A Cabula - Prática Cultural Religiosa Africana
A Cabula, enquanto prática cultural religiosa africana, foi objeto de estudo pelo Bispo D. João Batista Nery, com o propósito de combatê-la.
A motivação de D. João Batista foi, portanto, racista, fanática e intolerante. Isso faz com que seu estudo seja constituído, em grande parte, muito mais em argumentos justificadores da repressão aos negros do que numa observação de um fenômeno cultural e prática religiosa.
Dos dados que o bispo obteve e tornou públicos é que vieram todas as informações básicas acerca da Cabula, e dela lançaram mão vários outros pesquisadores, acrescentando ou esclarecendo pontos. Um deles, aliás, aproveitou o texto do bispo para também dar vazão ao seu preconceito contra os negros. Depois de criticar formas religiosas negras norte-americanas sincretizadas com o protestantismo, compara-as à Cabula nestes termos:
Não é preciso ir aos Estados Unidos para testemunhar cenas como estas em que os negros vestem roupagens fetichistas nas suas práticas pseudo-cristãs, prova evidente da transformação assinalada.
Entre os casos que poderíamos citar, tomamos, por sua importância a descrição da Cabula, que mais não é do que uma instituição religiosa africana sob vestes católicas(55).
E reproduziu as partes do texto do bispo, naquilo que havia de mais importante em termos de reforçar sua visão preconceituosa.
O bispo dizia que a Cabula era uma “seita” de origem africana e que antes da libertação dos escravos era apenas praticada pelos pretos. Depois da lei de 13 de maio, sua prática generalizou-se, crescendo o número de adeptos, chegando a oito mil iniciados só na região do norte do Estado do Espírito Santo.
Já ao seu tempo, o bispo percebia que a Cabula sofria modificações em seus ritos e que haviam desaparecido alguns rituais e cânticos. E destacava que “o tom misterioso e tímido com que nos falavam a seu respeito e a notícia da grande quantidade de iniciados ainda existentes, nos levaram, não só a procurar do púlpito combater, como também a tomar algumas notas”. E percebia também que, por força do combate promovido contra a Cabula, muitos negros estavam abandonando sua prática e fornecendo informações que facilitavam a perseguição. A Cabula
é semelhante ao espiritismo e à maçonaria. Como o espiritismo acredita na direção imediata de um bom Espírito, chamado Tatá, que se encarna nos indivíduos e assim mais de perto os dirige em suas necessidades temporais e espirituais. Como a maçonaria obriga seus adeptos – chamados camanás (iniciados), para distinguir dos caialós (profanos) – a segredo absoluto e tem suas iniciações, suas palavras sagradas, seus atos, seus gestos, recursos particulares para se reconhecerem em público os irmãos(56).
O ritual de Cabula é dividido em duas mesas: a de Santa Bárbara e a de Santa Maria. A primeira é feita em Terreiro próprio e especial, podendo estar presentes pessoas de diferentes idades, sexos e origens. É Mesa “que só faz o bem”, diferente, por exemplo, da Mesa de Santa Maria, “que é para o mal”, e cujo ritual é feito no meio da mata.
Santa Bárbara é representada pela imagem mesma da Santa e por umas pedrinhas pretas que minam água, as chamadas pedras de Santa Bárbara, Mas, no altar, se põem outros santos como São Jorge, Santo Antônio e mais o Abado, Babalô e Ogum(57).
No Terreiro há dois tambores. Um grande, o “luano”, e outro pequeno, o “luana”. Um par de tambores que os “batedores cavalgam” e, compassadamente, batem com as mãos. Aliás, essa é a posição ainda hoje assumida pelos tocadores de tambores dos Jongos e dos Congos.
Conforme o bispo, as mesas de Santa Bárbara e Santa Maria
subdividiam-se em muitas outras, com as mesmas denominações. Havia uma terceira Mesa, de São Cosme e São Damião, mais misteriosa e mais central, que exercia uma espécie de fiscalização suprema sobre as duas outras. O chefe de cada Mesa tem o nome Embanda e é ajudado nos trabalhos por outro que se chama Cambone. A reunião dos Camanás forma a Energia. Na Umbanda atual é a Gira.
