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Manolo Cabral e Carlos Cruz - Por José Roberto Santos Neves

Manolo Cabral e Carlos Cruz

Se há um disco de um compositor capixaba que merece o status de obra-prima, este é o LP “Brasil: Música na História – 50 Peças Progressivas para Piano”, do maestro Carlos Cruz, executado ao piano por Manolo Cabral e lançado em 1985, com patrocínio da Aracruz Celulose. Tudo neste disco é sinônimo de refinamento e bom-gosto: desde o projeto original, com o objetivo de ilustrar musicalmente os principais acontecimentos da História do Brasil, à pesquisa desenvolvida por Carlos Cruz, incluindo o desempenho de Manolo Cabral, a belíssima arte da capa e o livro de partituras que acompanha a obra.

Trata-se de um raro encontro de gerações unidas pela música: de um lado, o renomado Carlos Cruz, nascido em Vitória, em 1936, e que se radicou no Rio de Janeiro em 1957, onde construiu uma respeitável carreira como compositor, pianista, professor de piano e diretor artístico nas principais emissoras de rádio e TV do país; de outro, o prodígio Manolo Cabral, então com 20 anos, apontado à época por Arthur Moreira Lima e João Carlos Assis Brasil como uma das maiores promessas do piano brasileiro.

No livro que acompanha o disco, o maestro Guerra Peixe, a quem Carlos Cruz deve muito de sua formação como compositor, atesta o pioneirismo desse trabalho ao lembrar que “é a primeira vez que aparece uma obra mais extensa, para piano, evocando os momentos principais da História do Brasil oficialmente estabelecida”. As recomendações ilustres prosseguem na arte interna do LP, na qual o maestro Edino Krieger reitera que o mérito do trabalho está, sobretudo, na qualidade musical do produto final: “As peças são bem escritas para o instrumento, dotadas de uma fluência e de uma espontaneidade que as tornam atraentes para o pequeno pianista, que estará fazendo música e não apenas um adestramento musical. E isso é o mérito maior que um trabalho didático pode ter.” No prefácio do livro, o próprio Carlos Cruz destaca o aspecto didático do LP, reforçando sua preocupação com a evolução pianística dos estudantes de piano.

Porém, faz-se necessário frisar que “Brasil: Música na História” é um álbum acessível a todos aqueles que amam a música em seu estágio mais elevado, e especialmente aos apreciadores do piano, que terão a oportunidade de desfrutar da fluência e do virtuosismo de Manolo Cabral. Naquele momento, Manolo exibia uma técnica exuberante na execução das 50 peças que compõem o disco, alternando momentos de intensidade e relaxamento, de velocidade e cadência, de acordo com o perfil de cada composição. Carlos Cruz, por sua vez, faz uso de invejável diversidade rítmica para retratar a história do país em peças musicais. Conforme ele próprio pontua no prefácio da obra, entre as gravações há lundu (“O Aleijadinho”), modinhas (“Marília de Dirceu” e “Marquesa de Santos”), fandango (“Farroupilhas”), choro (“Rio, 1900” e “Semana de Arte Moderna”), música caipira (“Jeca Tatu”) e acento nordestino (“Canudos” e “João Pessoa – Morte e Revolução”). Juntamente com os ritmos de origem brasileira, há as criações em estilo europeu, como romanzas, valsas e minuetos, o que configura a obra como um portentoso encontro da brasilidade com a aristocracia, do erudito com o popular.

O rigor e o perfeccionismo de Carlos Cruz, aliado à sensibilidade de Manolo Cabral, transporta o leitor/ouvinte para uma viagem no tempo que começa com o Descobrimento do Brasil e avança pelo período colonial. Ao longo das faixas sucedem-se fatos importantes da história do país, como as tradições indígenas, a formação das Capitanias Hereditárias, a chegada dos jesuítas, a resistência de Zumbi dos Palmares, a descoberta do ouro das Minas Gerais, a Inconfidência Mineira, a vinda da Corte Portuguesa para o Brasil, a Proclamação da Independência, a Regência e o Segundo Reinado, a consagração do Indianismo como expressão literária, a Guerra do Paraguai, a Abolição da Escravatura e a Proclamação da República.

Já no século XX, o compositor destaca a invenção do 14 Bis por Santos Dumont, o caipira Jeca Tatu, o Estado Novo de Getúlio Vargas, o papel da Força Expedicionária Brasileira na Segunda Guerra Mundial, a transferência da capital para Brasília, o golpe militar de 1964 (que Cruz descreve como “Revolução”) e o retorno do poder aos civis com a eleição de Tancredo Neves, em 1985. Todos esses episódios são descritos de forma condensada no livro, seguidos da partitura de cada uma das 50 peças gravadas. Um trabalho de excelência que retrata a grandeza do Brasil e sua formidável miscigenação cultural, que nos caracteriza enquanto nação e nos diferencia dos demais povos.

