Capitania do Espírito Santo, na segunda metade do século XVI
Muito importante para a História do Espírito Santo é um conjunto de documentos catalogado na Biblioteca Real da Ajuda de Lisboa, como “Do desembargo do Paço”, T.IV – Códice 44 XIV-6, que encontrei quando do uso de bolsa de estudo concedida pela Fundação Calouste Gulbenkian, em Portugal.
O documento inicia com o traslado da Carta de Doação da Capitania do Espírito Santo a Vasco Fernandes Coutinho, que, já bastante conhecida, dispensa maiores comentários.
A grande importância deste conjunto de documentos é contestar a informação errônea sobre o primeiro donatário do Espírito Santo, Vasco Fernandes Coutinho, que é apresentado em toda a historiografia brasileira como tendo morrido na indigência, esmolando quase. Mas, se Frei Vicente do Salvador exagerou na afirmativa inicial, seguida pelos demais historiadores até a atualidade, podemos apresentar razões que, calçadas nestes documentos, dão-nos uma visão diferente dos fatos.
Primeiramente, Vasco Fernandes Coutinho – pai – era o donatário, na época de sua morte, da Capitania do Espírito Santo, que legou a seu filho e que valia uma pequena fortuna.
Havia ele apenas renunciado ao cargo de Capitão-Mor, mas nunca o de Donatário. Ainda mais, seu filho, Vasco Fernandes Coutinho, possuía, como é apresentado em seu testamento, parte de um engenho em “Taquary”, próximo a Vitória, com plantações, gado e escravos. Era ele o único filho que sobreviveu ao pai, que aparentava, por citações em diversos documentos, ter grande amor filial, era homem de posses e não deixaria o pai, se fosse o caso, passar por privações como as contadas pela historiografia capixaba. Verdadeiramente, o primeiro donatário do Espírito Santo não se encontrava em boas condições de saúde e de finanças, mas ele ainda recebia os rendimentos a que tinha direito pela Carta de Doação e pelo Foral que recebera de D. João III, o que ajuda a comprovar sua não indigência.
Ainda importante é a solução final para a dúvida em torno do nome da esposa de Vasco Fernandes Coutinho (filho), que a historiografia apresenta ora como sendo D. Luiza Grimaldi, ora Grinaldi e ora Grinalda. Esta última forma é a encontrada nos documentos subsequentes que iremos apresentar.
Outra solução de valor para a história capixaba refere-se à data em que Vasco Fernandes Coutinho (filho) passou a governar a Capitania do Espírito Santo, que havia herdado de seu pai homônimo.
A data, que tradicionalmente se segue, é de 1563, quando na verdade apenas dez anos depois, em 1573, é que o herdeiro da Capitania tomou posse. A comprovação desta faz-se usando as datas dos documentos apresentados e a da elaboração do testamento, ato de vontade sempre realizado por “pessoas de bem”, que em viagens pelo oceano, ainda pouco conhecido e por terras distantes e incultas, era tomado por precaução para evitar problemas maiores à família e ao destino de seus haveres e bens.
Assim, antes de partir para o Espírito Santo, Vasco Fernandes Coutinho (filho), como era natural, fez seu testamento, que datado de Lisboa em 19 de abril de 1573, comprova a afirmação acima, ainda confirmada pelo desenrolar do processo em que ele moveu, para poder se apossar da Capitania do Espírito Santo.
Análise dos documentos
O longo e burocratizado processo para a obtenção da Provisão-Real destinada a colocar Vasco Fernandes Coutinho (filho) na posse de sua herança, iniciou-se com um Alvará-Real datado de Lisboa, 19 de novembro de 1567, cujo conteúdo essencial é o seguinte:
“Avendo respeito aos serviços de Vasco Fernandes Coutinho fidalgo de minha casa capitão da Villa do Spiritu Sancto nas partes do Brasil e avendo também respeito a me pedir dom Martinho Perejra ej por bem e me praz por elle possa nomear e nomee na dita capitania a Vasco Fernandes Coutinho seu filho sem embargo...”
Foi então reconhecido como herdeiro de seu pai, Vasco Fernandes Coutinho, mas o estafante processo, como era normal, continuou para a tomada de posse da Capitania do Espírito Santo.
