Igreja da Misericórdia – Por Elmo Elton
Em 1597, por iniciativa do capitão de ordenanças Miguel de Azeredo, fundou-se, em Vila Velha, antes chamada vila do Espírito Santo, uma Casa de Caridade (ou da Misericórdia) destinada a recolher doentes pobres. Celebrando o evento, o padre José de Anchieta, grande amigo do capitão e, sabidamente, o inspirador da obra, escreveu o auto Na visitação de Santa Isabel, texto em espanhol, ali encenado, é quase certo, a 2 de julho daquele ano, quando já falecido o autor, contendo tal peça versos como estes:
"Por esta casa sagrada
"misericordia" llamada,
libra muchos del inferno
dondoles tal abogada".
Esta vuestra Confraria
con que a pobres socorréis,
es obra tan santa y pia,
que con ella me ternéis
a las puertas, cada dia".
O Compromisso da irmandade mantenedora, do instituto fora impresso em Lisboa, em 1600, por Antônio Alvares, — documento que, localizado pelo governador Francisco Rubim, serviria de base, mais tarde, para a organização do Hospital da Misericórdia, em Vitória.
Transferida, anos antes, a sede do governo da capitania, de Vila Velha para Vitória, construiu-se, nesta vila, em 1605, a igreja de Nossa Senhora da Misericórdia, ou simplesmente da Misericórdia, mudando-se, no ano seguinte, a Casa de Caridade para junto do novo templo, onde funcionou por muito tempo.
Em 1605 Felipe III, quando Portugal se achava sob o domínio espanhol, concedeu àquela instituição os mesmos privilégios da Misericórdia de Lisboa.
A principal função da Casa de Caridade "consistia em manter o hospital e congregar as almas generosas e pias no amparo à pobreza, dar sepultura aos irmãos, no cemitério local (que se situava ao lado da igreja), e aos indigentes, em outro campo santo, abaixo do hospital".
Em 1813 o governador Francisco Alberto Rubim da Fonseca e Sá Pereira (1812/1819) empreendeu movimento em favor da referida Casa, que vinha funcionando precariamente, dirigindo ofício ao Governo Geral, em nome de negociantes e lavradores de Vitória, em que solicitava permissão para edificar-se novo prédio do Hospital, organizando-o a contento. O cidadão Luís Antônio da Silva, mais conhecido por Louvado Deus, ofereceu, de imediato, para tal fim, uma casa e seus pertences, enquanto outros se propunham a fornecer medicamentos e, sem remuneração, tratar dos enfermos.
Posteriormente, a senhora Maria de Oliveira Sutil, que era cega de nascença, fez a doação de sua fazenda denominada Campinho à mesma instituição de caridade, para, no local, ser construído o nosocômio. A 8 de agosto daquele ano, a Câmara Municipal doou, igualmente, o Mangal do Campinho a fim de que o mesmo, após devidamente aterrado, servisse para construções que assegurassem rendimentos à obra.
"A Provisão Régia, lavrada a 15 (17?) de abril de 1816, foi registrada na Chancelaria Mor do Reino do Brasil; no dia 24 Sua Majestade reconhecia que a Santa Casa de Misericórdia da vila não podia prestar nenhum socorro aos doentes, permitindo, então, se erigisse um hospital, para enfermos pobres, sob a inspeção do provedor e seus irmãos de mesa da Irmandade da Misericórdia".
Um esclarecimento: Junto da Igreja da Misericórdia funcionava, até então, em modestíssimas condições, a Casa de Caridade, sendo que o hospital propriamente dito, isto é, digno de tal designação, só foi construído em 1817, na colina doada pela senhora Maria de Oliveira Sutil, sendo sua direção como referido acima, entregue à direção da Irmandade da Misericórdia.
Leia-se o que registrou o presidente Ignacio Accioli de Vasconcellos em sua Memoria statistica da provincia do Espirito Santo escrita no anno de 1828, com relação à Casa de Caridade e à Igreja da Misericórdia:
"Há na Província hua unica Caza de Caridade que tãobem serve para expostos cujos privilégios e liberdades lhes forão concedidos por Provizão de ELRei de Portugal do 19 de junho de 1605, identicamente à Santa Caza de Misericor-dia de Lisboa.
