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As Tropas – Por Ormando Moraes

Peitoral com cínceros e cabresto - Desenho: Sergio Lucio

Na medida em que crescia a produção de café, aumentavam as necessidades, de transporte, não só para levá-la aos portos fluviais ou marítimos de Itapemirim, Cachoeiro de Santa Leopoldina, São Mateus, Benevente, Itapemirim, etc. e aos pontos servidos pelas primeiras estradas de ferro, como também para conduzir de volta às fazendas e colônias toda à sorte de produtos não existentes no interior: açúcar, sal, querosene, bebidas, peixe salgado, ferramentas, móveis, utensílios caseiros, tecidos, calçados e outros.

Não havia outra alternativa senão o uso de burros e bestas, agora de forma organizada e metódica, com características de empresa e fazendo surgir no interior do Espírito Santo uma atividade e uma nova profissão de relevante importância para a economia estadual: as tropas e os tropeiros.

A tropa era constituída de 10 animais de carga (burros e bestas), às vezes acrescidos de um burro de cozinha e cama, para transportar utensílios, agasalhos e alimentos, e de uma madrinha, égua miúda, maninha, que não procriava e cuja função, com um cincerro no pescoço, era manter a tropa reunida nos pousos e paradas. Os muares obedeciam muito à madrinha, mas tinham ciúme dela e a defendiam de qualquer outro animal estranho, segundo informa Ceny Júdice Achiamé, um dos primeiros conhecedores do ramo entrevistados para este livro. Os animais da tropa costumavam se coçar a dentes, reciprocamente, cruzando o pescoço, mas permitiam que a madrinha o fizesse com animais estranhos. Quando o tropeiro queria reunir a tropa solta no pasto, bastava pegar a madrinha, que todos os animais a acompanhavam.

O chefe da tropa era o arrieiro, que podia ser seu próprio dono ou empregado do dono e viajava montado sempre em muares, e quem tocava os animais era o tropeiro propriamente dito, às vezes auxiliado por um menino. Algumas tropas tinham também um cozinheiro, que costumava se adiantar para alcançar mais cedo os pontos de pouso e preparar a comida. Com raras exceções, estes três auxiliares do arrieiro eram pretos ou de origem negra e viajavam sistematicamente a pé.

Cada animal tinha uma posição na tropa, a saber: guia, contraguia, centro (seis animais), contracoice e coice. O animal que fazia o papel de guia era, de preferência, uma besta ou mula, mais dócil e menos coiceira que burro, segundo os entendidos do ramo. Como a guia andava sempre muito enfeitada, com a cabeça toda encastoada de metal branco e cheia de fitas vermelhas, douradas e roxas e o peitoral com sete cincerros de metal amarelo, ela era tida pelos estranhos ao meio como a madrinha da tropa, conforme se verifica na produção poética a respeito, que será reproduzida mais adiante.

Arrieiros e tropeiros tinham um cuidado especial com a aparência e a beleza de suas tropas. Havia alguns que só queriam animais da mesma cor em cada lote de 10 muares que eram bem alimentados, bem raspados, crinas cortadas, rabos aparados e necessitavam igualmente estar muito bem ensinados para o serviço. Como informa Fiorino Puppin, ex-proprietário de tropas em Alfredo Chaves, não era qualquer animal que sabia sacudir os cincerros. A mula era melhor, porque se rebolava toda e, de longe, pelo som que produziam os cincerros, o pessoal sabia qual a guia e qual a tropa que chegava. Arreios, cincerros e apetrechos decorativos de metal branco ou amarelo e até de prata mereciam o melhor tratamento. O luxo de alguns proprietários com suas tropas era tanto que, certa ocasião,o velho João Pagung, arrieiro no Alto Jequitibá, Município de Santa Leopoldina, disse a Eloy Espindula, segundo ele o homem mais prateado do Brasil em matéria de arreios:

- Ô Eloy, você põe prata até na bunda de seus burros e fica aí comendo com colher de ferro?

Era tal a quantidade de metais nos arreios das tropas de Eloy, que ele carregava um empregado só para limpá-las.

O fato é que, do zelo com as tropas, nascia uma intimidade afetiva entre o tropeiro e os muares, que conheciam sua voz, descobriam sua vontade e obedeciam disciplinadamente a suas ordens.

Os animais da tropa inclusive a guia, que, apesar de muito enfeitada, também transportava carga, tinham arreio constituído das seguintes peças: cangalha de duas forquilhas, talabardão feito de pano grosso e paina para proteger o lombo, retranca pegando na traseira, rabicho no rabo, peitoral, cabresto, sopradeira, que era uma espécie de bornal colocado no focinho para impedir o animal de comer em viagem, bornal propriamente dito para ele comer milho nos pousos, um par de bolsas de couro para receber a carga, o couro de cobertura da carga para protegê-la da chuva e que servia de cama para os tropeiros nos pousos e a sobrecarga também de couro, com o cambito ou fueiro às vezes até de jacarandá com anéis de metal branco e amarelo.