Como fizeram Heitor Villa-Lobos na música, e Sérgio Buarque de Hollanda e Gilberto Freyre na sociologia, Carlos Cruz e Manolo Cabral mergulham nas raízes profundas do Brasil e traduzem a alma de sua gente para o universo pianístico com talento, seriedade, disciplina e a exuberância digna daqueles que se entregam ao ofício com amor e afinco. E, como o Espírito Santo é um Estado que frequentemente se queixa de isolamento cultural, nunca é demais lembrar que ambos são capixabas da gema, de onde despontaram com esta importante contribuição para a musicografia brasileira.

 

Carlos Cruz e o DNA da música no Espírito Santo

 

Para contar a trajetória do maestro, pianista e compositor Carlos Cruz, é necessário fazer uma viagem no tempo e falar do seu pai, o trombonista e compositor Clóvis Cruz, figura fundamental para o desenvolvimento da música popular no Espírito Santo. Natural de Campos (RJ), Clóvis Cruz veio a Vitória pela primeira vez ao Estado em 1925, com o Grupo Os Tangarás, contratado para animar o carnaval de Cachoeiro de Itapemirim. Na ocasião, segundo depoimento concedido ao jornalista Osmar Silva em 1978, o grupo foi convidado para se apresentar no City Clube, situado na Praça Costa Pereira, em Vitória, no prédio onde mais tarde funcionaria o Edifício Álvares Cabral.

Após aquela primeira visita a Vitória, Clóvis Cruz aceitou a proposta para se mudar para o Rio, onde fez parte do conjunto do pianista capixaba J. Aimberê. Em 1931, recebeu novo convite para se apresentar na capital capixaba, dessa vez com o conjunto do maestro Tibúrcio, em um baile no Clube Vitória, no dia 14 de novembro. A partir daí, decidiu permanecer no Espírito Santo, onde montou uma orquestra de oito integrantes ao lado do violinista Moacyr Araújo, com a qual passou a atuar permanentemente no City Clube. A vinda de Clóvis Cruz para o Espírito Santo impulsionou a música popular no Estado, tendo a sua orquestra percorrido o circuito praticamente todos os grandes clubes da época, como o Saldanha da Gama, Álvares Cabral e Clube Vitória. Músicos talentosos fizeram parte de seu conjunto, entre eles os pianistas Lauro Miranda e Hélio Mendes; o saxofonista José Haddad Filho (Zezito Haddad); e o trompetista Cícero Ferreira.

Além de trombonista e líder dos grupos de que participou, Clóvis Cruz também se destacou como compositor de marchas carnavalescas. De acordo com o livro “Música Popular Capixaba 1900-1980”, de Osmar Silva, ele foi o vencedor do primeiro concurso de música carnavalesca do Espírito Santo, em 1936, com a marcha “Ôba”, em parceria com Moacyr Araújo. Nos anos seguintes notabilizou-se como compositor de marchinhas e seus conjuntos animaram o carnaval capixaba. Em 1940, assumiu o cargo de diretor da recém-criada Rádio Espírito Santo, encerrando a carreira musical seis anos depois, para se dedicar ao comércio e à política.

Nascido em Vitória, em 11 de setembro de 1936, Carlos Cruz seguiu os passos do pai, com quem iniciou sua formação musical. Em 1956, lecionou canto orfeônico no Ginásio São Vicente de Paulo, em Vitória. No ano seguinte, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde ingressou nos seminários de música da Pró-Arte, tendo estudado com Hans Fraff (piano), Esther Scliar (teoria) e Roberto Schnorrenberg (harmonia).

De acordo com o Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira, Carlos Cruz trabalhou em 1958 como pianista do Iate Clube do Rio de Janeiro, além de atuar como professor de piano e canto. Dois anos depois, foi contratado pela Rádio Mayrink Veiga como pianista da Orquestra do Maestro Peruzzi. Em 1962, atuou como pianista e diretor de orquestra, na Rádio Mauá. Formou, dois anos depois, o grupo musical Carlos Cruz e Seu Conjunto. Ainda em 1964, ingressou na TV Excelsior (RJ), onde assinou a produção e direção de programas como “Times Square”, “Noite de gala”, “Adoráveis trapalhões”, “Essa gente inocente” e “Um instante, maestro”. Cinco anos depois, trabalhou na TV Record/TV Excelsior (SP).

