O Campanelli
Manhã nascendo. De pé sobre a pedreira, eu observava o voo dos urubus que agouravam a morte do bezerro atolado no asfalto. A estradinha à beira-mar estava sendo pavimentada. Por todo lado amontoavam-se tonéis do betume negro e visguento; alguns derramados. O gado desavisado que por ali perambulava, volta e meia via-se em apuros. Os maiores conseguiam safar-se, mas os pássaros e bezerrinhos que caíam no asfalto derretido, quando mais se debatiam, mais afundavam. O bezerro atolado berrava, em desespero, e todo o coro dos bois berrava em resposta. Eu esperava meu primo, Paíco, para juntos, tentarmos livrar o animalzinho. Ficaria com as unhas negras do asfalto, teria que esconder as mãos nos bolsos, e mamãe repetiria seu milésimo sermão de que já era tempo de me portar como uma mocinha. Essa cena viria a repetir-se algumas vezes.
Nicola Campanelli era o engenheiro italiano contratado para asfaltar a estradinha que ligava Vila Velha à Praia da Costa. De temperamento efusivo, logo cativou todos. Eu e Paíco nos tornamos sua sombra (Marinella e Paípa, como dizia). O seguíamos pra baixo e pra cima e, nesse vaivém, uma linda amizade nos uniu. Aquele homem/ ventania era, para mim, uma janela aberta por onde eu vislumbrava o desconhecido, o exótico, o inusitado. Tudo o que nos contava, me encantava e atraía. Eu tinha doze anos, e vivera, até então, a vidinha prosaica de Vitória: casa, escola, missa, praia, família, tudo "nos conformes". De repente, descobria como era grande o mundo. Bem maior que o "meu planeta" - o morro perto do péla-macaco onde eu ia de catraia para ver o pôr-do-sol.
Sua casa, em forma de navio, de cuja construção eu e meu primo participamos ativamente providenciando fundos de garrafas para decorar a parede fronteira, era realmente a grande nave de sonhos e promessas.
Campanelli casou-se com uma paulista - Yolanda, alta, tímida, de modos corteses e poucas falas. Nasceu Ana Maria e logo, outra menininha cujo nome não lembro. Sempre por perto, eu continuava a ocupar o lugar de amiguinha predileta, que tanto me envaidecia. Mas o grande mundo gira - e isso eu aprendi também. Meu amigo se foi com sua família; nunca mais o vi. Soube, aqui e ali, que alguém o vira casualmente na Via Ápia, Roma e me parece, que em Capri.
Quando, muitos anos mais tarde, já casada, estive na Itália, meu olhar esquadrinhava os passantes, a ver se em meio a tantos rostos surgia o rosto querido. Nunca! Meu amigo que tanto enriqueceu meus dias, esfumou-se na distância. Sua casa-navio foi derrubada, a estrada, ampliada. Frequentemente eu me perguntava por que certas pessoas surgem em nossas vidas, se a sina é que desapareçam depois, deixando um travo de solidão - um nome que, quando sussurrado, aquece o coração, mas também dá uma pontada de nostalgia.
Pela diferença de idades, meu amigo deve estar "al di lá delle stelle, al di lá della vita" - onde só a saudade alcança. E; para revê-lo, vou ter que esperar...
Por: Marilena Soneghet, publicado originalmente em A Gazeta (11/09/09)
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