Entradas dos Irmãos, esmolas, e legados erão os fundos de que dispunha a irmandade, limitando-se quando os não havia a comparecer na Procissão dos Fogaréos, até 1818, em que alguns Negociantes, e Lavradores mais pios requererão a Sua Magestade a aprovação de certa contribuição voluntária nos generos principais de consumo, e obtiverão a Confirmação por Provizão de 15 de abril do mesmo ano.
Desta Epoca em diante a Irmandade tomou outra regularidade, o Provedor, e Irmãos de Meza se juntão todos os primeiros Domingos de cada mez no Consistorio da Igreja da Mizericordia quãdo os negocios da Caza não urgem menos intervalo, e se tomão as contas aos encarregados de todos os ramos da Administração do mez antecedente carre-gando, ou descarregando ao Thezoureiro, despachão requerimentos, e Partes, deliberão, fazem termos & lavrão suas Actas, tudo na forma do seu Compromisso, que sendo o da Santa Caza de Lisboa em 1600 resabe à ferrugem daqueles tempos (...)
“... O Edificio para o estado do Paiz hé magnífico, a Caza hé terrea, e forma hu quadrado de 160 palmos de lado: a área da mesma figura de 55 palmos de lado com hua porta principal e 8 janelas envidraçadas, em cima de hu morro de 150 palmos acima do nivel do mar izolada, e com seu Simiterio amurado a 150 braças distante, forma agradavel prespectiva, sendo as paredes, e alicerces próprios para sustentar hu, ou dois andares de sobrado".
O imóvel a que se refere Accioli de Vasconcellos foi demolido em 1910, construindo-se em seu lugar o atual prédio da Santa Casa de Misericórdia, cuja fachada e escadaria foram descaracterizados, recentemente, perdendo o edifício toda a beleza e imponência que tinha antes.
Escassos os registros que se guardam, nos arquivos oficiais, sobre a igreja da Misericórdia, justificando-se, em parte, o que escreveu o autor da Memória Statistica:
"A Historia da Provincia hé mui obscura, não só pela própria indolencia dos habitantes como por ter-se acidentalmente queimado em 1794 a Biblioteca dos extinctos Jezuitas sendo Capitão Mor Governador Ignacio João Monjardim, restando em alguns Cartórios, e Cazas das Camaras alguns livros inteligiveis apenas escapados dos estragos do tempo, e da ignorância (...)"
Por mais de três séculos, a igreja da Misericórdia acolheu grande número de fiéis, encaminhou enfermos a hospital que mantinham os irmãos, promoveu procissões concoridíssimas, tendo nela funcionado, também, uma outra Irmandade: — a de Nossa Senhora Mãe dos Homens. Acontece que, a 18 de abril de 1911, os jornais de Vitória noticiavam a demolição do venerável templo, obra de feição jesuítica, portanto modesta, mas das mais antigas do Espírito Santo. Foi demolido para que, na mesma área, se construísse o prédio da Assembléia Legislativa, visto que o governo de então empenhava-se em modernizar a cidade, dar-lhe edifícios novos, quando os monumentos religiosos da ilha lhe pareciam, certamente, não mais que simples velharias, sabendo-se, entretanto, que essas mesmas velharias, pela localização de cada uma, em nada impediam o alargamento dos logradouros onde se encontravam.
A imagem de Nossa Senhora da Misericórdia assim como um banco em cujo assento lê-se, gravada a fogo, a palavra Misericórdia são as duas únicas relíquias que restaram do tradicional templo, — ora recolhidas ao acervo do Museu Solar Monjardim.
Fonte: Velhos Templos de Vitória & Outros temas capixabas, Conselho Estadual de Cultura – Vitória, 1987
Autor: Elmo Elton
Compilação: Walter de Aguiar Filho, agosto/2017
Assim se explica a construção da igreja de Santa Luzia, a mais antiga da cidade
Ver ArtigoNão se sabe de onde veio o nome de Santiago dado à fundação jesuítica: se de alguma capelinha que existisse no local ou se traduzia uma recordação do dia em que talvez fosse abençoado o templo – vinte e cinco de julho de 1551
Ver ArtigoDom Luiz Scortegagna, criou a paróquia de Santa Rita de Cássia da Praia Comprida, desmembrada da paróquia de Nossa Senhora da Prainha de Vitória
Ver ArtigoEm Vila Velha, Afonso Brás cuidou de levantar uma igreja dedicada a de N. S. do Rosário, 1551
Ver ArtigoA Igreja do Senhor dos Passos, que recebeu as antigas imagens da primitiva matriz desaparecida em setembro de 1884
Ver Artigo