O Burro em Vitória – Por Ormando Moraes
Por ser uma ilha que só teve ligação com o continente, por meio de ponte, em 1926, no governo de Florentino Avidos, Vitória nunca foi local de movimentação de tropas com sua característica tradicional.
Como nos conta João Ribas da Costa em seu livro "Canoeiros do Rio Santa Maria" (Rio de Janeiro — 1951), a produção de café das regiões de Santa Tereza, Afonso Cláudio e Santa Leopoldina descia da serra no lombo de burros, nas tropas mais bem organizadas que tivemos, até o porto do Cachoeiro de Santa Leopoldina, e dali vinha para Vitória em canoas, que levavam de volta, através do Rio Santa Maria, todo o sortimento necessário às populações interioranas. A partir do início deste século, a produção da região serrana sul e a do Rio Doce se canalizaram para Argolas e para o porto, através da Estrada de Ferro Leopoldina e da Vitória a Minas.
Entretanto, burros, mulas e bestas foram presença importante em nossa ilha para serviços nas antigas fazendas de Jucutuquara, Maruípe e Santo Antônio e para puxar carroças e bondes na área urbana. A propósito, minha tia Iracema, esposa de Arnulpho Mattos, professor em Vitória por longos anos, dizia, muito admirada, que, no aterro da grande área em que se construiu o Parque Moscoso, os burros iam e vinham com suas carroças, sem carroceiros para guiá-los: nas abas de morros próximos, trabalhadores braçais, com suas pás, enchiam as carroças de terra e davam uma chicotada no burro, que disparava no sentido do aterro, onde, após a descarga por outros trabalhadores, levava outra chicotada e retornava paciente ao seu caminho e a cena se repetia o dia inteiro.
Mesmo assim, a pesquisa sobre o assunto nesta capital continuou, e em seu curso, um intelectual um tanto irreverente e com ares de injustiçado advertiu:
— Olha, Ormandó, aqui em Vitória, sobre tropas, você não vai obter grande coisa, mas burro vai encontrar muito...
Logo depois, contudo, surgiu a fonte preciosa: o saudoso Elmo Elton, notável historiador de Vitória, falecido recentemente, forneceu o delicioso trecho que a seguir se transcreve:
Bonde puxado a burro
“A 18 de fevereiro de 1907, trazidos pelo paquete Olinda, foram desembarcados em Vitória três bondes de tração animal, assim como o material para a empresa Carril-Suá, de propriedade do Coronel Aristides Navarro. O primeiro trecho da linha de bondes, inaugurado a 11 de julho do mesmo ano, estendia-se da Rua do Comércio ao Forte de São João. Da Rua do Comércio seguiam os bondes até ao largo da Conceição da Prainha (atual Praça Costa Pereira), de onde entravam nas ruas do Rosário, Cristóvão Colombo e Barão de Monjardim, rumando para o Forte, sabendo-se que, depois, a linha se prolongou ao Suá. Os bondinhos, então uma atração dos habitantes da ilha, às vezes deixavam de trafegar, quase sempre por greve dos motoristas, que enchiam os trilhos de pedra e capim, os burros paravam para comer, daí que nem mesmo as chibatadas faziam com que eles voltassem ao trabalho. Conta-se que, certa vez, um dos burros empacou e nada o fez seguir viagem de modo que o motorneiro, um português desbocado, passou a surrá-lo repetindo em altos brados, o sotaque carregado: — Ó burro da peste, seu filho da mãe, anda, vamos embora, antes que o mate de chicote, porque só assim eu provo que sou mais inteligente e forte que você! Em Vitória circulavam muitas carroças puxadas a burro, conduzindo cargas de trapiches, compras feitas em armazéns de atacados, bem como mudanças. Ficavam aguardando chamadas em pontos centrais da cidade, o principal deles no antigo Mercado, onde, depois de demolido, se construiu a Praça das Salsichas, assim chamada, popularmente, visto o formato de seus canteiros, passando, em 1931, a ser conhecida como Praça João Pessoa, ali se inaugurando, em 1934, a sede dos Correios e Telégrafos.
O citado coronel Aristides Navarro iniciou, a 6 de março de 1905, o fornecimento de água aos moradores de Vitória, um barril para cada família, ao preço de 1$000 (mil réis) a carga, quase sempre puxada por carroças. A água vinha em canoas do rio Jucu e o descarregamento dos barris era feito no cais Schmith (antes cais do Queimado), onde havia ponto permanente de carroças. Os burros tinham nomes dados pelos proprietários, alguns desses nomes conhecidos por toda a população, tais como Paliteiro, Roda D’água, Pé-de-Valsa... Os carroceiros também tinham apelidos: Gabiru, Bino, Cariacica, Bezerra, Moleque, entre tantos outros.
Ainda sobre as carroças puxadas a burro, registre-se que as mesmas, só recentemente, deixaram de circular na cidade, em decorrência de proibição constante de lei municipal, mas continuam vistas nos bairros periféricos.
Um detalhe: antigamente, os burros, muitas vezes, andavam soltos pelas ruas, conforme se constata através de fotos de Vitória tiradas no início do século.
A eletrificação dos bondes, na capital, ocorreu em 1910, sendo que, ao término do governo de Jeronymo Monteiro, isto é, a 12 de abril de 1912, inaugurou-se a linha de bondes de Paul a Vila Velha, em cujo município os transportes terrestres de cargas também eram feitos por burros.”
Fonte: Por Serras e Vales do Espírito Santo – A epopéia das Tropas e dos Tropeiros, 1989
Autor: Ormando Moraes
Acervo: Edward Athayde D' Alcantara
Compilação: Walter de Aguiar Filho, abril/2016
Não havia outra alternativa senão o uso de burros e bestas, agora de forma organizada e metódica, com características de empresa
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