Clube dos Democráticos e dos Fenianos
Os saraus, festas noturnas em casas particulares, clubes ou teatros em que se cantava, dançava e declamava, em que se ensaiavam passos de dança; em que se promoviam concertos musicais; em que escritores e poetas desfilavam sua tiradas literárias na presença de senhoras e senhoritas da sociedade; em que os galanteios eram traduzidos em novas poesias ou mesmo na reprodução das já conhecidas, sob luzes bruxuleantes de velas em candelabros ou lampiões e lanternas estrategicamente dispostos, com o acompanhamento de banjos, violinos, pianos, ou mesmo instrumentos de sopro aos poucos, a grande maioria em casas particulares e sempre noturnos, foram se arrefecendo. É que estavam cada vez mais difundidos por outras residências. Com os saraus se multiplicando, os grupos de frequentadores se dividindo e não comparecendo ao mesmo ambiente, literatos, poetas, cantores, músicos e todos os apreciadores desses encontros noturnos sentiram necessidade de colocar ordem nesses acontecimentos e dar mais ênfase aos grupos, juntando-os e apartando-os ao mesmo tempo. Despontaram assim os clubes sociais, as academias de letras e os centros literários. Estes últimos, voltados para a poesia e literatura, passaram a ter o seu ambiente mais fechado, mais raro em casas particulares e mais intenso nas casas literárias, elitistas. Outros, mais boêmios e mais cantores tinham encontros em botequins e em reservados de bar, onde muitas das composições do cancioneiro popular surgiram e ainda surge, a frente de uma garrafa, de um copo, de um cálice de bebida, da fumaça dos cigarros impregnando o ambiente, ao ritmo de um tamborilar sobre a mesa ou no bater de uma caixa de fósforos, e às vezes na presença de um violão. Se músico e não muito letrista, o poeta que o assiste e o acompanha em parceria aguçando os ouvidos, à falta de um caderno escreve num guardanapo ou papel de embrulho a cetra da canção que vai sendo dedilhada. Os apreciadores das artes assim afastados, não menos poetas, não menos músicos e não menos literatos e mais público, sentiram a necessidade de permanecer reunidos para os bate-papos, para o carteado, para outros jogos, esportes, para bebericar ou ouvir música, dançar e cantar. Para não se afastarem dessas manifestações culturais e sociais fundaram os clubes sociais ecléticos. Ao invés de irem até os artistas, fizeram com que estes viessem até eles, sentindo, prestigiando e aplaudindo-os nas apresentações. Reuniram o útil ao agradável, o cultural ao social.
Dentro desse panorama surgiram os clubes de Vila Velha. Armaram-se os quadros sociais com as suas diretorias, congregaram-se as famílias, aprovaram-se os estatutos, selecionaram-se os seus participantes, estabeleceram-se contribuições e instituiu-se um ambiente eminentemente familiar e com ele a oportunidade de apresentar a mulher à sociedade, tirando-a da redoma e da submissão.
Democráticos e Fenianos
Esse clima foi propício ao surgimento dos primeiros clubes sociais na década de 20 em Vila Velha, envolvendo os nomes de Miguelzinho Aguiar, Alvino Simões, Nico Araújo, Diociésio Gonçalves Lima, Duarte Carino de Freitas, Clementino Barcellos, Saturnino Rangel Mauro, Lúcio Bacelar, Pedro Silva, Jair Amorim e tantos outros membros de tradicionais famílias canelas-verde.
