Poema-passeio com Elmo Elton - Por Adilson Vilaça
Como escrever a saga
dispersa em pó e suspiros
soterrada por esse
relógio
ferramenta
mãos?
Recontar
divi/dido
entre o oficial e o ofício?
Redividido e reunido
o pastoreio do tempo
(relógio ferramenta mãos)
ao cronista confere o dom fabular.
Segredo de recontar
– silente engenho –
reedificando em grafia
o espaço
ar
(quitetônico)
de uma perdida geo.
...cidade viva / viva cidade...
À guisa de mote
recria-se a vivacidade
nela cabendo
mesmo o que se consumiu
no fogo da idade.
Sabe aquele tempo do escambo? Pois é: as pessoas intercambiavam mercadorias. Patos por ganso, cabrito por gaveteiro, dúzia de ovos por meio cento de laranjas e até presenciei, na infância de Ecoporanga, cliente dispondo-se a pagar a consulta com um galináceo! O médico não se fez de rogado, aceitou a paga e a nomeou Cocoricó. No quintal da modesta Casa de Saúde, idos do início da década de 1960, Cocoricó logo se aninhou e alinhou seu canto da madrugada aos galos de outros quintais. Virou residente oficial, sempre a flanar pelos corredores, exposto ao olhar curioso da freguesia adoentada.
No meu passeio com Elmo Elton não teve canto de galo não. Nem pio, nem penugem. Foi só mesmo um bater de pernas muito bem prosado. Flanamos de dar inveja a qualquer Baudelaire! O Centro da Ilha de Vitória pode não ser Paris, mas tinha e ainda tem seus encantos. Que tal a Rua das Flores? O Largo da Conceição? A Ladeira do Pelourinho? E a Rua do Oriente? A Rua Domingos Martins, que desapareceu no processo de gentrificação do Centro... Que pena! Que saudades passei a ter dela, sem sequer ter pisado o olhar em seu esplendor, que foi assim defenestrada pela janela da arrumação que mirava nova trama urbanística para Vitória. O tempo e os algozes da memória são mesmo demolidores implacáveis. Mas sigamos o passeio.
Antes, meia-volta. É de se perguntar, retoricamente, a fim de aplacar a curiosidade alheia: mas que encanto ou canto de galo nos levou a escarafunchar conversa naquele cada recanto? Eu e Elmo Elton, ele no exercício peripatético, eu, de minha parte, das panturrilhas aos tímpanos a dedicar-lhe um panapaná de atenção. Foi aprendizado tão colorido e pintalgado de tons a ponto de causar inveja ao mais mimético dos camaleões. Exagero? Não. Completarei a meia-volta para sanar qualquer mau-olhado que queira dissentir. Nesse quase lá exato do flashback, havemos de retornar coisa de meses, dois ou três, quem sabe quatro, por aí. Vejamos como pegou início a labareda desse passeio, até a epifania em que a dita peregrinação incendiou-se em poesia.
Na década de 1980, eu coordenava a Gerência de Comunicação do Instituto Jones dos Santos Neves. Fazíamos uma revista bimestral, editávamos alguns livros, além de folheteria da casa e de uma papelada interna de dar muito arrepio, tal aquela quantidade cuja demanda diária jamais se saciava. Daí, chamaram-me para apresentar visitante súbito, sem hora marcada. Geralmente são os melhores. Chamava-se Elmo Elton, morador no prédio que abriga o Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo, lá na Avenida da República, Parque Moscoso. Ele queria cometer uma publicação sobre as ruas, praças, largos e congêneres que para sempre irão pulsar no coração de Vitória. Mesmo aqueles soterrados pela engenharia da modernidade destrutiva, com sua avidez de construir ruínas e esquecimento. Pois bem: eu o ouvi. Parece que ele ainda me fala. Faço-me silente, por favor.
O livro tinha título: Logradouros antigos de Vitória. Quis ele desfilar palmo a palmo pelos espaços urbanos da obra. Eu disse que não carecia. Porém não dispensei sua intenção: aceitei ser ciceroneado in loco, depois de feita a leitura dos originais. Ah, sim: havia uma tal sine qua non – somente sairíamos ao zanzo se a publicação fosse aprovada por meu severo crivo editorial, arma da qual sacava sem espanto e sem assombro, naqueles impulsivos dias de jovem muito sabidão. O escriba topou, o superintende do IJSN me dispensou para a rotina da repartição, meti o pé pelos corredores com os originais em mãos. Um tanto não havia sido sequer datilografado, contudo o soslaio já me garantira ser boa sua manuscritura. Legível, limpa – feito a cabeleira acinzentada daquele cronista, recomendada por algum gel e por pente a escorrer para o alto e para trás.
Aprovei a publicação. Animado pela chama autocrática de meu pente-fino nas cabeleiras desordenadas dos originais do cronista, comuniquei a façanha ao superintendente – chamava-se Manoel Martins, amigo de Elmo Elton, que suspirou aliviado. Então, na dança dos dias tomou a pista a contradança dos remendos. Que vaivém! Dia sim e outro também, Elmo aparecia com uma filipeta qualquer a fim de remendar esse ou aquele trecho do livro. Vivíamos na era da datilografia, havia uma central na instituição com várias profissionais diligentes e zelosas do bem escrito fazer. Todavia, elas já não aguentavam ver o fantasma impávido do Elmo assomar no umbral do departamento. Gentilmente solicitei a ele que não fosse mais diretamente ao setor: levasse até a minha sala e mesa sua demanda. Pedi que parassem as máquinas! Colecionei as filipetas na gaveta. Com ele combinei dia D: não de Desespero, mas de Despacho final. No tal dia D, desembarquei os bilhetinhos todos de uma só vez. E então?
