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Marta Wolkartt: Deus no Céu e Dona Marta em Santa Teresa

Deus no Céu e Dona Marta Wolkartt em Santa Teresa - Foto: José Carlos Mattedi

Esta matéria nasceu a partir da leitura de Espírito Santo - Encontro das Raças (1983), bela publicação do jornalista Rogério Medeiros, cujas façanhas da alemã Marta Wolkartt enriquecem a obra. Decidi ir atrás da história da personagem, buscando novos fatos... Em nossa passagem pela cidadezinha de Vinte e Cinco de Julho, deserta e perdida entre montanhas, sentimos alguma coisa de estranho no ar, como se os olhos de Marta a tudo vigiassem...

Publicação em A GAZETA: maio de 1998.

 

Deus no Céu e Dona Marta em Santa Teresa

No distrito de Vinte e Cinco de Julho, Santa Teresa, a alemã Marta Wolkartt fez história no século XIX ao atuar como um 'coronel de saias'

Cenário de lutas e desafios no passado, a região montanhosa do Espírito Santo guarda rica história sobre a colonização européia. Na metade do século XIX chegaram os primeiros imigrantes, que vinham atraídos pela posse da terra e pelo sonho da prosperidade. Desbravadores de uma região inóspita tiveram que vencer doenças, animais selvagens e a solidão. Muitos morreram, outros prosperaram. De regime patriarcal, as famílias tinham nos homens o arreio do lar, colocando-se pela força e pelas armas. Mas, entre "coronéis" e valentões, uma mulher conseguiu se destacar: a alemã Marta Wolkartt. Numa região sem leis onde a ordem era imposta à bala, ela fez história. Era uma espécie de "coronel de saias" no povoado de Vinte de Cinco de julho, em Santa Teresa: comandava jagunços, mandava surrar os devedores e prendia no porão da sua casa os desafetos. Seus feitos foram registrados no livro Espírito Santo - Encontro das Raças, do jornalista Rogério Medeiros. O Caderno Dois foi ao local para reviver sua história.

Parecia cena de cinema. Duas juntas de boi puxavam um estrado e sobre este, sentada numa cadeira de vime, seguia ela. Imponente, olhava tudo por cima. Seus cabelos brancos contrastavam com sua roupa negra. Na porta das casas, as mulheres acenavam com a mão, enquanto os homens a saudavam retirando o chapéu da cabeça e colocando-o junto ao peito. Assim andava a alemã Marta Wolkartt, já idosa, visitando sua fazenda e colonos. Mesmo doente e prevendo a morte, ela não perdia a majestade: fez sua história, repleta de "maldades e bondades”. Marta foi um “coronel de saias" naquelas bandas, final do século passado e início deste.

Marta Wolkartt existiu numa época em que a mulher vivia para servir ao homem. Mas, ao contrário, fez-se respeitada. Daí sua fama. Morreu há 65 anos, mas sua história permanece viva na memória dos moradores da região. Chefiava um bando de jagunços e simplesmente, olhar para ela de "cara virada", era mexer com uma das primeiras colônias de imigrantes alemães, ajudando no desbravamento do interior capixaba. Sua vida vale um registro.

Um flashback nos remete à Alemanha. Em 29 de setembro de 1850, nascia Marta Emalina Adelaida Schimith. Casou-se com o suíço Johnn Sebastian Wolkartt (nascido em 1848), herdando seu sobrenome. Vieram para o Brasil em 1871, com a intenção de se estabelecerem no Rio Grande do Sul, onde já residiam alguns Wolkartt. No dia 13 de dezembro, o casal chegou a Santa Leopoldina, indo depois para Santa Teresa.

TROPEIROS - Instalou-se na região em 25 de julho do ano seguinte. Tomou posse de vasta extensão de terra e ali plantou café. Colhia por ano 14 mil sacas do produto, que era transportado em tropas de burros até Santa Leopoldina, de onde seguia para Vitória através do Rio Santa Maria. Oito tropas faziam o transporte, com 80 animais. Com o tempo, as boas colheitas de café fizeram prosperar o local e a fazenda de Dona Marta tornou-se ponto de passagem de tropeiros. "Ela doou, então, uma área para fazer o vilarejo, que foi batizado com a data de sua chegada à região", conta Emalina, 70 anos, bisneta da alemã.

Emalina vive numa casa modesta e é um dos poucos descendentes dos Wolkartt que ainda moram em Vinte e Cinco de Julho. Ocupa uma pequena parte da antiga fazenda - o restante foi vendido ou tomado por credores. O poder dos antepassados mora agora apenas na memória da família. Da bisavó, Emalina guarda uma foto, um velho mapa da fazenda (feito pelo agrimensor Coinacy da Fonseca e datado de 05/06/1877) e uma colher de cobre. "São relíquias" ressalva. Sobre a bisavó é taxativa: "Ela era mandona, valente e muito viva". Realmente. Conta-se no distrito que ninguém a passava para trás.

