As Tropas – Por Ormando Moraes
Na medida em que crescia a produção de café, aumentavam as necessidades, de transporte, não só para levá-la aos portos fluviais ou marítimos de Itapemirim, Cachoeiro de Santa Leopoldina, São Mateus, Benevente, Itapemirim, etc. e aos pontos servidos pelas primeiras estradas de ferro, como também para conduzir de volta às fazendas e colônias toda à sorte de produtos não existentes no interior: açúcar, sal, querosene, bebidas, peixe salgado, ferramentas, móveis, utensílios caseiros, tecidos, calçados e outros.
Não havia outra alternativa senão o uso de burros e bestas, agora de forma organizada e metódica, com características de empresa e fazendo surgir no interior do Espírito Santo uma atividade e uma nova profissão de relevante importância para a economia estadual: as tropas e os tropeiros.
A tropa era constituída de 10 animais de carga (burros e bestas), às vezes acrescidos de um burro de cozinha e cama, para transportar utensílios, agasalhos e alimentos, e de uma madrinha, égua miúda, maninha, que não procriava e cuja função, com um cincerro no pescoço, era manter a tropa reunida nos pousos e paradas. Os muares obedeciam muito à madrinha, mas tinham ciúme dela e a defendiam de qualquer outro animal estranho, segundo informa Ceny Júdice Achiamé, um dos primeiros conhecedores do ramo entrevistados para este livro. Os animais da tropa costumavam se coçar a dentes, reciprocamente, cruzando o pescoço, mas permitiam que a madrinha o fizesse com animais estranhos. Quando o tropeiro queria reunir a tropa solta no pasto, bastava pegar a madrinha, que todos os animais a acompanhavam.
O chefe da tropa era o arrieiro, que podia ser seu próprio dono ou empregado do dono e viajava montado sempre em muares, e quem tocava os animais era o tropeiro propriamente dito, às vezes auxiliado por um menino. Algumas tropas tinham também um cozinheiro, que costumava se adiantar para alcançar mais cedo os pontos de pouso e preparar a comida. Com raras exceções, estes três auxiliares do arrieiro eram pretos ou de origem negra e viajavam sistematicamente a pé.
Cada animal tinha uma posição na tropa, a saber: guia, contraguia, centro (seis animais), contracoice e coice. O animal que fazia o papel de guia era, de preferência, uma besta ou mula, mais dócil e menos coiceira que burro, segundo os entendidos do ramo. Como a guia andava sempre muito enfeitada, com a cabeça toda encastoada de metal branco e cheia de fitas vermelhas, douradas e roxas e o peitoral com sete cincerros de metal amarelo, ela era tida pelos estranhos ao meio como a madrinha da tropa, conforme se verifica na produção poética a respeito, que será reproduzida mais adiante.
Arrieiros e tropeiros tinham um cuidado especial com a aparência e a beleza de suas tropas. Havia alguns que só queriam animais da mesma cor em cada lote de 10 muares que eram bem alimentados, bem raspados, crinas cortadas, rabos aparados e necessitavam igualmente estar muito bem ensinados para o serviço. Como informa Fiorino Puppin, ex-proprietário de tropas em Alfredo Chaves, não era qualquer animal que sabia sacudir os cincerros. A mula era melhor, porque se rebolava toda e, de longe, pelo som que produziam os cincerros, o pessoal sabia qual a guia e qual a tropa que chegava. Arreios, cincerros e apetrechos decorativos de metal branco ou amarelo e até de prata mereciam o melhor tratamento. O luxo de alguns proprietários com suas tropas era tanto que, certa ocasião,o velho João Pagung, arrieiro no Alto Jequitibá, Município de Santa Leopoldina, disse a Eloy Espindula, segundo ele o homem mais prateado do Brasil em matéria de arreios:
- Ô Eloy, você põe prata até na bunda de seus burros e fica aí comendo com colher de ferro?
Era tal a quantidade de metais nos arreios das tropas de Eloy, que ele carregava um empregado só para limpá-las.
O fato é que, do zelo com as tropas, nascia uma intimidade afetiva entre o tropeiro e os muares, que conheciam sua voz, descobriam sua vontade e obedeciam disciplinadamente a suas ordens.
Os animais da tropa inclusive a guia, que, apesar de muito enfeitada, também transportava carga, tinham arreio constituído das seguintes peças: cangalha de duas forquilhas, talabardão feito de pano grosso e paina para proteger o lombo, retranca pegando na traseira, rabicho no rabo, peitoral, cabresto, sopradeira, que era uma espécie de bornal colocado no focinho para impedir o animal de comer em viagem, bornal propriamente dito para ele comer milho nos pousos, um par de bolsas de couro para receber a carga, o couro de cobertura da carga para protegê-la da chuva e que servia de cama para os tropeiros nos pousos e a sobrecarga também de couro, com o cambito ou fueiro às vezes até de jacarandá com anéis de metal branco e amarelo.
Toda tropa tinha sua caixa de cozinha, com trempe, panelas; coador, bules, pratos, talheres, feijão, toucinho, arroz, lombo de porco, carne-seca e sal. O almoço era preparado no rancho e podia ser servido de madrugada, antes do início da viagem. Às vezes os tropeiros comiam em casas de conhecidos de beira de estrada, sem nada pagar ou pagando pouco. O curioso é que o tropeiro não usava polenta, alimento muito comum e quase obrigatório no interior do Espírito Santo, porque não era possível mexer e misturar o fubá na panela pendurada na trempe de ferro, embaixo da qual se fazia fogo de restos de madeira abundante ao redor dos ranchos. Ao chegar aos ranchos, a primeira providência do cozinheiro era fazer um café de coador, adoçado com rapadura, que os tropeiros bebiam e ofereciam aos que apreciam para um dedo de prosa e para saber as novidades.
