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Rosa Schorlling: Uma Mulher além de seu tempo

Rosa Schorlling Foto e reprodução Gildo Loyola

Rosa é uma mulher alegre. Andar pelos corredores e cômodos de sua casa, em Domingos Martins, é ganhar um pouco de cultura – objetos e quadros que enfeitam a mobília e as paredes carregam histórias de nosso Estado e da colonização alemã e da aviação brasileira. Rosita passa a vida transpondo barreiras...

Após deixarmos o Sítio Rosenhawsen, descendo a serra em direção a Vitória, vim comentando comigo, em silêncio: “Que história. Que mulher!”

Publicação no Jornal A GAZETA: setembro de 1997.

 

Uma mulher além de seu tempo

Rosa Schorlling, primeira pára-quedista do país e primeira aviadora do Espírito Santo: "uma capixaba endiabrada"

No dia 8 de novembro de 1940, às 11h45m, Rosa Schorlling saltou para a história da aviação no Brasil: num "pulo" cercado por grande expectativa, ela saltou de pára-quedas e desceu suavemente nas águas da Baía da Guanabara, próximo à Ilha do Governador (RJ). Tornou-se assim a primeira pára-quedista do país e a quinta no mundo. Seu feito rendeu manchetes nos jornais da época e levou o então presidente Getúlio Vargas a comentar: "Esta capixaba é uma endiabrada". Para lembrar esse período, Rosita (como é carinhosamente conhecida) está sendo homenageada no Blumenfest - Festival das Flores, em Domingos Martins, com uma exposição fotográfica.

As fotos - traçam 20 anos da trajetória da aviação no Brasil com imagens de saltos e pilotagens de aviões realizados pela capixaba - revelam uma Rosita sorridente, muito bonita. Hoje, aos 78 anos, ela ainda demonstra uma surpreendente vitalidade e possui o riso fácil. Pessoa afável é harmoniosa nos gestos e traz conversa sempre interessante. Ela tem história e, como a também capixaba Luz Del Fuego (ex-vedete, dançarina e nudista que escandalizou a sociedade brasileira nos anos 50), foi uma mulher avançada para seu tempo, que gostava de quebrar regras de uma sociedade machista, formal e bastante conservadora.

Além de primeira pára-quedista do Brasil, foi a primeira aviadora capixaba e a oitava do país. E com apenas 12 anos, tornou-se a primeira motorista profissional brasileira, ao tirar sua carteira classe "D", em Vitória. Sobre a homenagem no Blumenfest, ela é bem franca: "Estou feliz. Quero uma coroa em vida. Não quero uma coroa depois de morta."

MUSEU – A ex-aviadora e pará-quedista mora no sítio Rosenhawsen, palavra em alemão que quer dizer “morada das rosas”. O sítio fica logo na entrada da cidade de Domingos Martins, a pouco mais de 40 quilômetros de Vitória. Sua casa, verdadeiro museu, apresenta-se sob uma eterna penumbra com ares de mistério: quando Rosita acendeu a luz do grande corredor, a impressão era de que o tempo havia recuado em cem anos. O ambiente ganhou contornos do século XIX; objetos e mobiliários antigos (bancos, castiçais, vidros, cristaleiras, etc.); fotografias e quadros com rostos e estética de um século; o silêncio que não era incomodado pelos sons da modernidade; e a contraluz de uma janela que invadia e tocava com leveza aquele espaço.

Todo esse ambiente antigo se justifica. A casa tem 102 anos, e foi adquirida pelo pai de Rosita, João Ricardo (natural de Berlim, Alemanha), logo após o nascimento dela (15/07/1919), ocorrido em Viana, no Espírito Santo. “Por ser filha única, ele me incentivava em tudo. Papai rezava e minha mãe dizia amém”, ressalta. Seu pai, engenheiro, além de ser especializado em armas, conhecida tudo sobre relógios. Inclusive, foi ele quem fez o projeto do relógio da Praça Oito.

O interesse de Rosita pelas alturas nasceu quando ela ainda era menina, estudante interna do Colégio do Carmo. “Do pátio da escola vi dois aviões alemães cruzarem o céu, baixinho. Perguntei ao meu pai se ali dentro tinha gente. Ele disse que sim. Aí fizemos um trato: primeiro me formaria em professora, depois faria aviação”. E o “trato” foi cumprido: em 1936, depois do magistério, ela seguiu para o Rio de Janeiro, onde estudou no Aeroclube daquele Estado.