As reuniões são secretas, ora em uma ou outra casa, mas comumente nas florestas, à noite. Na hora combinada, todos de roupas brancas, descalços, se dirigem ao Camucite (templo).
Aparece então o Embanda, descalço, com um lenço amarrado na cabeça, ou com o camolelê (espécie de gorro), tendo um cinto de pano rendado.
A presença do chefe, os Camanás também amarram seus lenços na cabeça. Segue-se uma espécie de oração preparatória, feita de joelhos diante da Mesa. Ergue-se o Embanda, levanta os olhos ao céu, concentra o espírito e tira o primeiro nimbu (canto):
Dai-me licença, carunga,
Dai-me licença, tatá,
Dai-me licença, bacula,
Que o embanda qué quendá(58).
Essa e outras cantigas eram acompanhadas de palmas compassadas, enquanto o
Embanda em contorções, virando e revirando os olhos, faz trejeitos, bate no peito com as mãos fechadas e compassadamente, emitindo roncos profundos e soltando afinal um grito.
O Cambone traz um copo de vinho e uma raiz.
O Embanda mastiga a referida raiz e bebe o vinho. Sorve o fumo do incenso, queimando neste momento em um vaso, e entoa o segundo nimbu:
Báculo no ar
Me queira na mesa,
Me tombo girar.
O Embanda, ora dançando ao bater compassado das palmas, ora em êxtase, recebe do Cambone o candaru (brasa em que foi queimado o incenso), trinca nos dentes e começa a despedir chispas pela boca, entoando então o terceiro nimbu:
Me chama três candaru
Me chama Três Tatá
Sou Embanda novo (ou velho)
Hoje venho curimbá(59).
Quando é cantado o ponto “para receber o Santo”, todos os presentes cantam repetidamente e alguns “recebem” o seu Santo, entrando em transe.
Há muitos outros “pontos” como, por exemplo, este, da saudação a Ogum:
Sarava Ogum
Ogum meu pai,
Ó Jorge, ó Jorge
Vem da Loanda(60).
Pela descrição do bispo, “receber o Santo” é assim: em vários pontos do local joga-se a “emba” ou “pemba”, um tipo de pó aromático preparado com ervas e outros materiais sagrados, para o ar. O objetivo da pemba é afastar os maus espíritos e cegar os profanos, não devassando assim seus sagrados mistérios. Em certo instante, um deles, geralmente o Embanda, balança o corpo, pende a cabeça e rola pelo chão em contorções. A fisionomia torna-se contraída, todo o corpo fica rígido e são emitidos alguns sons estranhos. É o Santé ou o Santo que dele se apoderou.
Às vezes um simples Camaná merece ter o Santé. Nesse período fala e discorre, mesmo sem ter aprendido, sobre as coisas cabulares, como o mais perfeito e sabido dos Embandas. Os que são sujeitos a ter Santé constituem uma espécie de médium do espiritismo e quase sempre terminam Embandas.
O objetivo desejado pelos seus adeptos é a incorporação de um espírito que os guie, ajude e proteja em suas necessidades.
Todos trabalham e se esforçam para ter o Santé, sujeitando para isso a diversas abstinências e penitências.
Uma vez tomado o Santé, trata de obter o seu espírito familiar protetor, mediante certa cerimônia. Entra no mato com uma vela apagada e volta com ela acesa. Há diversos nomes desses espíritos protetores, como sejam: Tatá Guerreiro, Tatá Flor de Carunga, Tatá Rompe-Serra, Tatá Rompe-Ponte, etc(61).
Como se vê, é tudo muito parecido com a atual Umbanda.
Maria Stella de Novaes, uma escritora capixaba, tentando identificar as origens da prática da Cabula, dizia que os escravos sendo maltratados, nas fazendas ou nas cidades, refugiavam-se nas matas, onde buscavam conforto espiritual com as suas próprias religiões, isto é, a Macumba, a Cabula e outras parecidas. Acrescentava que a Cabula de São Mateus era uma mistura de espiritismo e cultos africanos. Porém, informava também que havia ainda praticantes da Cabula, no Ibes, bairro de Vila Velha. “Ali um pai-de-santo que aprendera em São Mateus, realizava o seu impressionante ritual, embora mais civilizado: velas, jeribita, lança, punhais medonhos, que dançavam no ar... rezas, cantos sagrados ou nimbos, etc”(62).
