Lendas, folclore, crendices de tropeiros – Por Ormando Moraes
O cão é o amigo mais fiel do homem, o gato é a presença do silêncio pouco confiável, o boi é o animal sagrado, os pássaros e as aves são a alegria de casas e terreiros, o cavalo é o charme e a elegância para toda espécie de conquista e o porco é o símbolo da fartura e da alimentação, embora tenha comandado a revolução dos bichos de que nos fala Orwell e cujo primeiro mandamento era: "Qualquer coisa que ande sobre duas pernas é inimigo" (5)
Nenhum desses animais, porém, prestou tantos ser-viços ao homem quanto os muares, sejam burros, jumentos, mulas ou bestas, lerdos mas prudentes, seguros, pacientes e incansáveis, desde os tempos mais remotos.
A Bíblia não registra, mas a tradição verbal e os documentos pictóricos indicam que, na fuga para o Egito, de que trata o Evangelho de S. Mateus, Maria foi conduzida por um paciente burrinho. Enquanto isto, o Evangelho de S. Marcos — cap. 11, vers. 7 — assinala que, na entrada triunfal em Jerusalém, Jesus montava um jumento.
Não obstante todos esses serviços prestados, a figura do burro, da mula ou da besta está ligada a algumas crendices e superstições que até a comprometem. E o caso da mula sem cabeça, que, em tempo de lua cheia e na noite de sexta-feira, sai desembestada pelos caminhos e estradas, urrando, relinchando e até soluçando e assombrando os que encontra. Segundo o folclorista Câmara Cascudo, "o encanto desaparece quando alguém tiver a coragem de arrancar-lhe o freio de ferro que leva. Dizem-na sem cabeça, mas os relinchos são inevitáveis. Quando o freio lhe for retirado, reaparecerá despida, chorando arrependida e não retomará a forma encantada, enquanto o descobridor residir na mesma freguesia".(6)
A crença muito comum também no interior do Espírito Santo, sobretudo no tempo das tropas, é de que a mula-sem cabeça é a mulher do padre. Para desencantá-la, deverá o amásio amaldiçoar a companheira sete ou setenta vezes, antes de celebrar a missa. E, se não fizer isto com toda convicção e toda sinceridade, a hóstia pode desaparecer de suas mãos, durante a missa.
Há crendices também puramente locais, como é o caso da que foi contada pelo poeta Carlos Campos. Embora não relacionada a muares, era muito divulgada pelos tropeiros. No começo deste século, havia um fazendeiro em Calçado, o Coronel Charpinel, a respeito de cujas filhas um tal de Ramiro levantou um falso testemunho. Quando Ramiro morreu, sua alma, segundo os espíritas; arrependida do falso levantado, vinha dar longos gemidos e pedir perdão dentro da fazenda do Charpinel. Era o bicho Charpinel, segundo a voz do povo. O coronel, entretanto, obstinado e teimoso como uma mula, respondia sempre: "Não perdôo, não perdôo".
Os tropeiros, que tinham um rancho de pouso na Fazenda Charpinel, ficavam espantados, à noite, com os longos gemidos, pedindo perdão, e eram os grandes divulgadores do fenômeno espírita, que atraía gente de longe para ouvi-lo, todos esperançosos em seu poder sobrenatural.
Muito supersticiosos, os tropeiros divulgavam também o caso da figueira mal assombrada da Fazenda do Bandeira, perto de Calçado, onde se ouviam gemidos e gargalhadas à noite e a respeito da qual o poeta Carlos Campos produziu o seguinte soneto, associado-a à crendice da mula sem cabeça:
Mula sem cabeça
Bem perto da Fazenda do Bandeira,
em certo ponto marginal da estrada,
havia bela e secular figueira,
de que falavam ser mal assombrada...
E quem, acaso, cometesse a asneira
de ali passar em plena madrugada,
ouvia, sem ver nada, a gemedeira,
e, algumas vezes, uma gargalhada!...
Dizem que à noite, em sexta-feira santa,
um vulto sai dali, e a tudo espanta,
pois, com temores, nem há cão que ladre!...
Até que, por incrível, nos pareça,
era esse vulto a Mula sem Cabeça,
que a lenda conta ser mulher de padre!...
Uma superstição muito arraigada no interior do Espírito Santo, principalmente no período áureo das tropas, era a de que uma ferradura pendurada atrás da porta de entrada da casa trazia felicidade para a família e afastava desgraças e maus-olhados e, pelo lado de dentro dos balcões das "vendas”, chamava dinheiro e evitava o fiado e o prejuízo.
As famílias mais abastadas do interior cometiam certos exageros em tomo dessa crendice e chegavam ao requinte de encomendar ferraduras muito bem trabalhadas, até de metal nobre, para colocar em suas portas, mas perdiam seu tempo e até sofriam castigos por sua ostentação. Só tinham propriedade de talismã para trazer felicidade as ferraduras bem gastas e apanhadas na hora em que eram substituídas no pé do burro ou, melhor ainda, as que eram achadas nos atoleiros pelos meninos pobres, em busca de um rendimento. Enfim, como hoje não existem mais burros, nem se acham mais ferraduras como antigamente, o povo anda meio perdido, porque "a felicidade foi simbora, uai!"
Notas:
(5) ORWELL, George - A REVOLUÇÃO DOS BICHOS - Editora Edibolso.
(6) CÂMARA CASCUDO, Luiz da - DICIONÁRIO DO FOLCLORE BRASILEIRO - Edit. Itatlala - Belo Horizonte
Fonte: Por Serras e Vales do Espírito Santo – A epopéia das Tropas e dos Tropeiros, 1989
Autor: Ormando Moraes
Acervo: Edward Athayde D’ Alcantara
Compilação: Walter de Aguiar Filho, abril/2016
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