Em 1970, foi responsável pela produção e direção musical dos programas “Flávio Cavalcanti” e “Cidinha Livre”, na TV Tupi. A partir desse ano, passou a estudar composição com o maestro Guerra Peixe. Em 1973, assinou na Tupi a produção e direção musical dos programas “Hebe Camargo”, “Alegríssimo” e “Os Trapalhões”. Três anos mais tarde, trabalhou como supervisor de produção e programação na Rádio Mauá/Rádio Ipanema (Radiobrás). Em 1977, exerceu o cargo de diretor musical da linha de shows da TV Tupi (SP e RJ), tendo sido responsável pela produção e direção musical dos programas “Flávio Cavalcanti” e “Conversa de botequim”.

Mesmo morando no Rio, Carlos Cruz manteve os laços afetivos com a cidade natal, sendo o autor do “Hino Oficial da Cidade de Vitória”, obra premiada em 1979 em concurso promovido pela prefeitura municipal. No ano seguinte, trabalhou como diretor musical da TVS/SBT. Em 1981, assumiu a direção musical da TV Bandeirantes (SP). Em maio de 1982, venceu o I Festival de Música Erudita Capixaba com sua composição “Sonatina para Piano”.

De 1983 a 1999, exerceu o cargo de diretor musical da Rede Manchete de Televisão. Sua obra “Intervalos” representou o Brasil no Festival Internacional da Ucrânia, em Kiev, em 1994. Nesse mesmo ano, publicou o livro “A Heresia de Pensar e de Criticar”. Participou, como compositor, das trilhas sonoras das novelas “Marquesa de Santos” e “Dona Beija”; e das minisséries “Fronteira do Desconhecido”, “Ilha das Bruxas” e “A Escrava Anastácia”, todas na RedeManchete.

No campo da música popular, tem mais de 100 canções gravadas por intérpretes como Elza Soares, Marlene, Cauby Peixoto, Wilson Simonal, Eliana Pittman, Emílio Santiago e Angela Maria. Entre seus sucessos destacam-se “Can-can no Carnaval” (marcha gravada por Emilinha Borba e contemplada com o primeiro lugar no Festival de Carnaval de 1966), “Mangueira minha Alegria”, “Eu sou mais eu”, “O meu Carnaval que passou”, “Domingo de Carnaval” e “Naquele Carnaval”. Em 1985, lançou o LP “Brasil: Música na História”, coleção de cinquenta peças progressivas para piano, interpretadas pelo pianista Manolo Cabral.

Uma das últimas apresentações de sua obra em Vitória foi o lançamento da peça “Adágio Para um Anjo – para Violoncelo e Orquestra de Câmara” com a Orquestra Sinfônica do Espírito Santo (OSES), em 25 de outubro de 2003, no Teatro Carlos Gomes, sob a regência do maestro Helder Trefzger e tendo como solista o violonista norte-americano Benjamin Karp. Em abril de 2009, a OSES realizou a primeira audição mundial do concerto “Lendas Capixabas para Violão e Orquestra”. Carlos Cruz morreu em 29 de março de 2011, aos 74 anos, no Rio de Janeiro, vítima de câncer.

 

Manolo Cabral, virtuose do piano

 

Nascido em Vitória, em 04 de janeiro de 1965, Manolo Cabral é o que se pode chamar de talento prodígio. Sua vocação para a música vem de berço: a mãe, a pianista e professora Sônia Cabral, notabilizou-se como referência na música erudita do Estado, tendo sido diretora da Faculdade de Música do Espírito Santo e idealizadora da Orquestra Sinfônica. A casa da família frequentada por alguns dos nomes mais importantes da música mundial e nacional durante sua passagem por Vitória, entre os quais Sergei Dorenski, John York, Sarah Vaughan, Astor Piazzola, Arnaldo Cohen, Miguel Proença, Nelson Freire, Arthur Moreira Lima, Turíbio Santos e Guerra Peixe, sempre recebidos com atenção por Sônia e o marido, o jornalista Marílio Cabral.

Sua iniciação ao piano se deu aos seis anos de idade, sob orientação de Arnaldo Estrela, por intermédio da mãe, então aluna do renomado pianista. Aos dez, já estudava diretamente com o mestre e passava a se apresentar regularmente em público, sozinho e com orquestra. Seu talento chamava a atenção de grandes pianistas que vislumbravam um futuro promissor para Manolo. Em 1979, Arthur Moreira Lima o viu tocando pela primeira vez e ficou impressionado com sua destreza musical, descrevendo-a da seguinte forma na arte interna do LP “Brasil: Música na História” (1985): “Ouvi Manolo pela primeira vez em 1979, quando ele tinha apenas 14 anos, e logo passei a considerá-lo uma incrível vocação para o piano. Agora, decorridos seis anos, mostra-nos o jovem artista, com esta expressiva gravação da obra do compositor e maestro Carlos Cruz, que eu, positivamente, não me havia enganado a seu respeito. Estou cada vez mais convencido, por isso mesmo, de que o mundo musical muito ainda irá ouvir falar do nome de Manolo Cabral”

