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Depois de Carlos – Por D. Maria Lindenberg

O domingo de 19 de agosto de 1990 deveria ser igual a qualquer outro. Carlos e eu acordamos bem dispostos, combinamos com Bio e Raul nosso almoço de sempre, falamos ao telefone com Carlos Fernando, lemos a Gazeta e conversamos as miudezas comuns entre os casais. Nada prenunciava o desastre. Nada havia de diferente. Nenhum aviso. Nenhum sintoma. Nós estávamos alegres. Fizemos planos. Aquele nos parecia apenas mais um domingo agradável, um rotineiro primeiro dia de uma outra semana de nossas vidas ordenadas e felizes. O almoço no Lareira Portuguesa foi sem sustos. Comemos bem, rimos e discutimos os fatos e as notícias. Voltamos a pé para casa, Carlos e eu, na frente, Bio e Raul, logo atrás. A meio caminho, Bio e Carlos trocaram de lugar, e os dois homens nos seguiram a poucos metros. De repente, ouvimos um grito; o grito que anunciou não ser aquele um domingo igual aos outros. Voltei-me, julgando que algo acontecera a Raul. Enganei-me. Carlos estava caído na rua. Corri até ele, e um passante nos ajudou a levá-lo para a calçada. Seus olhos olharam os meus com ternura, mas seus lábios permaneceram mudos. Ele não podia falar. Nunca mais pode. Transportado para o Hospital Santa Rita, o AVC agressor seguiu o seu curso, e Carlos, seu prisioneiro impotente, passou da consciência à inconsciência, até que, cinco meses depois, em janeiro, os médicos nos aconselharam a levá-lo para casa porque o seu estado era irreversível. Durante toda a sua provação, ele teve a companhia de alguém da família. Jamais ficou sozinho. Sempre esperançosa, eu tomava de sua mão e sussurrava as trivialidades de antes, desejando que minhas palavras o alcançassem.

O quarto de Quetinha em nosso apartamento foi transformado em uma extensão do hospital com todos os aparelhos que Carlos pudesse vir a precisar. Não houve tempo de usá-los. A 6 de janeiro, Dia de Reis, ele faleceu, exatamente no mesmo dia em que um choque anafilático, causado por uma transfusão de sangue do tipo errado, nos roubara Lourdica, vinte anos antes. Mera coincidência?

Vê-lo partir foi um sofrimento imensurável e pensei não poder suportar a sua ausência. Um psiquiatra, a família e as amigas se encarregaram de atenuar o pesadelo. Até hoje, o remédio receitado me faz dormir, e as companhias me desviam das lembranças doídas. As recordações de nós dois nunca me abandonam e garantem a sua presença; Carlos está sempre comigo.

Em fins de abril do mesmo ano, Carlos Fernando me convidou para ocupar o lugar de presidente da Gazeta exercido antes pelo pai. Foi como um renascer. É um cargo honorífico ao qual me dedico com o que tenho de melhor. Carlos Fernando percebeu que aquele era o caminho mais curto para me reintegrar à vida.

Eu adoro meu filho. Ele é um homem muito inteligente e dinâmico; prestativo e de uma seriedade absoluta. Um ser humano de primeira qualidade. Seu caráter é claro como os seus olhos. Quando me consulta a respeito da Gazeta ou da Fazenda Três Marias, respondo que as suas decisões têm a minha concordância. Benquisto e respeitado, ele tem uma legião de amigos e possui a capacidade de conservar as velhas amizades. Seu lado boêmio aflora aos sábados, quando reúne em casa um grupo amante de música. São médicos, advogados, professores e jornalistas, que passam o dia tocando e cantando.

Carlos Fernando adora seus filhos e netos e mantém um ótimo relacionamento com sua ex-mulher, Maria Alice, uma pessoa de muitos méritos, apreciada por todos os Lindenberg.

Meus dias são rotineiros, mas, de modo algum, monótonos. Acordo cedo e vou para a Gazeta, onde permaneço até às 11h e 30min. Carlos não trabalhava pela manhã, e eu prefiro fazer o oposto para não evocar recordações doídas. Ocupar-me nesse horário é bem melhor do que ficar em casa de mão no queixo. Volto para almoçar e, depois de assistir ao noticiário na TV, estou pronta para começar minhas atividades da semana. Cada tarde é destinada a afazeres diferentes.

Segunda-feira é sem compromisso fixo: uma tarde livre para satisfazer minhas vontades como a de fazer compras, por exemplo. Desde minha volta de Brasília, reservo as terças-feiras ao ambulatório da igreja Santa Rita de Cássia, Ambulatório Hildo Garcia, em homenagem ao médico aposentado que resolveu clinicar de graça para os necessitados. Jacy vai comigo, e eu a apanho sempre às 13h e 45. Minha função é a de assistente do médico; a dela é a de distribuir remédios junto com Jaçanã, Fátima e Neide. Terminadas as consultas, o doutor se retira, mas nós continuamos a trabalhar. Eu atualizo as fichas das clientes e, se necessário, ajudo na entrega dos medicamentos.

Prestamos serviço no ambulatório há quase trinta anos e sempre com o mesmo entusiasmo. Às 15 horas, preparo um cafezinho com fama de muito bom. Cafezinho acompanhado de biscoitos e conversa.

