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A Brisa sob a Ponte Seca – Por Anthony Marques

Ponte Seca - Vila Rubim

"(...) o vício que deitou suas raízes de sofrimento ao meu lado, desde a idade da razão — que sobe ao céu, bate em mim, joga-me ao chão e me arrasta. (...)" Rimbaud

 

Com passos firmes e decididos de um vitorioso, Maxwell caminha com o punho direito cerrado parecendo carregar a chave do baú de seu tesouro. Um passo de cada vez, passos de um gigante, passos de um homem com uma missão a cumprir, passos compassados numa cadência cheia de ginga e malemolência, um passo após o outro, ininterruptos, olhando para frente. Eram pequenos passos de um homem, que tinha a nítida sensação de serem "grandes saltos para a humanidade". A cidade era pequena demais para ele e seu ego demasiadamente humano de um super-homem, em seu eterno retorno ao marco zero. Retornava — "like a Rolling Stone..."— da Ilha que rolam as pedras, onde foi para mais uma vez atirar no escuro e negociar com o vapor barato, para assim poder experimentar as luzes da cidade de outro ponto de vista, de outro ângulo, o ar da cidade que liberta, sob outra ótica, com defeitos especiais e assim, como o médico e o monstro, trocar de máscara como se troca de camisa, sendo que a máscara de bom moço não lhe cabia mais. Sentia-se O Gigante Jett Rink (James Dean) ao achar petróleo em sua propriedade, caminhando como se caminha em Assim Caminha a Humanidade. "Tudo é vaidade, vaidade das vaidades, tudo é vaidade", mesmo quando suas armas de sedução, há algum tempo, já não tinham mais munição, porque todos os caminhos levavam à Ponte Seca. Caminhos fechados, de um corpo aberto, ou melhor: Todos seus caminhos levavam para debaixo da Ponte Seca, onde existe um ecossistema frágil devido a uma vazão torrencial de um rio caudaloso de diluição moral que flui sob ela. Ponte sob a qual a correnteza forte desse rio de moral diluída o agarrou e o arrastou desde o corpo até o cerne de sua alma e o aprisionou lá em um redemoinho de onde não se vê saída.

No início ele sentia um encantamento quase infantil quando ainda se maravilhava com as cores, o amarelo em particular e a incidência da luz solar sobre os objetos, mas foi em busca do tempo perdido que ele se rendeu a si mesmo sem passar pelas vias dolorosas e cansativas do aprendizado, ficou noiado e foi por essa época que sua namorada o deixou, depois de muito observar nele suas nóias de viciado que deram seus primeiros sinais, além de uma tatuagem de presidiário sobre a palma da mão direita, entre o polegar e o indicador onde se lia: BRIZA. O tatuador não sabia escrever muito bem, queria escrever Brisa.

A primeira vez que ele usou a droga foi no início de uma tarde em novembro com um colega que veio a se internar numa clínica a tempo de conseguir fugir do mal maior. Maxwell tinha vinte e três anos, tinha apenas feito aniversário. Assim como Marie Antoniette J. J. Habsbourg-Lorraine, a Naïfe que foi decapitada, ele também perdeu a cabeça e como ela, nasceu num dia de finados e ainda por cima de um ano bissexto, o que não necessariamente foi tido como mau agouro pela família, mas tampouco foi visto com muito bons olhos. O seu colega usou de um marketing arrojado e uma propaganda agressiva de satisfação garantida, que aquilo seria a única coisa de que precisaria para sentir-se feliz. Maxwell sentiu-se de fato como um gladiador entrando na arena, seu coração bateu como uma bomba relógio, sua capacidade cerebral teve sua potência aumentada a de um milhão de sóis e os pássaros que cantavam soava como se estivessem recitando poemas de Baudelaire. O que ele não esperava era que sua felicidade fosse mais frágil que um castelo de areia que viria a desmoronar com a primeira onda mais forte. Max saiu pelo centro da cidade na hora do rush ouvindo seu ipod e dançando como um palhaço entre a multidão. Para ele, foi a expressão máxima de liberdade! Deixou sua timidez de lado, se soltou e dançou roques clássicos cantando alto: "Please to meet you, hope you guess my name..." fazendo perguntas aos transeuntes que o olhavam assustados: -"How does it feel?" e "Are you experienced?" conforme as músicas tocavam no seu ouvido.