Roger Bastide, discutindo o que ele chamava de sobrevivências de antigas religiões dos Bantos de Minas Gerais, onde os quilombos tinham sido mais numerosos, depois de uma série de considerações sobre o vocabulário utilizado, formas ritualísticas, circunstâncias secretas dessas religiões e ausência de maiores informações acerca de muitas delas no que diz respeito a suas origens, como sobreviveram e possível extinção, destaca uma delas, observando que, de fato, nessa região há muitos negros garimpeiros que conservam fielmente seus cantos, chamados de vissungos. Alguns são cantos às divindades Bantos e vários deles são secretos e só podem ser ouvidos pelos iniciados. Bastide não sabia qual era essa religião porque tinha poucas informações, porém, afirmava, com certeza, tratar-se de uma religião Banto, por causa da palavra (energia) usada numa cantiga que dizia “O moanda energia auê”.
Assim, conclui Bastide, seria possível supor que tal religião não devia estar muito afastada da Cabula de Espírito Santo, confirmadamente de origem Banto, e acrescentava que existiam organizações religiosas Bantos cujas cerimônias eram chamadas de Macumba, nas quais os Embandas e os Cambones dirigiam os cultos juntamente com os Cafiatos, isto é, praticantes. Muitas dessas cerimônias também eram ao ar livre, com os assistentes e praticantes formando um círculo, de pé ou sentados em torno do canzol, ou seja, do Conga, ou altar do santuário com velas acesas, e tinham, como na Cabula, os mesmos cânticos, danças e tipos de posse pelos Tatá, também considerados como espíritos protetores dos indivíduos.
Bastide também achava que a Cabula capixaba era muito parecida com a Macumba carioca e que elas tinham em comum muitos de seus elementos, em particular o nome dos sacerdotes, Embanda ou Umbanda, e de seu ajudante, o Cambone. Ele achava também que a Macumba estava substituindo a Cabula. Na verdade, como já foi destacado, na Umbanda ou na Macumba capixaba atual, ainda são encontradas muitas palavras, cantigas e práticas ritualísticas semelhantes às da Cabula.
“Existiam nações bantos cujas cerimônias eram chamadas pelo nome de Macumba. As mais antigas descrições que se têm mostram que no fundo não eram outra coisa senão a própria Cabula”(63).
Maciel de Aguiar diz que a Cabula
é um cerimonial em que os negros procuram, através de raízes e cipós alucinógenos, encontrar-se com seus ancestrais africanos. E que está reduzida apenas a duas Mesas por causa da destruição das florestas, notadamente para o plantio de eucalipto. Essa Mesa de Santa Maria é na floresta, e os personagens e falas reproduzem o que era na África a linguagem africana Banto, de mais de dois mil anos atrás. Eu, particularmente, tive a felicidade de assistir a algumas cerimônias da Cabula e é um negócio belíssimo, mas... não é qualquer um que pode participar...
A Cabula tem sua elite e os iniciados são pessoas escolhidas pela comunidade negra porque é basicamente na Cabula que o negro toma toda informação de necessidade de voltar à África, da necessidade de reencontrar a liberdade. É na Cabula que os negros têm, através de raízes e cipós, essa visão de que a liberdade se faz através de manifestação e devoção aos deuses africanos.
A Cabula começa, basicamente, com o Mestre mandando avisar a hora da sessão e quem sabe o caminho vai. Só pode ir sozinho. Isso é um código, pois se duas pessoas forem juntas é porque uma não é iniciada.
Entretanto só o Mestre pode levar alguém para ser iniciado. A iniciação ocorre quando o Mestre Cabuleiro leva o escolhido ao Camocito onde os tambores já estão em atividade, as pessoas dançando o Jongo, e mascando um tipo de cipó, tudo depois das vinte horas da noite, antes de iniciar a sessão. Depois ficam uns três ou quatro minutos de concentração e dirigem-se ao centro do Camocito onde há uma imagem pequena de Santa Maria. Aí, o Mestre começa a invocar os Deuses africanos, os Espíritos e também os Espíritos de pessoas mortas nas lutas dos escravos pela liberdade, inclusive citando alguns fatos.