Tornou-se então aviadora. Em 1940, durante a Semana da Asa, saiu publicando nos diários cariocas um anúncio que dizia estarem abertas as inscrições para saltos voluntários de pára-quedistas. Rosita resolveu então participar do evento. Só que o presidente do Aeroclube do Brasil, coronel Ivo Borges (hoje, brigadeiro), brecou sua intenção. "Ele achou a idéia maluca e perguntou se eu tinha pai e mãe..." recorda. Pediu então a presença de João Ricardo, que foi ao Rio só para fazer a inscrição da filha. Na entrevista, o coronel perguntou: "E se acontecer alguma coisa à sua filha?". João foi rápido no gatilho: "Ela terá a morte dos seus sonhos."

CINEMAS - No dia do salto, o avião onde Rosita estava foi acompanhado por um outro, onde uma equipe de filmagem registraria o fato. "Pulei sem um pára-quedas reserva. Se falhasse, estaria perdida. Recordo-me quando ele se abriu, e fiquei balançando naquela brisa. Foi maravilhoso", define. O salto teve repercussão em todo o Brasil. Manchete nos noticiários do dia seguinte, a aviadora capixaba esteve no Palácio do Catete e passou a freqüentar as telas dos cinemas nos documentários que antecediam os filmes. "Fiquei em evidência um bom tempo", lembra.

Sua fama no Rio lhe rendeu influências. O Aeroclube do Espírito Santo, conta ela, não tinha um único avião. Com seu prestígio junto a Getúlio Vargas, Rosita conseguiu a primeira aeronave para o clube. Sobre a sua atuação em áreas até então masculinas, Rosita afirma que nunca chegou a ser discriminada. "Tive apoio dentro de minha casa e em todos os lugares em que estive", observa, para em seguida completar: "Nunca dei bola para o que os outros diziam. Aquilo que o meu pai achava que eu poderia fazer, eu fazia". Essa força vinda do pai foi brutalmente cortada em 1955: João Ricardo foi assassinado no quintal de sua casa, em Domingos Martins.

"Sua perda me marcou muito. Tanto que me joguei dentro de sua sepultura na hora do enterro", diz, emocionada. Com a morte do pai, Rosita teve que deixar o Rio, onde trabalhava no Ministério da Aeronáutica, para morar com a mãe em Domingos Martins. "Tive que me conformar com essa mudança. Foi uma volta chocante. E a partir daí minha vida mudou", lembra. Ela deixou a fama que tinha na capital carioca para entrar numa rotina de esquecimento. Abandonou a aviação e o pára-quedismo. Passou a dar aulas em um colégio público na cidade. "Fiquei isolada do mundo", recorda.

'ENCAPSULADA' - Em 1960, Rosita se casou e dois anos depois faleceu o seu único filho. O marido também morreu, em 1972. A mãe ficou doente e morreu no final dos anos 70. "Virei uma dona de casa. Cuidava da propriedade, lia e pintava. Fiquei longe da aventura. Fiquei encapsulada", define. Seus "anos de solidão" duraram 34 anos (de 1955 a 1989), até que conheceu a amiga Oneida Viola, que se tornou uma grande incentivadora sua. "Estava estacionada no tempo, e ganhei novamente a vida com a Oneida. Com ela, voltei a sair e a conviver socialmente", admite.

Hoje, Rosita mora sozinha, mas se diz feliz. "Foi uma vida de grandes alegrias e de grandes perdas. Fui redescoberta pela cidade, pelo Estado e pelos amigos e hoje, novamente, estou no auge", exulta. No inicio do ano passado, a aviadora fez um novo salto, em comemoração aos 55 anos de sua "epopéia". E ela já planeja mais um feito: "E quando completar 80 anos, quero saltar de novo e ser recebida com champanhe e flores", diz Rosita, com os seus olhos azuis brilhando.

No momento, a pára-quedista trabalha em um projeto menos arriscado que suas aventuras aéreas, mas - como não poderia deixar de ser - que alça grandes e arriscados vôos: um livro, uma biografia, que tem o título provisório de Como o Diabo Não Gosta. "Esta obra só vai poder ser publicada depois de minha morte. Não escondo nomes, e conto casos bons e ruins que aconteceram em minha vida", previne. Uma definição para sua vida? "Não vivi pela metade. Vivi com emoção", conclui.

 

Nota do site: O autor trabalhou como repórter do Caderno 2, de A Gazeta-ES, no período de 1990 à 1998, quando produziu várias matérias que recontam acontecimentos e registros da História do Espírito Santo. Muitas vezes em parceria do repórter fotográfico Gildo Loyola.


Fonte: Anjos e Diabos do Espírito Santo, 2004
Autor: José Carlos Mattedi
Compilação: Walter de Aguiar Filho, agosto/2016

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