A Manteigueira Assombrada – Por Maria Stella de Novaes
Contava um remanescente dos nossos silvícolas que, no tempo de o Espírito Santo ainda habitado por diversas nações de seus ascendentes, em plena selvageria, aqui, apareceram muitos brancos; dissimulavam bondade e presenteavam-nos, com diversos objetos esquisitos, para, depois, demonstrarem ambição e maus sentimentos. Capturavam homens e crianças; maltratavam os que resistiam à prisão. Resolveram, por isso, os índios guerreá-los, no Continente, onde pretendiam fixar-se.
Forte, astucioso e de compleição atlética, o pajé Iuramatã era um guerreiro intrépido cujos predicados passaram aos seus filhos, — dois jovens goitacás; e Iara, — a filha, no esplendor dos seus dezesseis anos, tipo de beleza pura, — olhos grandes, negros e brilhantes, cabelos sedosos, que lhe cobriam as espáduas. Na expressão de meiguice do seu rosto moreno, sobressaíam os dentes alvos e perfeitos.
Contava-nos o velho representante dos nossos autóctones que Iara encarnava a flor mais linda que os goitacás haviam conhecido, motivo por que Iuramatã, orgulhoso de sua filha, projetava escolher, na tribo, um guerreiro valoroso, que a desposasse. Aguardava apenas o conselho dos magos. E temia as incursões dos brancos, visto como, apesar da vigilância constante dos índios, tentavam, às vezes, transpor o canal. Muitos foram flechados e mortos, no perigo dessas travessias.
— Um jovem lusitano, porém, resolveu pescar, nas imediações de Vila Velha. Chamava-se João-Maria. Tomou uma canoa e cautelosamente, ao cair de uma tarde, remou... contornou o Penedo e aproximou-se, mansamente do litoral, mais adiante, quando o ruído célere de um conjunto de setas lhe passou sobre a cabeça e abalou-o, em arrepios de terror! Caíram, ao mar, na sua frente.
Atônito, João-Maria olhou o ponto de onde partira a agressão e, presa de assombro, divisou, sobre um cômoro, a figura angelical de Iara, a sorrir. Empunhava a esgaravatana.
Confiante na inocência daquele sorriso, João-Maria saltou para a margem e aproximou-se da índia que, rápida, desapareceu, na floresta. Instantes depois, reapareceu, gesticulando, sem que o jovem pudesse compreendê-la, achando, entretanto, misterioso o que se lhe deparava. Zarpou... E, à noite, na Ilha Grande, lutou com a insônia, seguida de cruel pesadelo, até que o sono venceu as conseqüências da impressão causada pelo encontro daquela escultura animada pela força da Vida, na exuberância da Natureza. Sentia-se debater, entre o desejo de rever a figura extraordinàriamente bela da índia, de tê-la nos seus braços e cobri-la de carícias, — e o temor de uma cilada ou vingança atroz dos poderosos da selva.
Não. Não podia voltar!
Seria crivado de flechas!
Sonho? Realidade?
Refeito, porém, de tantas emoções, João-Maria decidiu-se, em repetir a vistoria ao sítio magnífico, na mesma hora vespertina. Dominado, pelo tumultuar de pensamentos e sentimentos diversos, remou... remou, até o lugar encantador. Logo, Iara sai do arvoredo e vai ao mar; nada, para alcançar a embarcação.
Enleado, João-Maria procura convencê-la de entrar na canoa, ao passo que, novamente, a índia foge, e oculta-se na mata.
Noutros dias, sucessivos encontros mais aproximaram aqueles corações juvenis.
Finalmente, Iara convidou João-Maria para subirem a encosta, a fim de apreciarem, ao longe, as malocas da sua tribo. Foram, mas, após uma cena de carinhos e afagos, a índia... fugiu, deixando o seu apaixonado certo da correspondência do amor.
Jamais, porém, o furioso pajé perdoaria as atrocidades dos invasores brancos, ao seu domínio, e cientificado dos colóquios amorosos de sua filha com o estranho, convocou o conselho dos magos. Luas e luas, oraram a Tupã, fervorosamente! ... E tomaram a trágica decisão: — Numa pilha de troncos, dispostos para a fogueira, colocaram os corpos dos enamorados, crivados de flechas.
Nos estertores da agonia, João-Maria e Iara se abraçaram. E assim, morreram!
Em torno, ao crepitar da fogueira, de rostos medonhos, de pintura e indumentária adequadas ao rito, os feiticeiros cantavam e dançavam, ao lúgubre ruflar dos seus tambores.
Finda a cerimônia macabra, o pajé inflexível mandou construir, ali, sobre o carvão e a cinza do martírio daqueles jovens, uma palhoça, — templo onde os feiticeiros e os iniciantes da magia invocavam os espíritos, seus conselheiros.
Parecia-lhes, desde então, que os gemidos singulares daquelas vítimas do amor puro e profundo se elevavam, entre o clamor dos seus espíritos.
Desse romance entre a mulher índia e o colono luso, resultou a lenda de uma "assombração", para a Casa da Manteigueira, assim denominado um antigo solar, erguido em Jaburuna, sobre uma colina fronteira ao mar. Era um elegante sobrado que, segundo a mesma lenda, não podia ser habitado, porque, alta noite, os espíritos de João-Maria e Iara fechavam e abriam portas, ruidosamente, andavam pelos corredores e salões, e gemiam... gemiam, profundamente, conforme os ciclos da Lua.
A casa desapareceu, há pouco tempo. Constituía uma curiosidade, para os viajantes, na passagem dos barcos, pelo canal de acesso ao Porto da Vitória.
Fonte: Lendas Capixabas, 1968
Autora: Maria Stella de Novaes
Compilação: Walter de Aguiar Filho, dezembro/2015
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