Quando alguém é levado para ser iniciado, essa pessoa, sob um efeito alucinógeno, é conduzida a uns cem metros e lá é amarrada tão enrolada no cipó timbó ou guembê (difícil de ser trabalhado e manuseado) e depois, rolando pelo chão, chega ao centro do Camocito onde o Mestre consegue, rapidamente, desmanchar aquele amarrado, sem precisar desfazer nenhum nó.
Nós, que presenciamos esses episódios, ficamos sem entender como tudo isso acontece. Por exemplo: essa pessoa iniciante consegue subir em um coqueiro de cabeça para baixo, consegue andar pelo mato sem orientação, consegue atravessar rios sem saber nadar ou mergulhar. Eu já estive em alguns Camocitos em momentos de iniciação e a cerimônia tem um aspecto de magia negra, de beleza, encantamento e musicalidade que leva a gente a flutuar(64).
Aproveitando as anotações de diversos estudiosos, aqui estão destacadas algumas palavras usadas na Cabula, com seu significado original e o ampliado, conforme sua semelhança com a Umbanda atual. Báculo: Santo, Tatá, Santé, Espírito, Entidade; Caialos: não iniciados, curiosos, profanos e talvez cavalo, no sentido de corpo ou matéria; Caimbura: pó sagrado feito de batinga seca ou de ervas, raízes, folhas, sementes, caules etc branco ou de outras cores, talvez o mesmo que emba ou pemba; Camolelê: gorro do Embanda, talvez uma das diversas espécies de turbantes ainda muito utilizados nos Candomblés e certas Umbandas; Camanás: irmãos, iniciados, companheiros; Cambiá: panela de barro para oferendas, talvez o mesmo que alguidá; Cambone: ajundante do Embanda, cambono, assistente dos médiuns; Candaru: brasa, fogo; Camicite: Camocito, templo, roça, terreiro, barracão, lugar ou local de reunião; Cunimar: trabalhar; Curimã: brincar; Embanda: Chefe de Terreiro, Pai de Santo, Mestre; Engira: gira, roda, grupo de iniciados em função; Mesa: Gongá, conga, canzol, altar, local onde se colocam os objetos do culto; Nimbu: cântico, cantigas, toadas, pontos cantados, hino; Quatam: linquaquá, bater palmas. Quendá: trabalhar, carregar algo, sair; Quimbanda: palmatória, velas, esteiros, luzes; Saravá: salve.
Finalizando, pode-se dizer que, embora a Cabula tenha sido objeto de vários estudiosos, ainda é pouco conhecida e raros estão dispostos a falar a seu respeito. Quase sempre as pessoas dizem que a Cabula existe e que conhecem alguém que a pratica, porém, são tantas as dificuldades para alguma informação mais precisa que o depoimento de Maciel de Aguiar acaba sendo de grande importância como testemunho atual de permanência de sua prática. Conclui-se que a Umbanda atual é uma prática religiosa com conteúdos semelhantes ao da antiga Cabula e que, como fenômeno de sobrevivência cultural religiosa, é mais um atestado da capacidade de resistência cultural negra capixaba.
NOTAS
(55) Rodrigues, 1977, p. 255 a 260.
(56) Rodrigues, 1977, p. 255 a 260.
(57) Santos Neves, 1978, p. 37 a 39.
(58) Santos Neves, 1978
(59) Rodrigues, 1977, p. 255 a 260.
(60) Santos Neves, 1978, p. 37 a 39.
(61) Rodrigues, 1977, p. 255 a 260
(62) Novaes, 1963, p. 96 e 97.
(63) Bastide, 1971, v. 2. p. 281 a 286.
(64) MACIEL DE AGUIAR, Sebastião. Na entrevista à produtora de televisão Vera Viana, já citada.
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Fonte: Negros no Espírito Santo / Cleber Maciel; organização por Osvaldo Martins de Oliveira. –2ª ed. – Vitória, (ES): Arquivo Público do Estado do Espírito Santo, 2016.
Compilação: Walter de Aguiar Filho, junho/2021
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