Essas pessoas contribuíram para a criação de dois clubes importantes que marcaram época e proporcionaram muita animação e lazer a Vila Velha. O Clube dos Democráticos teve como primeiro presidente Miguelzinho Aguiar, escolhido dentre os fundadores, cujos nomes já foram citados. Pode-se dizer que o segundo clube surgiu em decorrência do confronto dos palpiteiros e festeiros freqüentando o mesmo ambiente. O espaço entre essas pessoas voluntariosas foi se estreitando e com esse estreitamento foram surgindo os inevitáveis atritos. A melhor solução para por fim a esse enfrentamento e ao desgaste causado pelos conflitos, mesmo em surdina, foi a ala sem voz criar o seu próprio ambiente de mando. Foi assim que surgiu o Clube dos Fenianos, fundado e presidido por Clementino Barcellos, um dos importantes festeiros da cidade, tendo como próceres importantes Lúcio Bacelar, Pedro Silva e mais tarde Saturnino Rangel Mauro.
Se as festas em Vila Velha com um só clube eram animadas, com dois passaram a ser animadíssimas. Cada qual queria fazer o melhor. Quem tirou vantagens disso foi a sociedade local, da mesma forma que as instituições religiosas que tiravam partido das promoções de eventos para angariar fundos destinados aos menos favorecidos ou em prol da Igreja Matriz de Nossa Senhora do Rosário, para sua conservação ou aquisição de artigos religiosos.
O Clube dos Democráticos era representado pelas cores vermelha e branca, enquanto os Fenianos pelo azul e branco. No Carnaval as fantasias dos membros de cada clube seguiam essa determinação fossem quais fossem elas. Era durante esse período que as rivalidades entre eles se tornavam mais acesas. A ornamentação dos salões dos dois clubes realizava-se dias antes do Carnaval, a portas fechadas, sem que com isso se conseguisse impedir a espionagem de ambos os lados.
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O Clube dos Democráticos localizava-se a Rua Vasco Coutinho, mais precisamente no térreo do Hotel do João Nava, [¹] hoje reformado e com outra denominação. A entrada era pela lateral esquerda desse prédio, utilizando-se dois degraus para se ultrapassar os umbrais da porta até as suas dependências. Essas laterais tanto a da esquerda como a da direita eram guarnecidas de grandes janelas que se abriam em bandas para fora e que tinham vidros brancos encaixados nas suas quadrículas acima das venezianas. Na parte superior, um retângulo de madeira fixa, dividido ao meio também deixava entrar claridade nos vidros ali embutidos. De frente para Rua e a mais de meio metro do chão três portas se abriam para dentro do salão, sendo os vãos tomados por pequenas pilastras cilíndricas bojudas no seu meio e estreitando-se para cima e para baixo. Nas suas extremidades voltavam a engrossar dois pequenos cilindros sobrepondo-se a uma diminuta distância uns sobre os outros e terminando em finos polígonos quadrados em ambas as extremidades. Os de cima recebiam os parapeitos e os de baixo, como bases apoiavam-se nas soleiras das portas. Pelo visto as portas serviam apenas para ventilação, proporcionando à “turma do sereno” a oportunidade de apreciar os acontecimentos do salão de festas por cima dos parapeitos ou entre os claros das pilastras.
No Clube dos Fenianos, localizado a Rua Vinte e Três de Maio, paralela à Rua Vasco Coutinho, acontecia à mesma coisa. Apesar de não ser a localização do clube tão boa quanto à dos Democráticos, proporcionava um espaço apropriado às festas juninas, contando o clube com área aberta para montar suas fogueiras e arraiais.
Dentre as senhoras que promoviam festas estão Maria Valladares (dona Marquinha), Francisca Queiroz Caldeira (dona Chiquinha) – tia de Milton Caldeira -, Cici Guimarães, Nenê Dutra – mãe de José Carlos Dutra -, Nenê Barcellos – esposa de Clementino Barcellos – Francelina Carneiro Setúbal – nossa mãe -, Ana Elvira Queiroz de Souza (dona Ziza) – mãe de José Maceira (Dé) e João -, Izaltina Fernandes e tantas outras, a maioria pertencente à Irmandade do Coração de Jesus.