Decidido a se tornar concertista, Manolo passou a dedicar-se com afinco ao estudo musical. Formou-se em piano clássico pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) e fez mestrado com Myrian Daueslberg, ex-diretora artística da Sala Cecília Meirelles e musicóloga responsável pela descoberta e formação de novos intérpretes. Em 1982, seguiu para os Estados Unidos, onde obteve uma bolsa de estudos da Eastman School of Music, de Rochester, Nova York, destacando-se na classe da italiana Maria Luise Faini.

De volta ao Brasil, seguindo a orientação de Nelson Freire, passou a estudar com a conceituada pianista e professora Nise Obino (1918-1995), responsável pela formação de nomes como Dori Caymmi, na música popular, e do próprio Nelson Freire, na música clássica. Manolo agarrou a oportunidade e mergulhou no estudo intensivo do instrumento, conforme relatou em matéria publicada no jornal O Globo, em 28 de agosto de 1984. Na ocasião, o pianista preparava-se para sua estreia em palcos cariocas, no IBAM, em 12 de setembro daquele ano, com as melhores recomendações de Nelson Freire e Miguel Proença.

A temporada carioca repercutiu na imprensa capixaba com registro na Coluna Hélio Dórea de A Gazeta. Sua ascensão como intérprete lhe rendeu o convite para gravar o LP “Brasil: Música na História”, reunindo 50 peças progressivas para piano compostas pelo maestro Carlos Cruz. O lançamento do álbum, em 1985, no Museu de Arte Moderna, no Rio, reuniu a diretoria da Aracruz Celulose, patrocinadora da obra, bem como músicos, empresários e jornalistas. Após aquela gravação, Manolo Cabral fez um curso de aperfeiçoamento na Rússia, passou a lecionar na Faculdade de Música do Espírito Santo, como professor concursado, e montou o Buffet Studio C, empresa que se destacou no ramo de cerimonial de eventos de Vitória.

Sua morte precoce, aos 41 anos, em 17 de janeiro de 2006, após uma parada cardíaca, depois de dois dias de internação para fazer uma endoscopia, em um hospital de Vitória, deixou saudades no circuito musical do Espírito Santo. Dois dias depois, o Caderno Dois de A Gazeta publicou a notícia junto a depoimentos de amigos e músicos ilustres, como o violonista Maurício de Oliveira, com quem o pianista realizou vários concertos no Teatro Carlos Gomes, ao lado da Orquestra Sinfônica do Espírito Santo. “Manolo era um excelente pianista. Ele tocava de Haydn a Ernesto Nazareth. Sua formação era erudita, mas sabia valorizar o popular também. Fico muito lisonjeado e feliz por ter tocado com ele. Hoje, contudo, estou triste”, declarou Oliveira à repórter Thaiz Sabbagh.

Por sua vez, o jornalista e amigo da família Cabral, Marien Calixte, incluiu Manolo na galeria dos grandes pianistas do Estado, juntamente com Hélio Mendes, João Virgílio, Carlos Augusto (do Quarteto JB) e Pedro de Alcântara. “Ele tinha talento para ser um nome consagrado da música até internacionalmente. Mas preferiu ser feliz no ramo de festas. Era uma pessoa muito inteligente, bem-humorada e de bom gosto.” Mas o legado do pianista e sua contribuição para a música do Estado continuam vivos por meio de diversas homenagens. Uma delas é o Parque Pianista Manolo Cabral, como foi denominada a enorme área verde que rodeia o novo prédio da Petrobras em Vitória, entre as ruas Chapot Presvot e Guilherme Serrano, no Barro Vermelho. O projeto da Câmara Municipal de Vitória, sancionado pelo então prefeito João Coser, em 21 de dezembro de 2012, é relatado com detalhes pela irmã de Manolo, a jornalista Manoela Ferrari, no livro “Sinfonia de Sônia: Vida e Obra da Pianista Sônia Cabral”. Quem visitar o local, além de desfrutar da bela paisagem natural do espaço, encontrará um busto de Manolo Cabral esculpido pelo artista plástico Vilar.

 

Fonte: Revista da Academia Espírito-santense de Letras / Comemorativo ao 98° Aniversário da AEL
Autor: José Roberto Santos Neves
Cadeira n° 26 da Academia Espírito-santense de Letras
Compilação: Walter de Aguiar Filho, abril/2022

 

 

 

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