Uma apostila a este Alvará foi feita por El-Rei em Almeirim a 10 de dezembro de 1568, reafirmando a validade do Alvará atrás descrito e ordenando que:
“...a pessoa que servir de capitão da dita capitania a não sirva mais e a entregue a Vasco Fernandes filho do dito Vasco Fernandes Coutinho e isto por lhe elle ter nomeado conforme o dito alvará e mando aos Juizes e Vereadores, e procuradores e pouvo da dita capitania que depois de Vasco Fernandes ter a posse della lhe obedeção em tudo e por tudo, e cumprão seus mandados como a seu capitão.”
Em outro documento deste processo, El-Rei, em Apostila reafirmou o direito do herdeiro, que, apesar de ser filho fora do matrimônio, foi considerado como tal, por não ter seu pai nenhum filho legítimo vivo e ainda declarou que:
“...a qual posse lhe seraa Dara por Mem de Saa do meu conselho e governador nas partes do Brasil estando na dita capitania e em sua ausência lhe Dara o ouvidor Della e os Juizes e vereadores da Villa do Spiritu Sancto...”
Mas El-Rei condicionou a posse da Capitania:
“E porem o dito Vasco Fernandes Coutinho não poderá jr aa dita Capitania, nem usar dela sem ser casado e levar provisão minha para isso...”
Esta provisão real foi datada de Almeirim, oito de janeiro de 1569 e, em resposta, Vasco Fernandes Coutinho (filho) declarou a 18 de janeiro de 1570 que:
“elle supplicante he já casado, e tem satisfeito aa provisão e mandado de V. A. e pode livremente jr tomar posse da dita capitania...”
Pediu então que El-Rei lhe passasse a provisão para tomar posse da Capitania.
Cumpridas as condições que El-Rei exigira, foi então passada a Provisão-Real para a tomada de posse da Capitania do Espírito Santo, pelo seu segundo donatário Vasco Fernandes Coutinho (filho).
Na Provisão-Real, declarou El-Rei que, por petição do herdeiro, mandava dar-lhe posse da Capitania, já que era casado e que o seu pai havia feito a nomeação, como herdeiro único, por não ter outro filho vivo.
Em seguida diz a Provisão-Real:
“...me apraz por elle Vasco Fernandes Coutinho ser nomeado na dita capitania como dito he e por ser casado se lhe dee a posse della e a sirva e use da tal capitania conforme ao alvará e appostillas acima declaradas e aa doação qual a tem seu pay.”
Em continuidade, ordenou ao Governador do Brasil que lhe desse posse da Capitania e que fosse logo, que a pessoa que servisse de capitão-mor no Espírito Santo entregasse sem dúvida, nem embargo, a Capitania e que os Juízes, Vereadores, Provedores, e Povo do Espírito Santo obedecessem seus mandados:
“...sob pena que fazendo o contrario, ou não lhe largando a capitania, e dilatando lhe a entrega della lhe pagarem todas as perdas e dannos que por isso receber e allem disso lhe mandarej dar a mais penna que ouver por meu serviço...”
Ao final desta Provisão-Real, para tomada de posse da Capitania do Espírito Santo, temos a data de Évora, 19 de janeiro de 1570, que é significativa para situar o início de seu governo, como donatário do Espírito Santo, em 1573, pois a nenhum donatário era permitida a posse de seus domínios sem antes ter recebido a Provisão-Real para tanto.
Logicamente, a data de 1563, até hoje atribuída como o início do governo do segundo donatário do Espírito Santo, é irreal.
Vasco Fernandes Coutinho (filho), tendo legalizado sua herança e possuindo a Provisão-Real para a posse na Capitania do Espírito Santo, iniciou as providências para embarcar para o Brasil e fez seu testamento, peça essencial para quem se arriscava a uma empreitada, onde a vida poderia ser perdida, tanto na viagem, como na nova terra.
Fonte: Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo. N 35, ano 1984
Autor: João Eurípedes Franklin Leal
Compilação: Walter de Aguiar Filho, janeiro/2013
O testamento confirma o ano de 1573 como o início do governo de Vasco Fernandes Coutinho (filho) e não a data tradicionalmente apontada, 1563, pela historiografia capixaba
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