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Certa ocasião a Igreja de Nossa Senhora do Rosário precisou fazer algumas reformas e adquirir objetos sacros, mas não tinha recursos para isso. Reunida a Irmandade, decidiu-se promover uma festa beneficente, convocando-se para isso os dirigentes do Clube dos Democráticos. Estes, atendendo ao apelo e ouvindo as moças da sociedade local, julgaram conveniente a realização de um baile, revertendo-se a arrecadação para as obras da Igreja. Com isso, além de prestar relevante serviço aquela Igreja, o clube se promoveria angariando a simpatia do público e dos associados. Mas qual seria o tema desse baile (interrogação). Não tardou que da discussão surgisse a ideia de chamá-lo de Baile Vermelho, a que todas as moças e senhoras deveriam comparecer vestidas de vermelho. Não custa lembrar que as cores do clube eram o vermelho e branco, e que para os dirigentes o título se encaixava como uma luva. Ficou também decidido que nos ingressos constaria a obrigatoriedade da cor entre as senhoras e senhoritas. Tudo esquematizado, o sucesso parecia certo, mas para que isso se concretizasse era necessário que se procedesse urgentemente à venda dos ingressos, e na maior quantidade possível.
A Irmandade do Coração de Jesus, marcado o dia do baile, passou a vender os ingressos. Associados, simpatizante do clube e religiosos, todos deram sua parcela de contribuição, ajudando na venda. As moças, destas então nem se fala. Estabeleceram entre si uma competição para ver quem vendia maior número de ingressos. As “Meninas do Cantinho”, como chamou Atyla de Freitas Lima, numa de suas crônicas publicadas no Jornal da Cidade, no ano de 1987, às moradoras da Rua São Bento, na Prainha, que eram as irmãs Zilda, Lourdes, e Rosélia Caldeira mais as filhas de dona Neném - Leonor, Nair e Olga -, puseram mãos a obra. Outras moças não menos animadas e prestativas, residentes em vários pontos de Vila Velha, fizeram o mesmo, entre elas Marina Barcellos, Euclídia, Edina, Titila, Lotinha, as irmãs Mariana e Nely Queiroz, Soemis Valladares, Oraíde Freitas Lima, Glorinha e tantas outras que, como elas revolucionaram os eventos da cidade na década de 30.
Nessa competição venceu a Zilda, ou melhor, Zelina Caldeira, nome de batismo. Ela nos narrou os acontecimentos que precederam o baile. Muito simpática e esperta, tirou partido de um flerte que mantinha com um turco comerciante de Vitória de nome Tuffy, muito bem relacionado na capital. Convidando-o para o Baile Vermelho deixou sob sua responsabilidade algumas dezenas de convites para serem vendidos. Interessado numa maior aproximação que teria de Zilda – ele mais interessado nela do que ela nele -, comprometeu-se em tentar vender outro tanto se fosse do desejo dela, no que foi dispensado com os agradecimentos da sua eleita.
As outras competidoras, por mais que se esforçassem, não conseguiram superá-la. Quem lucrou com a saudável disputa foram a Igreja, o Clube dos Democráticos e a sociedade local, que contaram com a realização de um marcante, chique e concorrido baile. A Igreja com os recursos amealhados procedeu à reforma, descobrindo mais um filão para atender as suas necessidades. Volta e meia ora se socorria do Clube dos Democráticos, ora do Clube dos Fenianos, ambos sempre solícitos.
Nota [¹]: Antes, em 1917, o hotel “João Nava” abrigou provisoriamente as tropas recém chegadas do 50º BC. Da mesma forma, o comando e a oficialidade instalavam-se em casas alugadas nas vizinhanças dessa hospedaria. O quartel, com os seus alojamentos e outras dependências, estava sendo construído em Piratininga, às faldas dos morros do Convento da Penha e da Ucharia, beirando o braço de mar da entrada da baía de Vitória pelo lado norte.
Texto extraído do Livro “Ecos de Vila Velha” do autor José Anchieta de Setúbal – 08-02-2013
Contribuição: Ana Cléria Barcellos de Setúbal (filha do autor do livro)
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