Ao voltar para casa já era noite. Maxwell sentiu um vazio existencial por dentro, mas já era tarde para isso. Sorriu como um idiota, quando na verdade o coringa é quem estava rindo dele. No dia seguinte, foi à aula como sempre fazia todas as manhãs, mas a tarde, instigado, procurou seu colega que mostrou-lhe o caminho das pedras e ao entardecer, na hora do rush no centro, repetiu o mesmo show idiota dançando e cantando no meio da multidão ao som do ipod que ele tanto amava com sessenta Gigas de boa música que não durou nem mais duas semanas. Seu ipod virou fumaça, foi usado como moeda de escambo na mão do baleiro, em troca de algumas pedras, que apagou toda boa música que havia e gravou funks e raps.

A Ponte Seca, assim como o labirinto de Dédalos — onde morava o minotauro da lenda — passou aos poucos a ser sua casa. Maxwell, filho de Pastor evangélico, menino de cidade pequena do interior, com valores éticos de berço, enraizado pela criação no ceio de uma família que a gerações vinha sendo criada na religião Cristã, que nunca pensou que um dia iria morar debaixo da Ponte, e ainda sem a sua Ariadne, a Espada mágica e o novelo de lã para lhe mostrar a saída, ficou numa teia aprisionado para sempre como Penélope, que tecia o manto de dia para desmanchá-lo a noite.

Lá estava ele se dirigindo de novo para o seu novo lar doce lar com passos firmes e decididos de um Gigante vitorioso, como que atraído por um imã, para onde mais uma vez o filho pródigo, retorna, descendo a ladeira da Ilha onde rolam as pedras, cheio de empáfia, carregando as compras da sua nova família dentro do punho fechado. Família esta cujos membros ele chamava de semelhantes, vivendo, como uma matilha de cães danados, das sobras da sociedade moderna que não tinha tempo para ele, nem para seus semelhantes.

Maxwell, que havia sete meses largado o quarto ano de medicina, tornou-se o profeta químico das almas penadas do corredor da morte. Viviam juntos debaixo da Ponte Seca, excluídos socialmente, capazes de coisas que qualquer pessoa sã duvida, vampiros desdentados, já que todos ali já haviam perdido alguns dentes, vampiros da noite, aqueles que haviam desistido de seu lugar ao sol, onde todos os gatos eram pardos, e já não podiam suportar mais a luz do dia porque revelava suas verdadeiras cores e traços carcomidos que sobressaltava os ossos da face salientes. Consequência do teor químico do sangue proveniente das pedras que os mantinham vivos e iam até as últimas consequências para conseguirem sempre mais.

Mais um dia terminava e a noite caía. Uns raios tímidos do crepúsculo ainda clareavam o céu a Oeste e as últimas portas do comércio da Vila Rubim se fechavam. Os vampiros vinham de todas as partes da cidade atrás do alimento, do sangue que os mantinham vivos para mais uma noite de festival, no circo dos horrores, debaixo da Ponte Seca.

Nesta época, a única coisa que Maxwell ainda trazia consigo, além das roupas do corpo, era um martelo com a cabeça prateada de metal cromado, que ele achava que lhe dava poder como o do deus nórdico Thor. Já havia perdido 17 quilos de seu peso original, estava pele e osso. Não se lembrava da última vez que tomou banho, fez a barba ou que tinha posto algo sólido no estômago. Só bebia água de torneira, de chuva, cachaça, paratudo, jurubeba, conhaque de alcatrão... Sempre que conseguia dormir, quando acordava sentia como se tivesse sido atropelado por um trem de carga, mas logo passava a sensação de desânimo assim que dava o primeiro tapa no seu cachimbo de Gandalfo e sentia a primeira brisa do dia. Decidiu abolir o sono.