No interior do Estado, naquela época, havia pouca autoridade policial, logo a ordem e as leis eram ditadas pelos coronéis. Emalina diz que Marta foi a primeira “delegada” loca: “Na terra quem mandava era ela, e estava acabado”. E completa: “Todos que precisavam de ajuda, buscavam vovó”. Essa liderança era imposta com armas e jagunços, que, dizem, amedrontavam todos. A figura de Dona Marta, imponente e pouco chegada à beleza, impunha também respeito: tinha nariz grande e pêlos no rosto; era alta e bastante gorda.

GUERRA – Moradores do distrito falam hoje em "rastro de sangue" deixado pela alemã, mas não se sabe onde começa a verdade e onde termina a lenda. Todos, no entanto, concordam, num ponto: a violência com que se impunha. As intrigas com os vizinhos, por exemplo, eram resolvidas à bala. Dois casos ficaram famosos: a briga com o fazendeiro Augusto Coelho e a perseguição a Miguel Gonring. O "coronel" Augusto era também durão e mantinha sérias desavenças com a alemã. Moravam em Boa Família, hoje Ibiraçu. Certa vez, Dona Marta comprou dele animais de carga e de montaria. Só que não pagou. Iniciou-se, então, uma guerra.

O "coronel" mandou um recado: ou pagava, ou mandava soltar uma boiada em suas plantações. A alemã duvidou de sua coragem. Os animais  de Augusto Coelho invadiram sua roça, destruindo tudo. Dona Marta saldou a dívida, mas jurou vingança. Tempos depois, mandou um bando de jagunços, na surdina, pegar o "coronel" de surpresa. Só que este já tinha sido avisado, e seus homens aguardavam o inimigo bem armados. Deu-se um embate infernal e o tiroteio resultou em várias mortes. Os jagunços sobreviventes da alemã fugiram correndo pela mata.

Já Miguel Gonring foi vítima de uma briga entre marido e mulher. Convidado por João Sebastião (nome aportuguesado do suíço), ele foi jantar com o casal. Só que aconteceu o inusitado: uma discussão entre Marta e João fez voar pratos, vasilhas e talheres pela sala, todos arremessados pela furiosa alemã, que ainda agrediu o marido com palavrões. Restando apenas o prato de Miguel, ela tentou apanhá-lo, o que foi impedida. Sobrou então para o convidado, que passou a ser alvo de suas agressões e pontaria. Assustado, ele saiu de fininho.

CARABINA - Acontece que Dona Marta não era de esquecer seus desafetos. Dias depois, Miguel foi procurado por um de seus jagunços, que fez uma proposta para comprar sua carabina papo-amarelo (Winchester 44). "Abre o preço, seu Miguel", disse o capataz. A arma era de estimação, e como não queria vender, deu um preço absurdo para se livrar do comprador. O tiro saiu pela culatra: o jagunço tirou um maço de notas de um embornal e levou a carabina. Essa compra fazia parte do plano da alemã: com a arma em seu poder, seria fácil matá-lo.

Três dias depois, a casa de Miguel foi cercada por jagunços. Sofreu golpes de facão e foice, ficando estendido na sala, ensangüentado. Milagrosamente, Miguel conseguiu sobreviver. Pensando o terem liquidado, os homens deixaram o local e seguiram para Barracão de Petrópolis (próximo a Vinte e Cinco de Julho) para matar um tal de Vivaldi. Serviço feito: Vivaldi morreu degolado. Essa história é contada por Maria Gonring, 82 anos, filha de Miguel - apesar das desavenças no passado, não ficaram mágoas e as duas famílias vivem em harmonia.

Dizem que Dona Marta usava o porão, debaixo de sua casa, para prender desafetos. "Lá tinha uma cadeia. E quando ela não mandava prender, mandava matar", revela Américo Loss, 83 anos, que conheceu a alemã quando criança. "E tem enterrado ali libras esterlinas e ouro. É só cavar e achar", garante Lázaro, filho de Emalina e tataraneto da alemã. Mas é certo que ela comandava a região com mão-de-ferro: suas penas iam de uma simples surra à perda da própria vida. Apesar dessa "face do mal", Marta Wolkartt tinha um outro lado sensível: gostava de música e festas. A primeira banda de música local foi uma iniciativa sua, sendo formada por imigrantes europeus.

PONTAPÉS - Gostava também de ver os outros se divertirem. Por isso, volta e meia, promovia bailes em sua casa que, por sinal, eram famosos. Agora, coitado daquele que aparecia por lá sem ser convidado: era expulso a pontapés. De dentro de um quarto, ela olhava para a sala através de um vidro. Os casais podiam dançar, mas jamais ter intimidades. E todos respeitavam, pois ordem de Dona Marta não era para ser discutida, mas cumprida. Conta Emalina que sua bisavó também gostava de flores - o jardim e o interior da residência eram tomados por cravos.

