Morro do Moreno: Desde 1535
Site: Divulgando desde 2000 a Cultura e História Capixaba

O despertar de um sonho – Por Adelpho Monjardim

Convento de São Francisco, início do século XX

Mesmo o mais pacato cidadão sonha com tesouros ocultos. Morava aqui morigerado e pacífico cidadão italiano, mui piedoso e temente a Deus. Modesto negociante, vivia para a família e demonstrava não alimentar ilusões quanto à fortuna. Se até então não enriquecera, não esperava alcançá-la nos poucos anos que lhe restavam.

O trêfego deus dos sonhos também se diverte pregando peças aos mortais. Ao fim de uma noite de verão, após lauta macarronada, pizzas e cappellettis, tudo fartamente regado com o generoso chiante, o bom homem rendeu-se a Morfeu.

Ao mergulhar no fantástico e estranho mundo dos sonhos, entre roncos de modulações várias, sonhou que um frade, de burel e longas barbas pretas, lhe aparecia. Do rosto, quase oculto, só os olhos eram visíveis. Com voz pausada e mansa falou-lhe de um tesouro enterrado no Convento de São Francisco. Com tantas minúcias descreveu o local que errar seria impossível. Cumpria, entretanto, observar que para o sucesso deveria ir só e à meia-noite.

Construção antiqüíssima, como tal o Convento estava arrolado entre os guardiões de tesouros.

O crédulo e pacato “paisano” acordou irrequieto, doido que se fizesse noite. Mal sorveu o café matinal, contra os hábitos saiu às pressas. Correu a uma loja de ferragens e comprou enxada, pá e picareta; material que ocultou ao chegar em casa. O segredo é a alma do negócio, filosofou.

Como o dia custou a passar! Parecia ter quarenta e oito horas. Finalmente, silenciosa, desceu a noite. Para maior requinte esplendida e enluarada. Morando vizinho ao Convento, fácil lhe foi sair, nas caladas da noite, sem despertar suspeitas.

Já nos terrenos da aventura buscou o sítio vislumbrado em sonho. Lá estava ele, quase no limite extremo do sagrado monumento de quatro séculos. Pouco afastado da caracachenta parede uma pedra o assinalava, possivelmente um marco. Ajeitou as ferramentas, cuspiu nas mãos e começou a cavar. A cada enxadada o barro voava em todas as direções. Meia hora depois já se aprofundara na terra até à cintura. Tornando-se mais duro o solo usou a picareta.

Rompia a madrugada quando a picareta acertou num terreno onde se afundou totalmente. O coração do velho quase deixou de pulsar. Finalmente o tesouro! Pouco durou a ilusão. O instrumento atingira a panela de monstruoso formigueiro das conhecidas saúvas. Em segundos a escavação transbordou dos terríveis insetos, que ligeiros e enraivecidos tomaram conta do infeliz, fustigando-o com as terríveis mandíbulas. Frenético, aos saltos, safou-se a custo do tenebroso fosso. Os instrumentos lá ficaram, testemunhando mais um tesouro fracassado.

Com o rosto inchado, pés e mãos feridos, o herói da empresa noturna passou dias de cama, em vinhas d'alho, além do vexame perante a família, alheia aos seus áureos projetos.

Hoje os tesouros estão enterrados em caixas-fortes, nos bancos, onde só não podem ser procurados à meia-noite.

Dias depois da dolorosa aventura, ainda pálido e ressentido, o protagonista contava, a um grupo de amigos, a expedição noturna e o seu melancólico desfecho.

Com a verbosidade e a gesticulação peculiares à raça, o caçador de tesouros narrou a odisséia, tal qual o Gama, contando ao Rei de Melinde as epopéias da ilustre gente lusitana. Ouvidos atentos, os do grupo não ousavam respirar. Não queriam perder uma só palavra do comovente relato. Imaginaram o amigo chegando à colina e à luz da lua cavando a mina. Minudente conta os detalhes, os sucessos e a progressão, no estranho fojo, até ao “clou” da história. Preparando o suspense, pausa e diz: — Quando eu estava quase a dois metros de profundidade, a picareta sumiu na terra mole... Fez nova pausa e fixou o grupo com uma interrogação no olhar, os ouvintes já não se continham nas calças. Curiosos, suspensos, aguardavam a surpreendente revelação. O narrador repetiu a frase — quando a picareta afundou na terra mole, imaginem o que “engondré!” O tesouro! Uníssonos exclamaram os ouvintes:

— “Fremiga! Fremiga gomo um gorno!”

 

Fonte: O Espírito Santo na História, na Lenda e no Folclore, 1983
Autor: Adelpho Poli Monjardim
Compilação: Walter de Aguiar Filho, outubro/2016

Folclore e Lendas Capixabas

Pesquisa

Facebook

Leia Mais

O Frade e a Freira - A Lenda por Estêvão Zizzi

Essa é a versão mais próxima da realidade...

Ver Artigo
O Caparaó e a lenda – Por Adelpho Monjardim

Como judiciosamente observou Funchal Garcia, a realidade vem sempre acabar “com o que existe de melhor na nossa vida: a fantasia”

Ver Artigo
A Igreja de São Tiago e a lenda do tesouro dos Jesuítas

Um edifício como o Palácio Anchieta devia apresentar-se cheio de lendas, com os fantasmas dos jesuítas passeando à meia-noite pelos corredores

Ver Artigo
Alcunhas e Apelidos - Os 10 mais conhecidos de origem capixaba

Edifício Nicoletti. É um prédio que fica na Avenida Jerônimo Monteiro, em Vitória. Aparenta uma fachada de três andares mas na realidade tem apenas dois. O último é falso e ...

Ver Artigo
A Academia de Seu Antenor - Por Nelson Abel de Almeida

Era a firma Antenor Guimarães a que explorava, em geral, esse comércio de transporte aqui nesta santa terrinha

Ver Artigo