Segundo Manoel Lopes da Costa, antigo proprietário de tropas e arrieiro em Afonso Cláudio e hoje funcionário da Justiça e excelente informante sobre o assunto, o relógio dos tropeiros eram os galos. Eles cantavam a primeira, a segunda vez e, na terceira, uma voz grossa se alteava no rancho e ecoava distante:
— Acorda, Expedito, levanta, Antero, que os galo já cantou treis veiz. Simbora gente, que a madrugada tã fresquinha e danada de boa pra tocar os burro e as mula. Uai!
Uma tropa carregada (2 sacos ou 120 quilos para cada animal) fazia 20 a 25 quilômetros por dia, numa jornada de 3, 4 horas ou pouco mais, conforme as condições da estrada ou do caminho. José Coutinho da Vitória, vulgo José Pretinho, tropeiro no trecho Santa Leopoldina — Barracão de Petrópolis, conta que os animais se habituavam com os movimentos de carga e descarga e se colocavam em posição certa para tal serviço, indo cada qual sozinho para sua estaca.
Para movimentar a tropa bem ensinada, bastavam, às vezes, uns assovios, mas o tropeiro também gritava ,"ei, ei, já, já" ou "vamo simbora Morena, Jandira, Boneca, Mimoso" e jogava pedaços de pau ou batia nas bolsas de couro, sem necessidade, porém, de muito esforço, porque, como diz Ceny Júdice Achiamé, o animal carregado ficava inquieto e queria andar para chegar depressa ao destino e descarregar.
Embora muito cauteloso e prudente, às vezes o burro caía em atoleiros, e sua retirada era tarefa muito difícil. O tropeiro tinha que tirar a carga, os arreios e ainda assim o animal desanimava de fazer força, enterrado na lama. Nesses casos valia a força do tropeiro, que agarrava na orelha do bicho e metia a outra mão por baixo de sua perna, ajudando-o a libertar-se. A queda em despenhadeiro era mais rara, mas também ocorria, principalmente quando as tropas cruzavam nas passagens muito estreitas das fraldas de serras. A tropa carregada tinha preferência pelo lado de dentro, mas o burro bom e precavido, carregado ou não, preferia sempre o lado do barranco, nunca da pirambeira, e não havia ninguém que o tirasse, de sorte que podia ocorrer acidente: se o animal caísse, nesse caso sua recuperação era dificílima, senão impossível.
Ao chegar aos pontos de pouso, após descarregado e libertado dos arreios, a primeira coisa que o burro fazia era se espojar no chão e sacudir-se todo. Depois, ia comer ou beber água e banhar-se, entrando nos córregos ou rios, repetindo, em seguida, o tremer do corpo sacudindo os restos d'água.
Diz o tropeiro José Pretinho que o animal para tropa tinha que ser valente, porque o serviço era muito duro e pesado. Burro frouxo podia ficar na sede das fazendas e sítios para carregar mandioca, milho ou feijão da roça para casa, que era serviço menos nobre. Outro detalhe interessante é que os animais se acostumavam a trabalhar juntos e, em caso de morte ou inutilização de algum por acidente, a coisa mais difícil era incluir um animal novo nos lotes desfalcados. José Pretinho informa ainda que havia burros que pareciam fugir do serviço e ficavam escondidos no mato, sendo difícil encontrá-los.
Enfim, naqueles idos, as tropas eram uma atração quando chegavam aos ranchos ou quando entravam garbosas nas cidades, vilas e povoações, sob o alarido estridente dos cincerros da mula de guia, toda enfeitada de fitas multicores, levantando muita poeira nos dias de sol ou esparzindo lama para* todos os lados nos dias de chuva e inspirando a produção de versos populares, como estes:
Lourenço, abre a porteira,
Que a tropa do Sérgio evem.
Tem uma mula de guia
Que não respeita ninguém.
Tocado bate no couro,
As mula urra também.
Fonte: Por Serras e Vales do Espírito Santo – A epopéia das Tropas e dos Tropeiros, 1989
Autor: Ormando Moraes
Acervo: Edward Athayde D’ Alcantara
Compilação: Walter de Aguiar Filho, abril/2016
A chegada dos tropeiros aos pontos de parada, era uma festa para os moradores das imediações
Ver ArtigoEntretanto, burros, mulas e bestas foram presença importante em nossa ilha para serviços nas antigas fazendas de Jucutuquara, Maruípe e Santo Antônio
Ver ArtigoEntão, o que se viu, atravessando serras e vales, foi a epopéia das tropas e dos tropeiros transportando a produção do Espírito Santo, especialmente o café
Ver ArtigoO muar seria o ideal para essa tarefa e desde 1764 a Coroa havia autorizado sua criação dentro do "continente do Estado do Brasil", mas o Conde da Cunha, não a transmitiu aos governadores de São Paulo e das Minas Gerais
Ver ArtigoSeja burro, mula ou besta, os muares sempre foram e ainda são de extrema utilidade ao homem, para o transporte da carga em larga escala, agrupados nas tropas, para puxar carroças nas áreas urbanas mais modestas
Ver ArtigoEm Muniz Freire, Estado do Espírito Santo, as tropas são, ainda hoje (escrevo em 1957), muito usadas
Ver ArtigoO poeta Casemiro de Abreu, Nilo Bruzzi enfatizou o trabalho de caixeiro-viajante, ou cometa, que saía do Rio em lombo de burro, com canastras de couro recheadas de amostras de tecidos
Ver ArtigoBar-bicacho, o dos tropeiros (esses, num tempo bem remoto);
Ver ArtigoParticipar da Festa do tropeiro em Ibatiba é reviver a história, é dar valor a um legado precioso da gente do Espírito Santo, da nossa gente
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