"Num baile, um rapaz de nome Henrique Bicher levou uma surra depois de arrancar um dos cravos e colocar na lapela do paletó. Ela viu, e não o perdoou", comenta Emalina, que não acredita nas mortes atribuídas a sua antepassada. "Meu pai nunca falou em mortes. Ela era brava, mas muito boa", desconversa. Bem, a verdade é que ninguém podia com Dona Marta, nem mesmo o marido João, com quem "teve" seis filhos (Germano, Franz, Roberto, Ana, Matilde e Vitória, a Gorducha ). Em casa, como na rua, ela dava as ordens. João, contam os moradores do vilarejo, era um "cordeirinho". Além das agruras dela, teve que agüentar o adultério.

A alemã adorava homens negros, e costumava levar para cama alguns de seus jagunços. "Os três filhos homens que são os mais velhos, eram do João. As três mulheres eram de outros", revela Américo. Por que tanta certeza? "Nasceram mulatas". Emalina confirma: "Lembro da Matilde, que era bem morena e tinha beiçola". Muitos dos fatos conhecidos por Américo foram relatados por Malvina Clark, amiga de Marta desde a Alemanha, à sua mãe. Em 1902, envergonhado com as "puladas de cerca" da mulher, João preferiu a tragédia. Sumiu de casa e foi encontrado cinco dias depois pendurado numa árvore, enforcado.

FORCA - O suicídio parecia a solução dos homens da família para limpar a honra: o pai de João se matou na Suíça e o filho deste, Roberto (avô de Emalina), também preferiu a forca, depois que soube do adultério de sua mulher. A filha caçula, Ana, também tinha as mesmas preferências da mãe: casou-se com um dos jagunços, chamado Américo Freitas. Após a morte do marido, Dona Marta revelou uma outra faceta: bondade. Não perdeu a aspereza, mas se entregou a atos de caridade. É bom frisar que, apesar da fama de durona, a alemã sempre atendeu à população. "Vovó era formada em Farmácia e tratava dos doentes", sublinha Emalina. Conta-se que ela atendia aos necessitados receitando remédios com base na homeopatia. Aos pobres dava alimento e dinheiro, e criou nove meninas órfãs.

Entretanto, sua bondade caminhava lado a lado com outros valores. Em 1928, por exemplo, ela construiu uma igreja em sua propriedade. Mas não fez isso num ato de fé cristã. Ao contrário. Foi tudo por vaidade. Marta era luterana, mas resolveu ser católica para ter mais influência sobre os moradores e para não ceder ao orgulho. Tinha uma rixa com Ana Casotti, vizinha que tinha uma capela em suas terras, freqüentada pela comunidade. "O Frei Dionisio foi até a casa de Dona Marta para batizá-la, mas ela não quis para não ter que freqüentar a igreja da vizinha", diz Américo.

A solução encontrada foi ter sua própria igreja. Deixou-se batizar e comprou três santos: São Benedito ("por gostar de negros"), Santo Antônio e Santa Marta (sugestivo nome). Nas missas, sempre chegava após o início do culto "para que a observassem", mas não se juntava aos fiéis. "Ficava lá em cima, no altar, sentada numa grande cadeira bonita, ao lado do padre", lembra Américo, que presenciou essa cena. Ou seja, volta e meia inventava alguma coisa para mostrar superioridade.

MORTE - Depois disso, Dona Marta ficou muito doente. A fazenda já estava em decadência e os devedores batiam à porta. Passou a visitar suas terras e colonos sentada numa cadeira de vime, sobre um estrado, puxado por duas juntas de boi. "Quando ficou de cama, só aceitava visita dos ricos, jamais dos pobres", conta Américo. Sua morte ocorreu no dia 1º de julho de 1933, e teve cenas surrealistas. E, mais uma vez, ela teve sua autoridade respeitada, mesmo com os mortais preferindo não atender a seus desejos. Pouco antes de morrer, Marta Wolkartt disse: "Não quero lágrimas nem tristeza. Quero alegria, e minha banda deve tocar para mim".

Todos em Vinte e Cinco de Julho sabem dessa história, que foi presenciada por Américo e Otávio Corona (82 anos). Na morte de alguém, era costume naqueles tempos tocar o sino da igreja. Na passagem do cortejo de Dona Marta para o cemitério, o genro Américo Freitas tentou repicar o sino, mas este caiu. "Afundou alguns centímetros no chão, e quase arrancou os dedos do seu pé. Eu era criança, mas vi tudo", diz Otávio. Um dos colonos foi, então, até a capela de Ana Casotti e deu-se o inusitado: a corda arrebentou e nada do badalo do sino - ordem de Dona Marta era para ser respeitada, mesmo depois de morta.

 

Nota do site: O autor trabalhou como repórter do Caderno 2, de A Gazeta-ES, no período de 1990 à 1998, quando produziu várias matérias que recontam acontecimentos e registros da História do Espírito Santo. Muitas vezes em parceria do repórter fotográfico Gildo Loyola.


Fonte: Anjos e Diabos do Espírito Santo, 2004
Autor: José Carlos Mattedi
Compilação: Walter de Aguiar Filho, agosto/2016

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