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A Praia do Canto era assim... - Por Sandra Aguiar

Av. Saturnino de Brito, década de 20

No começo era um canto de praia, areal, brejo, mangue. Tão comprida a praia que o adjetivo virou nome de batismo do lugar. Praia Comprida por muitas décadas, até depois de o bonde passar, do título de nobreza se consolidar. Era um vazio de gente antes de o homem desenhar ruas e avenidas, projetar praças e sonhos, sonhos de progresso. Um canto cercado de morros, morros cobertos de mata. Um tanto mata sem nome, outro tanto Mata Atlântica.

Das mãos de um engenheiro sanitarista, Francisco Saturnino Rodrigues de Brito, saiu o desenho do bairro. Idéia de colocar no papel algo grandioso: uma grande avenida como eixo central, a Nossa Senhora da Penha, e ruas largas em torno dela, capazes de comportar um alto fluxo de veículos. Obra de um positivista com visão de futuro, como julgam os que conheceram o trabalho do técnico, que hoje dá nome à avenida mais arborizada do canto mais privilegiado da praia. Beirando praças, Desejos e Namorados, cartão-postal da bela ilha.

Lotes, igualmente, com dimensões avantajadas, sempre 7 nos cálculos (comprimento e metragem), resultando em múltiplos do mesmo número, que para os numerólogos representa a vitória e os vitoriosos. O que explica as ruas com 21 metros de largura e as avenidas com 28 metros, enquanto os lotes mediam 14 por 42 metros.

Bairro em forma de espinha de peixe, cinco a seis vezes maior que o antigo centro da cidade. Uma área de 3,3 milhões de metros quadrados (descontados os morros) para multiplicar sonhos, dividida em 178 quarteirões e 2.129 lotes.

O resultado foi um plano de loteamento, chamado Novo Arrabalde, elaborado a pedido do então governador Muniz Freire, que envolveu toda a região, do atual bairro de Bento Ferreira até o Canal de Camburi. Algo revolucionário para a época, com o objetivo de fazer crescer a cidade em outra direção: rumo ao Leste. Praias inabitadas.

Considerava o engenheiro sanitarista o Convento da Penha um dos mais notáveis monumentos do Brasil colonial, daí a visão livre e aberta que oferece a Reta da Penha. De qualquer ponto da longa Praia.

O cenário paradisíaco e quase inexplorado, então com algumas chácaras, mudou com a necessidade de ocupação física, numa época em que a Capital do Estado não passava de um confuso aglomerado, onde cerca de nove mil habitantes se espremiam entre o mar e as montanhas, que cobrem quase 40% da superfície da ilha. Com um agravante: quanto mais a população crescia, mais se firmavam os morros como opção de moradia. Porque a expansão horizontal estava bloqueada por pântanos e manguezais.

No entanto, o processo de urbanização demorou a sair do papel. De 1896, data do projeto, até 1924, tudo permanecia como antes. Era um ideal traçado no papel por um homem que abriu mão de seus honorários, em carta que dirigiu ao presidente (como se chamavam os governadores de então) Muniz Freire, para assegurar a integridade dos recursos financeiros que permitiriam a conclusão do trabalho.

A partir de então, no governo de Florentino Avidos é que começaram as primeiras obras de arruamento e distribuição de lotes.

Na memória dos primeiros que lá chegaram, o bairro já nasceu nobre, antes mesmo da elevação do preço de seus lotes, cujo metro quadrado tornou-se o mais caro da Capital. As famílias mais abastadas, que mais tarde trocariam o Centro — com toda pompa e toda glória de cidade grande — para morar na Praia Comprida, então tinham no lugar a garantia de diversão nos finais de semana. Piqueniques, banhos de mar e pescaria.

Desembargadores, juízes e médicos, em especial, trataram de adquirir uma boa parte de terra para construir casas, com vista para as castanheiras que haviam crescido na areia da praia. Casas baixas, com flores nos jardins, e enormes quintais, para plantar de tudo um pouco, principalmente frutas — gabiroba, pitanga, caju, araçá, amora, cajá. E, pouco a pouco, foram chegando famílias pequenas que se tornaram numerosas. Moleques soltos na rua, pique-pega, pião, brincar de roda, passa boi, passa carroça... Não tinham medo de nada, não.

"Isso aqui era uma roça, os moradores se conheciam ou, ao menos, se cumprimentavam", lembra Francisco Moraes. Morador da Praia desde 1946, quando ainda era Comprida, ele conta que conheceu a rua do Canal quando existia apenas uma casa no lugar — tipo de residência de pescador, como as demais da região —, onde agora funciona a Delegacia da Mulher.