Marcamos o passeio, livro entregue ao processo de edição, editor e escritor livres para comemorar. O passeio começou na Barão de Monjardim, na cabeceira da artéria a que chamamos Avenida Jerônimo Monteiro. Com passo calmo e marcado por ritmo manquitolado, Elmo Elton deu provas de que sabia o DNA de quaisquer tijolos, pedras, janelas e sentimentos – mesmo aqueles arrancados e lançados nalgum monturo – das edificações, das famílias, das frinchas que um dia foram o espírito do tempo da Ilha de Vitória. Situava os nobres de linhagem, discorria por igual sobre as vidas dos esmolambados. Cada rua sua história, cada passada um remanso de memória.
A Rua das Flores? Nela moravam três moças de beleza fadária, cujos olhares dependurados nas janelas do casarão familiar colhiam os suspiros dos janotas que subiam e desciam a rua só para vê-las – a via hoje atende por Dionísio Rezendo. O Largo da Conceição? Virou Praça Costa Pereira, depois que a gentrificação naufragou sob terra a capelinha que os pescadores erigiram à Nossa Senhora da Conceição – a prainha que ali existia foi sugada pelas raízes de palmeiras imperiais. A Ladeira do Pelourinho? Agora é escalada com o nome de Escadaria Maria Ortiz, heroína que tacou água fervente nos holandeses que invadiram a Ilha – pelourinho não tem mais não: embora os descendentes de escravizados continuem a sofrer açoite moral e na pele, a todo maldito santo dia. A Rua do Oriente? Foi ocidentalizada em homenagem ao Barão de Itapemirim. E a Rua Domingos Martins, que homenageava o capixaba da Revolução Pernambucana de 1817? Sumiu do mapa, graças a demolições produzidas pelos governadores Florentino Avidos e Aristeu Borges de Aguiar – ocorreu um fenômeno dissonante no rasto de seu fim: a gentrificação tira os pobres dos locais valorizados, mas, no caso, ela era habitada por famílias tradicionais, gente de boa cepa, que foi cepada sabe-se lá para onde ou por quê. Mas devem ter levado um troco, enquanto o povaréu da Rua dos Piolhos ou os trabalhadores dos Pelames foram empurrados para a favelização dos morros ou manguezais.
Eu e o Elmo nos empurramos até o antigo Restaurante Mar e Terra – também virou memória –, na saída para o Bairro Santo Antônio, o primeiro bairro de Vitória. Era noitinha, final de dia ameno, o que facilitou nossa andança. Eu havia publicado até então somente o livro de contos “A possível fuga de Ana dos Arcos”. Elmo o elogiou. Disse que eu deveria produzir mais. Ele tinha penca de livros, era membro da Academia Espírito-santense de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico. “Logradouros antigos de Vitória” sempre me impressionou. Mais de década depois, eu faria a segunda edição desta obra pela Coleção José Costa, dedicada à memória e história da cidade, e que foi por mim criada na década de 90. Hoje, a coleção é levada adiante por meio de convênio entre a Prefeitura de Vitória e a Academia Espírito-santense de Letras.
Como acabou aquela remota noite? Esfogueado por incontáveis brindes, eu lhe prometi um poema, à maneira de paga do passeio. Escambamos! O poema nasceu dedicado ao cronista, abriu o livro a pedido dele, como agora abriu esta celebração. Antes de fabricar a artesania do poema, tive de me recuperar da bebedeira daquela noite! Que cervejada! Tomamos um porre regado a galinha ao molho pardo e quem sabe mais o quê... O trem foi brabo!
Dou receita para o tour: assenhore-se de exemplar de “Logradouros antigos de Vitória”, convide um amigo ou mais, comece na cabeceira da Jerônimo Monteiro, na Rua São João ou das Pedreiras e que virou Barão de Monjardim, faça o percurso, finalize em qualquer bar – porque o Mar e Terra, nostálgico repito, também está soterrado nas ruínas da lembrança. Aliás, ainda sobrevive o bar no térreo do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo, onde o Elmo abastecia sua geladeira foliã. Finalize ali mesmo, pendure na conta da boa alma do anfitrião. Ou invente qualquer escambo contra o proprietário, feito o paciente que barganhou diagnóstico por canto de galo.
O espírito de Elmo Elton continua a flanar, manquitolando por aí, desassossegado de tanto céu. Quem sabe em seu passeio você depara a figura dele, impavidamente penteado com gel acinzentado, a perambular no caminho dessa tão viva cidade. Afinal, na imaginação literária, de autor e de leitor, até o impossível é passível de doma.
À memória do Elmo. Fim de passeio!
Fonte: Revista da Academia Espírito-santense de Letras / 100 anos – Vitória (ES) Vol 26 - 2021
Autor: Adilson Vilaça
Compilação: Walter de Aguiar Filho, janeiro/2022
Adilson Vilaça: Jornalista e escritor. Professor universitário. Mestre em Estudos Literários (Ufes). Vice-Presidente da Academia ES de Letras. Vice-Presidente da Comissão ES de Folclore. Membro do Instituto Histórico e Geográfico do ES
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