Após um longo período sem notícias, seu pai veio do interior para visitá-lo. Chegando, encontrou seu apartamento no centro — comprado com muito esforço para manter o filho estudando na capital — em total desordem como se tivesse sido revirado por um bando de ladrões. Aliada à sujeira de restos de comida, havia revistas e folhas de jornais espalhadas pelo chão, vidro quebrado, utensílios domésticos, livros caros de medicina picotados, jogados pelo chão do apartamento, e seu filho inerte sem ter ido à aula de novo. Não tinha mais geladeira, fogão, televisão, armário de cozinha, nada... O apartamento estava pelado. Travaram uma briga feia quando o pai encontrou seu filho naquele estado deplorável. Foi a última vez que a família teve notícias dele... Vivo...

Naquele dia abandonou oficialmente a faculdade de medicina e a civilização humana. Mudou-se de uma vez por todas para debaixo da Ponte Seca, e perambulava pelas ruas e becos da cidade. Dia fatídico em que sua degradação acentuou-se num mergulho vertiginoso de cabeça nas pedras de crack e cristais de metanfetaminas. Tentava contar até três para desaparecer como num passe de mágica, mas não conseguia se concentrar em contar nem até dois. De passo em passo ele vinha de mais uma investida que fez no lado selvagem da cidade, trazendo as compras do dia para os seus semelhantes. Ele guardava em segredo um plano traçado que executaria algum dia. Chegava com um passo de cada vez, passos estudados, ritmo perfeito.

Max não queria ajuda profissional. Já tinha sido preso, levado tapa na cara de polícia e traficante, já tinha vendido o corpo a homossexuais que o possuíram sem proteção, tinha roubado, ido ao fundo mais profundo do poço que se podia chegar um ser humano e aprendeu da forma mais dura que não se pode torturar um pássaro para obrigá-lo a cantar.

Caía uma chuva fina há três dias... Max já estava andando descalço há algumas semanas, com frio, todo molhado, tossindo e achava que daquela noite ele não ia passar sem botar seu plano em ação. Perdeu mais um dente naquele dia... Nervoso apertou mais forte o maxilar e um dente da frente que já estava mole caiu... Ele achou graça. Chegando à Ponte Seca, desceu por uma de suas laterais pelo meio do lixo, no afã de chegar logo, e cortou o pé, o corte foi profundo, mas ele não deu muita atenção. Entrou para debaixo da Ponte onde alguns de seus semelhantes o esperavam ansiosos, foi recebido com festa, já era noite fechada, abriu a mão e distribuiu as compras que tinha levado, olhou o talho no pé com sangue vivo, o qual não deu a mínima atenção. Foi logo ao que mais interessava, pegou uma lata de Coca-Cola, já furada, botou cinza de cigarro e botou uma pedra, enfiou a mão no bolso esquerdo, pegou o isqueiro levou o dedo à pedra do isqueiro, girou, encontrando o dispositivo do gás e se fez luz, através de uma chama alta. Maxwell olhou vesgo para a chama, viu a tattoo na mão... BRIZA. Aproximou a chama da lata e inalou pela boca através do buraco na lata de beber fumaça, ouvindo o estalido das pedras, fez pressão e sentiu um barato como um êxtase quase imediato que correu para seu pulmão, depois entrando na sua corrente sanguínea, chegando ao cérebro e invadindo o seu sistema nervoso central. Sentiu a euforia da brisa... Foi ao delírio e repetiu a ação mais duas vezes, fumando metal derretido para minar a sua saúde que já não era mais de ferro.

