo político e ter um verdadeiro representante da raça no poder. Em outras palavras, os negros não votavam em pessoas negras e pobres, mas preferiam os politiqueiros ricos e enganadores, às vezes em troca de ninharias insignificantes. Por outro lado, quando muitos desses politiqueiros percebiam que algum negro tinha algum potencial de liderança popular, procuravam, através de pressões, corrupção, ameaças e assassinatos, impedir que ele fizesse carreira política independente e séria. No máximo, permitiam que ele fosse um “cabo eleitoral”. Aliás, era bastante comum que os politiqueiros tivessem “cabos eleitorais” negros, que faziam o trabalho sujo de pressionar, enganar e iludir as comunidades negras e, assim, conseguir votos para os “doutores” e “coronéis”.

Os racistas se deliciavam com essa situação e ainda diziam que os negros eram mesmo um mal, alegando como prova o fato de que a maior violência contra os negros partia deles mesmos. “Eles não se entendem, são desunidos e se odeiam”, diziam.

Foi nesse quadro que as décadas do século XX foram passando e o País sofrendo grandes transformações econômicas sem que os negros tivessem uma maior participação nos resultados das melhorias. Assim, os melhores salários e condições de vida, saúde e educação acabavam nas mãos dos antigos dominantes brancos e dos imigrantes e seus descendentes.

Apesar de tudo isso, o esforço, a dedicação, o trabalho e o sacrifício de muitos negros fizeram com que parcelas da população do País tivessem que reconhecer e dar o devido valor por suas realizações nas áreas esportivas e culturais. Foi então no campo dos esportes, da música, da criatividade artística e cultural que muitos negros foram abrindo espaços para si e para que os outros passassem a ser respeitados pela sociedade. Infelizmente, ainda são poucos os negros que conseguiram isso.

Nos anos 1940 e 1950, a agitação dos negros em lutas contra o racismo na América, Europa e própria África, nas lutas pela independência dos países africanos ainda dominados e explorados colonialmente pelos europeus, nas manifestações pan-africanistas e afro-americanistas e nas reivindicações de igualdade de direitos influenciou os membros da Organização das Nações Unidas a fazer um estudo no Brasil para verificar o que poderia ser aproveitado e levado ao resto do mundo da dita experiência brasileira de “democracia racial”. Assim, ao fim da década de 1940, chegaram ao Brasil cientistas sociais que iniciaram vários estudos. Para surpresa deles, os resultados revelaram algo que os negros já estavam cansados de saber: a “democracia racial” era uma farsa, a situação dos negros era péssima, o racismo brasileiro era muito forte, porém, dissimulado, disfarçado e, por isso mesmo, mais atuante e cruel. Os estudos revelaram também que não havia confrontos raciais porque a repressão era tão violenta que os negros “reconheciam o seu lugar” e não criavam muitos problemas. Com isso, parecia que no Brasil era tudo paz, harmonia e convivência fraterna entre as raças.

Diante desses fatos, muitos brancos não racistas e negros, conscientes da necessidade de lutar pela verdadeira democracia, animaram-se a ampliar a luta em defesa dos negros e contra o racismo. Foi assim que conseguiram, com o apoio dos cientistas da ONU que já conheciam a realidade, provar muitas das práticas racistas, pressionar o governo e fazer com que fosse aprovada, em 1951, a Lei Afonso Arinos, a primeira tentativa legal de punir as injustiças e abusos dos racistas.

Mas muita luta ainda havia pela frente.

 

NOTAS

(90) Maciel, 1988.

 

GOVERNO DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO

Governador

Paulo Cesar Hartung Gomes

Vice-governador

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Subsecretário de Gestão Administrativa

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Subsecretário de Cultura

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Cilmar Franceschetto

Diretor Técnico Administrativo

Augusto César Gobbi Fraga

Coordenação Editorial

Cilmar Franceschetto

Agostino Lazzaro

Apoio Técnico

Sergio Oliveira Dias

Editoração Eletrônica

Estúdio Zota

Impressão e Acabamento

GSA

 

Fonte: Negros no Espírito Santo / Cleber Maciel; organização por Osvaldo Martins de Oliveira. –2ª ed. – Vitória, (ES): Arquivo Público do Estado do Espírito Santo, 2016
Compilação: Walter de Aguiar Filho, janeiro/2022

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