Toda tropa tinha sua caixa de cozinha, com trempe, panelas; coador, bules, pratos, talheres, feijão, toucinho, arroz, lombo de porco, carne-seca e sal. O almoço era preparado no rancho e podia ser servido de madrugada, antes do início da viagem. Às vezes os tropeiros comiam em casas de conhecidos de beira de estrada, sem nada pagar ou pagando pouco. O curioso é que o tropeiro não usava polenta, alimento muito comum e quase obrigatório no interior do Espírito Santo, porque não era possível mexer e misturar o fubá na panela pendurada na trempe de ferro, embaixo da qual se fazia fogo de restos de madeira abundante ao redor dos ranchos. Ao chegar aos ranchos, a primeira providência do cozinheiro era fazer um café de coador, adoçado com rapadura, que os tropeiros bebiam e ofereciam aos que apreciam para um dedo de prosa e para saber as novidades.

Segundo Manoel Lopes da Costa, antigo proprietário de tropas e arrieiro em Afonso Cláudio e hoje funcionário da Justiça e excelente informante sobre o assunto, o relógio dos tropeiros eram os galos. Eles cantavam a primeira, a segunda vez e, na terceira, uma voz grossa se alteava no rancho e ecoava distante:

— Acorda, Expedito, levanta, Antero, que os galo já cantou treis veiz. Simbora gente, que a madrugada tã fresquinha e danada de boa pra tocar os burro e as mula. Uai!

Uma tropa carregada (2 sacos ou 120 quilos para cada animal) fazia 20 a 25 quilômetros por dia, numa jornada de 3, 4 horas ou pouco mais, conforme as condições da estrada ou do caminho. José Coutinho da Vitória, vulgo José Pretinho, tropeiro no trecho Santa Leopoldina — Barracão de Petrópolis, conta que os animais se habituavam com os movimentos de carga e descarga e se colocavam em posição certa para tal serviço, indo cada qual sozinho para sua estaca.

Para movimentar a tropa bem ensinada, bastavam, às vezes, uns assovios, mas o tropeiro também gritava ,"ei, ei, já, já" ou "vamo simbora Morena, Jandira, Boneca, Mimoso" e jogava pedaços de pau ou batia nas bolsas de couro, sem necessidade, porém, de muito esforço, porque, como diz Ceny Júdice Achiamé, o animal carregado ficava inquieto e queria andar para chegar depressa ao destino e descarregar.

Embora muito cauteloso e prudente, às vezes o burro caía em atoleiros, e sua retirada era tarefa muito difícil. O tropeiro tinha que tirar a carga, os arreios e ainda assim o animal desanimava de fazer força, enterrado na lama. Nesses casos valia a força do tropeiro, que agarrava na orelha do bicho e metia a outra mão por baixo de sua perna, ajudando-o a libertar-se. A queda em despenhadeiro era mais rara, mas também ocorria, principalmente quando as tropas cruzavam nas passagens muito estreitas das fraldas de serras. A tropa carregada tinha preferência pelo lado de dentro, mas o burro bom e precavido, carregado ou não, preferia sempre o lado do barranco, nunca da pirambeira, e não havia ninguém que o tirasse, de sorte que podia ocorrer acidente: se o animal caísse, nesse caso sua recuperação era dificílima, senão impossível.

Ao chegar aos pontos de pouso, após descarregado e libertado dos arreios, a primeira coisa que o burro fazia era se espojar no chão e sacudir-se todo. Depois, ia comer ou beber água e banhar-se, entrando nos córregos ou rios, repetindo, em seguida, o tremer do corpo sacudindo os restos d'água.

Diz o tropeiro José Pretinho que o animal para tropa tinha que ser valente, porque o serviço era muito duro e pesado. Burro frouxo podia ficar na sede das fazendas e sítios para carregar mandioca, milho ou feijão da roça para casa, que era serviço menos nobre. Outro detalhe interessante é que os animais se acostumavam a trabalhar juntos e, em caso de morte ou inutilização de algum por acidente, a coisa mais difícil era incluir um animal novo nos lotes desfalcados. José Pretinho informa ainda que havia burros que pareciam fugir do serviço e ficavam escondidos no mato, sendo difícil encontrá-los.

Enfim, naqueles idos, as tropas eram uma atração quando chegavam aos ranchos ou quando entravam garbosas nas cidades, vilas e povoações, sob o alarido estridente dos cincerros da mula de guia, toda enfeitada de fitas multicores, levantando muita poeira nos dias de sol ou esparzindo lama para* todos os lados nos dias de chuva e inspirando a produção de versos populares, como estes:

Lourenço, abre a porteira,

Que a tropa do Sérgio evem.

Tem uma mula de guia

Que não respeita ninguém.

Tocado bate no couro,

As mula urra também.

 

Fonte: Por Serras e Vales do Espírito Santo – A epopéia das Tropas e dos Tropeiros, 1989
Autor: Ormando Moraes
Acervo: Edward Athayde D’ Alcantara
Compilação: Walter de Aguiar Filho, abril/2016

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