Olhou para o pé, viu uma poça de sangue, o corte tinha sido muito profundo e o sangue brotava por entre a terra em sua ferida aberta. Já estava muito escuro, ele acendeu o isqueiro e tirou a quarta pedra e repetiu a ação. Não sentia nenhuma dor, nem tampouco estava preocupado, mas ele não gostava de sangue, talvez fosse por isso que tinha largado a medicina. Tirou a camisa, se levantou, limpou o pé numa poça de água, e fez um curativo com a camisa na tentativa de estancar o sangue, fez o melhor que pôde. A chuva tinha engrossado... Chegou uma moça, uma menina nova, correndo da chuva. Maxwell a conhecia de vista, devia ter uns quinze anos. Ela veio acompanhada de outra que tinha feito as sobrancelhas, raspado as pernas e o peito, botado silicone e ele virou ela. Já era tarde da noite, a mocinha tinha vindo de um programa e olhou em volta, forçou o olhar e teve que fixá-lo bem, porque Maxwell agora estava numa fase em que era muito difícil de ser enxergado. Como a moça o conhecia de vista, perguntou se ele poderia buscar umas pedras e confiou-lhe cem reais. Ele estendeu o braço, pegou as notas e tentou se levantar como um cachorrinho bem mandado que perdeu o orgulho, mas não conseguiu. A gravidade pesava. A mocinha então pegou o dinheiro de volta e encontrou outro que foi em seu lugar. Uma tempestade de raiva se formou em seus olhos, mas estavam cansados e seu corpo já estava anestesiado e não lhe obedecia mais. Aquele gladiador que entrou na arena na primeira vez em que sentiu a brisa já estava cansado de guerra e algo o grudava ao chão, uma pressão esotérica, extracorpórea, uma força que vinha dele, mas era bem maior que ele.

O cara que foi à fonte buscar o veneno chegou com as pedrinhas mágicas de Merlim que transportava a alma ao mundo surreal dos sonhos e delírios. Todos ali foram, eram unidos em sua sociedade democrática, menos ele que não tinha forças e estava delirando de uma febre estranha, ele estava sentindo frio, muito frio, a boca seca, muito seca, o escuro foi ficando cada vez mais profundo e os sons da cidade que dormia foram ficando cada vez mais silenciosos e Maxwell finalmente, aos poucos, dormiu e descansou sua alma atormentada.

O pano da camisa que ele usara como curativo estava encharcado de sangue e ele estava pálido, debaixo de seu pé havia uma grande poça de sangue. Aos poucos, um a um foi deixando a sala de uso — a Ponte Seca.

Quando amanheceu, só havia um corpo sentado exatamente como ele tinha chegado lá, com um plano de matar o dono da boca de pedras, a marteladas. O corpo foi levado para o IML sem documentos, só tinha um martelo com a cabeça cromada, vestígios de crack a sua volta, um isqueiro na sua mão e só. O corpo indigente passou meses no IML sem ser procurado, então foi entregue à faculdade de medicina para servir como cobaia para estudos. Uma colega de faculdade, num susto, o reconheceu no formol, era a sua ex-namorada... Que tristeza... Ela o reconheceu através da tatuagem que a marcou profundamente... BRIZA. Ele tinha sido o primeiro namorado dela, e o fato dela reconhecê-lo através da tatuagem, deixou-a profundamente deprimida. A dentista dele foi chamada e sua identidade confirmada através dos dentes que ainda lhe restavam. Sua família então foi avisada. E o corpo que era para ter sido deixado em silêncio veio à tona, foi levado a sua cidade natal para ser enterrado com muito choro e por coincidência, num dia antes da data do seu nascimento, um dia antes de finados. Foi homenageado com honras de bom moço, filho da cidade, morto em acidente automobilístico, com a presença do prefeito, vários vereadores, integrantes ilustres da sociedade local, fiéis da igreja onde seu pai era pastor, amigos e familiares. Seu pai celebrou a cerimônia, uma cerimônia curta. Estava muito calor, seu pai jogou o primeiro punhado de terra ao terminar o poema da tristeza e antes que todos seguissem com as suas vidas, ele terminou dizendo:

- "Cinzas às cinzas. Pó ao pó... Palavras caladas, silenciadas as rimas".

 

Fonte: Escritos de Vitória, 27 - Pontes, 2010
Autor: Anthony Marques
Nascido nos EUA em 1963, filho de pais brasileiros, mudou-se para Vitória em 1973. Morou de 1982 à 1994 em Nova York, onde estudou produção e recepção de textos, Contos e Roteiros. Tem Poema publicado nos EUA, um livro aprovado pela Lei Rubem Braga e um conto publicado no "Escritos de Vitória, 26": O Conto do Vigário do Segredo de Vaguinho, Primeiro capítulo do seu livro "O Psicodélico Pacto Surreal".
Compilação: Walter de Aguiar Filho, maio/2020

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