Na década de 50, a maior aventura dos jovens, tal e qual Moraes, era deixar aquela "província" em busca de contato com a civilização do centro da cidade, principalmente nos fins de semana. Arrumadinhos, um vasto mundo a explorar: na Praça Costa Pereira, nos cinemas e clubes. De bondinho ou de lotação, que demoravam a passar. Quando não, os rapazes juntavam-se em grupos para ver a Pedra dos Olhos, ir ao Morro do Guajuru (do Cruzeiro), ao trampolim da Praia do Barracão. Pescaria na Barrinha, onde está o Colégio Sacré-Coeur, também fazia parte do roteiro de lazer.

 

"Pego o bonde andando

na rua passava boi

passava boiada

passava bode

passava bonde

passaram em trajeto de ida e volta

passaram

um milhão, duzentos e cinqüenta e nove mil,

seiscentos e dezessete vezes

bondes vezes

passaram."

 

Versos do historiador Fernando Achiamé, documentados no computador como registro de quase, meio século de vivência no bairro, onde o pai comprou um lote de três mil metros quadrados, em 1955. Registro vivo de todo o processo de transformação da roça em cidade, ele se recorda, saudoso, das "viagens" de bonde, até o final da década de 50, e da chegada do lotação. A primeira linha do coletivo, segundo ele, pertenceu a Marinho Delmaestro, com placa de Praia Comprida. "Mas Praia do Canto acabou prevalecendo pouco tempo depois."

Bondes "decorados" com propaganda de diversos produtos, entre os quais remédios. Um dos cartazes mais conhecidos da época, afixados na divisória entre o motorneiro e os passageiros, tornou popular um xarope: "Olha, ilustre cavalheiro, o belo tipo faceiro que o senhor tem ao seu lado. Embora não acredite, quase morreu de bronquite, salvou-o o Rum-creosotado."

Alguns motorneiros e cobradores eram famosos entre os moradores, pelo bom humor com que prestavam o serviço. Maior chance de aproximação tinha o cobrador, que fazia o acerto de contas de banco em banco, durante o trajeto. Entre idas e vindas, trazia também gente do Centro e de Jucutuquara para a Praia do Barracão. Ponto final: Aleixo Netto.

O passado desfila na memória de Fernando Achiamé e, com facilidade, ele traz à tona o que pensava ter esquecido. Ruas que tinham outros nomes — quase todas de municípios capixabas — e pessoas que não estão mais aqui. "A Aleixo Netto, por exemplo, era Santa Leopoldina", lembra. E, ao comparar ontem e hoje, conta que poucas ruas preservam o nome original, a exemplo da Afonso Cláudio.

Ex-diretor do Arquivo Público e hoje fiscal da Fazenda estadual, Achiamé se recorda de um tempo em que a Praia era praticamente desprovida de comércio. Havia o essencial — entenda-se por isso apenas vendas de secos e molhados e farmácias. A maioria dos habitantes do lugar criava galinhas e patos nos quintais, tinha empregada doméstica, costureira — hospedada nas casas até concluir todos os serviços encomendados —, jardineiro, e contratava os serviços, com certa assiduidade, de um limpador de fossa.

Portas abertas para a rua. Lixo para enterrar ou queimar nos quintais. À tardinha, fechar as portas para evitar a invasão dos mosquitos. De dia falta água, de noite falta luz. Carroceiro para fazer mudança. Vida no ritmo das cidades do interior: controle social, família completa no almoço de domingo, frango com macarronada, missa pela manhã, rádio, casos de assombração, cantigas de roda, pescaria, caridade, amém.

 

Fonte: Praia do Canto – Coleção Elmo Elton nº 4 – Projeto Adelpho Poli Monjardim, 2000 – Secretaria Municipal de Vitória, ES
Prefeito Municipal: Luiz Paulo Vellozo Lucas
Secretária de Cultura: Cláudia Cabral
Subsecretária de Cultura: Verônica Gomes
Diretor do Departamento de Cultura: Joca Simonetti
Administradora da Biblioteca Adelpho Poli Monjardim: Lígia Mª Mello Nagato
Conselho Editorial: Adilson Vilaça, Condebaldes de Menezes Borges, Joca Simonetti, Elizete Terezinha Caser Rocha, Lígia Mª Mello Nagato e Lourdes Badke Ferreira
Editor: Adilson Vilaça
Projeto Gráfico e Editoração Eletrônica: Cristina Xavier
Revisão: Djalma Vazzoler
Impressão: Gráfica Santo Antônio
Texto: Sandra Aguiar
Fotos: Cláudia Pedrinha
Compilação: Walter de Aguiar Filho, março/2020

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