Quarta-leira é o dia do joguinho, dia do biriba. Jogamos em casa e fazemos um revezamento. Como somos em quatro — Lela, Firmiana, Beatriz e eu — cada uma abre os salões uma vez por mês. Não apostamos dinheiro, não discutimos e nem brigamos; só fazemos as usuais recriminações inócuas: "Você não prestou atenção ao meu descarte" ou "também, com tantos coringas". Nosso biriba é sempre seguido de um delicioso chá com tortas e bolos. Cada anfitriã procura surpreender suas parceiras com receitas mais saborosas do que as servidas no mês anterior.

Nas quintas-feiras, torno a pegar Jacy e vamos para o trabalho de costura. É o dia da agulha. Tudo o que fazemos durante o ano é vendido em nosso bazar de dezembro, quando vestimos uma camiseta com a frase Operária de Santa Rita.

As sextas-feiras são dedicadas aos bisnetos. São eles que escolhem aonde, e o nosso destino já foi o Parque Moscoso, a Pedra da Cebola, Parque da Vale e outros, mas agora é sempre o mesmo: o shopping. Acho que essas tardes têm mais horas do que as outras e, antes que terminem, meu ego se extingue, e minhas pernas se arrastam enquanto procuro a saída daquele labirinto de lojas. Alegro-me ao vê-Ia. Nosso carro serpenteia rápido pelas ruas. Seguimos quase calados, pois, como expliquei, as tardes de sexta-feira, depois de vinte anos, já as sinto longas e cansativas. É praticamente noite quando devolvo as crianças. Trocamos beijos e damos adeus. O trajeto até minha casa é curto, e eu relaxo feliz na maciez do banco traseiro do automóvel. Ana me espera com o lanche; ligo a televisão e mergulho nos noticiários e folhetins. É bem tarde quando troco minha poltrona pelo quarto de dormir. Ando seriamente pensando em reinventar as minhas sextas-feiras, pois, afinal, serão noventa e um anos em 2008. Uma bisa dessa idade tem bastante experiência para encontrar um passatempo menos fatigante. Talvez pipocas, refrigerantes e filmes de aventura; aventuras que agitem a nossa respiração, mas que nos deixem as pernas sossegadas.

Sábado, acordo tarde para me refazer da sexta; é o meu dia de preguiça, dia de ficar em casa e de receber Maria Alice Pessoa para aperitivos e almoço. O sábado é calmo. É muito gostoso.

A semana passa voando e, no domingo, saio para almoçar com Carlos Fernando e Lena, uma amiga querida. Vamos a um restaurante e jogamos conversa fora. É uma tarde alegre.

Meus amigos dizem que, para saber onde estou em um determinado dia e hora, basta consultar a folinha. É verdade.

Vivo uma vida tranquila e prazerosa. Credito os muitos amigos que conservo ao meu bom gênio e à minha afabilidade. Tenho o hábito de sempre procurar ver o lado bom das pessoas e dos fatos; sou alegre e, em geral, não guardo ressentimentos. Acredito no que me dizem e quero que as minhas palavras sejam aceitas no seu exato sentido. Graças a Deus, meu dia-a-dia é bastante confortável. Não tenho problemas financeiros e não desejo mais do que possuo. Aprecio a simplicidade, detesto usar de influência e considero a ostentação uma pobreza de espírito.

Sou uma pessoa religiosa e espero alcançar a salvação eterna. Será presunção? Se for, essa imodéstia seguramente encabeça a lista dos meus pecados. Nasci católica e sou temente a Deus. Sigo as determinações da Igreja e não questiono os dogmas que não compreendo, porque creio que a palavra do Senhor é a Verdade. Rezo o terço, de joelhos, todos os dias, por sacrifício. Faço-o em louvor a Virgem Maria porque ela assim nos pediu. Nada suplico em meu próprio benefício, pois ele sabe do que preciso e o que mereço. Sempre agradeço. Minha oração favorita termina assim:

“Senhor, tende compaixão dos que ora agonizam nos campos de batalha, tende compaixão dos que, abandonados, sem arrimo, se debatem na miséria e na orfandade; sede o bálsamo dos feridos, a luz dos moribundos, a consolação dos infelizes. Reprimi, senhor, o orgulho dos homens, restituindo-lhes o benefício da Paz”.

Como qualquer pessoa normal, tenho idiossincrasias grandes e pequenas. Uma delas é o santinho com o retrato do falecido, distribuído após a missa de sétimo dia. Não sei o que fazer com aqueles que recebo. Jogá-los fora me parece um desrespeito; esquecê-los dentro da gaveta, uma desconsideração. Um dilema para o qual ainda não descobri uma saída confortável.

Minha lista de defeitos deve ser grande, porém a bisbilhotice não faz parte dela. Não sinto aquele desejo irreprimível de conhecer os segredos alheios e penso que a privacidade é um direito a ser respeitado. Depois da morte de Carlos, fui arrumar suas pastas. Uma tinha cartas que lhe escrevi através dos anos. Li algumas e me comovi. Em uma outra, encontrei as cartas de Nietta, guardadas por décadas. Colado na capa havia um bilhete “Para serem queimadas depois da minha morte”. Não as li e também me comovi. Queimei-as.

 

Coordenação geral e pesquisa: Nietta Lindenberg Monte
Texto: Lia Neiva
Transcrição de fitas: Líris Ramos
Projeto e Edição Gráfica: Sandra Medeiros
Editoração Eletrônica: Shan, Gustavo Senna e Renata Machado
Fotos: Arquivo de família
Tratamento das fotos: Luiz Fernando Martinho
Fonte: Parabéns pra você – texto: Lia Neiva, Vitória/ES, 2008
Autora: Maria Lindenberg
Compilação: Walter de Aguiar Filho, julho/2020

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