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Fonte Grande, Identidades - Por Lélio Rodrigues

Rua Sete vista da Fonte Grande - 1945

Para ele, foi uma paisagem vivenciada, desde os seis e por doze anos, década de 40, no sopé do morro de toponímia imprecisa: chácara do Catete, escadaria Gianordoli, final da rua do Vintém ou logo abaixo da casa dos Rabelo. No conjunto, Fonte Grande ao centro e ladeada pelos morros do Moscoso e da Piedade, o verde circundava Vitória, com a baía completando, a jusante, essa delimitação redutora. Tudo o mais eram caminhos estreitos para bairros desvinculados da memória cotidiana.

Vitória mesma se estendia do Colégio Estadual, que derivou para a filosofia, ao Politeama, que derivou para a porno-chanchada. A praça Costa Pereira era, de longe, o referencial mais importante, e dela se alongaram os acessos da Sete de Setembro, com a linha do bonde, e da Graciano Neves, ainda em barro e lama. Automóveis eram raridade: Renato Pacheco teve um, azul claro, para o circuito das aulas; o leite matinal chegava, anunciado por buzinadas, em carrocinha de burro. A rua Sete era a preferida para o futebol. Pela Graciano desciam os blocos da Fonte Grande e da Mocidade, e retornavam apagados ou vitoriosos e confiantes.

Quase todos os domingos e quase um rito, pai, filhos e vasilhame subiam a Fonte Grande, galgando pedras e trilhas, para renovar um suprimento de água mais pura. A fonte era abundante e protegida, vinha logo depois de um claro de jaqueiras majestosas, talvez a não mais de um terço da encosta do morro. Já era cansativo, mas os Lucas, que moravam além do tope, já na outra vertente, faziam diariamente o percurso total.

Ao fim dos estudos e da mocidade, o espaço vivenciado incorpora a noite: o passeio de barco na baía, os bancos da praça, o bar que sobrevive ao lado da ESCELSA. Rodas de ópera, letras e angústias – Hormízio e Cacciari, Rocio e Dalmo. Na volta para casa, as duas ruas estavam vazias e tranquilas, e a grande sombra do morro sempre foi acolhedora, para reconciliá-lo com os desafios e as ilusões.

Uma ruptura ocorre, então, nas lembranças da juventude, até que ele volte para o novo ciclo do trabalho. Em toda a década de 60, a Fonte Grande se manteve apenas como um cenário, apenas contemplado, nunca mais vivido: o casario ascendente, em brancos predominantes, era logo secundado pela mata, o verde multiforme descontinuado apenas pela cicatriz de um pasto, a meia altura do morro. Mesmo assim, a Fonte Grande informava, permanentemente, o seu endereço, os seus registros, a sua identidade.

Ruptura maior se prolonga, depois, num quase desterro, nas miragens do planalto central, onde coube o transcurso de quase uma geração. Ele retornou, agora mesmo, para cumprir o ciclo da terceira idade. Os bondes se foram de há muito, os automóveis se multiplicaram em demasia, os acessos estão asfaltados, sobre galerias pluviais, as noites se tornaram hostis, e dizem que o centro de Vitória se desloca para outras plagas.

De há muito, também, que todos se foram ou mudaram — amigos e vizinhos, parentes e conhecidos. Os Lucas, Eraldo e Geraldo, foram ceifados, pelo automóvel e pelo crime. O desarraigamento é inevitável, no contexto microssocial, e resta apenas a paisagem.

O casario subiu algo mais pela encosta, terá sido contido — não faz muita diferença. A mata se afigura mais rarefeita; no pasto, eventual expansão foi mínima — diferenças tampouco notáveis. Mas agora, um desmatamento se estende retilíneo do pasto ao tope, onde a feiura se instala sob a forma de uma dezena de mega-torres de TV.

Assim é ou se parece a Fonte Grande, vista de frente, desde o centro, e pior ainda quando vista lateralmente, desde as bandas do nascente. Assim como os retratos dos procurados pela justiça, onde o perfil costuma revelar melhor os traços das deformações. Tanto na forma como nos efeitos, a associação imediata é com as "espinhas de peixe" de Bye-bye Brasil, o filme, que expulsam o teatro mambembe na busca de acolhida, de público e retorno, aonde ainda disponíveis.

Estes cadernos da PMV talvez localizem ainda alguma disponibilidade pontual, conquanto, majoritariamente, as pessoas se voltem para outro foco de atenção. A despeito das obras do homem e da dispersão das gentes, a memória de cada um não pode dispensar balizamentos duradouros. A Fonte Grande é o componente central de uma paisagem que perdura, uma geografia que se impõe, embora ressentida, ao antenado e aos desencontros.

Revisitando na Fonte Grande de hoje a Fonte Grande de sempre, ele ainda poderá aprofundar a consciência de onde está, onde sempre esteve, para o reencontro com o que de fato é, ou sempre foi.

 

ESCRITOS DE VITÓRIA — Uma publicação da Secretaria de Cultura e Turismo da Prefeitura Municipal de Vitória-ES.

Prefeito Municipal: Paulo Hartung

Secretário Municipal de Cultura e Turismo: Jorge Alencar

Diretor do Departamento de Cultura: Rogerio Borges

Coordenadora do Projeto: Silvia Helena Selvátici

Conselho Editorial: Álvaro José Silva

José Valporto Tatagiba

Maria Helena Hees Alves

Renato Pacheco

Bibliotecárias

Lígia Maria Mello Nagato

Cybelle Maria Moreira Pinheiro

Elizete Terezinha Caser Rocha

Revisão: Reinaldo Santos Neves , Miguel Marvilla

Capa: Pedra dos Olhos, (foto de Carlos Antolini) 

Editoração Eletrônica: Edson Maltez Heringer  

Impressão: Gráfica Ita

Fonte: Escritos de Vitória 12 – Paisagem - Secretaria Municipal de Cultura e Turismo – PMV
Autor do texto: Lélio Rodrigues
Compilação: Walter de Aguiar Filho, janeiro/2019

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