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Anchieta, o jesuíta - Por: Luiz Busatto

Padre José de Anchieta - O Poema na Praia

Todo povo tem os seus heróis. Em qualquer área das atividades humanas, os povos sempre precisam de modelos. A escolha da excelência destes modelos é sempre o resultado de uma aspiração coletiva. Assim, não podia ser diferente em relação à área religiosa. Por que foi eleito Anchieta e não os outros jesuítas que eram tantos e tão ou mais ousados que ele? Creio que a resposta repousa no imaginário popular. Os próprios jesuítas contribuíram para isto ao darem inicio ao processo de santificação de um companheiro. A prova? Vejam o livro Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas, do padre João Antônio Andreoni, sob o pseudônimo de André João Antonil, de 1711, que abre seu livro com uma página dedicada a canonização de Anchieta.

Aos senhores de engenho, e lavradores do açúcar e do tabaco, e aos que se ocupam em tirar aura das minas do estado do Brasil.

Deve tanto o Brasil ao Venerável Padre José de Anchieta, um dos primeiros, e mais fervorosos missionários desta América Meridional, que a boca cheia o chama seu grande Apóstolo e novo Taumaturgo, pela luz evangélica, que comunicou a tantos milhares de índios, e pelos inumeráveis milagres, que obrou em vida, e obra continuamente invocado para benefício de todos. Porém, confessar estas obrigações e não cooperar as glórias de tão insigne benfeitor não basta para um verdadeiro agradecimento, devido justamente, e esperado. Para excitar, pois, este piedoso afeto nos ânimos de todos os que facilmente podem ajudar como agradecidos obra tão santa, como a da canonização de um Varão ilustre, procurei acompanhar esta justa petição com alguma dádiva, que pudesse agradar, e ser de alguma utilidade aos que nos engenhos de açúcar, nos partidos, e nas lavouras de tabaco, e nas minas de ouro experimentam favor do Céu como notável aumento dos bens temporais. Portanto, com esta limitada oferta provoco aquela generosa liberalidade, que não consente ser rogada, por não parecer que dando quer vender benefícios. E ao mesmo Venerável Padre José de Anchieta peço encarecidamente, que queira alcançar de Deus centuplicada remuneração, na terra e no céu a quem se determinar a promover com alguma esmola as suas honras, para que publicadas nos templos, e celebradas nos altares, acrescentem também major gloria àquele senhor benfazejo.

Pode-se dizer que a companhia de Jesus produziu quase toda a História do Brasil até a sua expulsão em 1759. Como interpretar o Brasil e os jesuítas senão sob a ética dos mesmos? Como, se eram eles quem escreviam, e como escreviam, se eram eles que tinham propriedades produtivas de forma a competir com as da cone, sobretudo, porque se organizaram do norte ao sul do país? A primeira e as demais biografias de Anchieta foram feitas por jesuítas, inclusive a mais autorizada do Pe. Viotti e a História da Companhia de Jesus no Brasil do Pe. Serafim Leite. Quem tem mais autoridade para falar do Poema da Virgem e dos Feitos de Mem de Sá do que o Pe. Armando Cardoso que os traduziu e que acaba de lançar uma nova edição, a sétima da Arte da gramática da língua mais falada na Costa do Brasil?

Para sentirem a diferença dos escritos jesuíticos para com os demais basta ler uma biografia de Anchieta de um Celso Vieira ou de um Jorge de Lima para avaliarem o peso da autoridade dos jesuítas. A vida de Anchieta de Jorge de Lima, recém convertido, tem um quê de simpatia e dimensão religiosa como raramente se vê. Os fatos comentados, porem, são tirados das próprias cartas de Anchieta e da correspondência e escrito dos demais jesuítas.

Deve-se também mencionar o Pe. Antônio Vieira que, morto exatamente um século depois de Anchieta, em 1697, deixou uma obra vastíssima, uma leitura até pouco tempo atrás obrigatória para quem escrevia Português, foi o mais expressivo orador de seus tempos e exerceu um influencia diplomática nas cortes européias realmente de espantar.

O estado de ES teve o privilégio de acolher em vida e, sobretudo, na sua morte, o jesuíta José de Anchieta. Fala-se muito a respeito dele, ultimamente, e nem sempre o que se diz parece justo ou minimamente aceitável. A imaginação popular leva alguns a exageros que não condizem com a verdade histórica dos fatos. Alguns simplesmente deliram sobre o personagem porque desconhecem a História, suas fontes e documentos.

Recentemente, em 1988, o professor José Augusto Carvalho ao publicar Por uma política do ensino da língua inicia o capítulo sobre A ESCOLA dizendo que: "A educação no Brasil começou em 1549, com a chegada dos jesuítas, com o objetivo de propagar a fé, nos seus trabalhos de catequese. Era uma educação basicamente etnocida, genocida e elitista: etnocida porque propunha suprimir a cultura indígena, substituindo-a pela portuguesa, e impor aos índios a fé cristã, em substituição às crenças e costumes nativos; genocida, porque, pelos preceitos médicos da época segundo os quais a cura para a tuberculose poderia ser obtida pela mudança de alma, os jesuítas que vieram para o Brasil ajudaram a dizimar os índios, transmitindo-lhes, juntamente com o batismo, além do bacilo de Koch, as muitas outras doenças típicas dos brancos, às quais o organismo do índio não tinha condições de resistir; e elitista, porque estava a serviço dos pontos de vista do branco dominador, cuja cultura era imposta."

Em apenas doze linhas o professor descarrega em Anchieta todo o seu anticlericalismo e traumas pessoais e faz dele um saco de pancadas. Nada mais injusto, tamanha a desinformação histórica e ainda mantém a postura ingênua de Rousseau de considerar todo selvagem, o Bom! É claro que a própria palavra selvagem já conota um sentido negativo. Logo após, José Augusto se contradiz afirmando: "Depois que os jesuítas foram expulsos do Brasil, em 1760, por ordem de Sebastião José de Carvalho e Melo, o marquês de Pombal,... a educação no Brasil passou por uma fase de decadência, só modificada com a vinda da família real, em 1808.” Mas como foi possível uma decadência depois das acusações tão categóricas acima?

Há também quem fale dos jesuítas como moradores de convento, enfurnados em claustros, tratando-os como monges a cantar matinas e ludes, etc. Os jesuítas não eram conventuais.

Há políticos pretendendo fazer abaixo assinados para conseguir, no grito, a canonização do referido padre. Recentemente o jornal trouxe a seguinte declaração "Américo Menezes discorre sobre o apóstolo, seu túmulo, a praia onde ele escrevia seus poemas e que se chamava Reritiba." (Gazeta - turismo, 8-1-1997). O referido professor não disse esta bobagem que foi acrescentada pelo jornalista. Alguns falam em turismo religioso, não esquecendo que há uma ameaça de se fazer um filme sobre o padre, uma idéia excelente, desde que não seja eivada de preconceitos e ignore elementares informações históricas. Insistir nestes aspectos negativos seria um nunca acabar, pois como disse Voltaire, "eterna é a tolice humana, mas também eterno é o combate contra ela."

Anchieta era um jesuíta e só quem conhece um pouco a ordem religiosa a que pertenceu e a sua própria história sabe que toda uma montanha de equívocos se originam da ignorância destas informações. As pessoas, na modernidade, sobretudo o espectador televisivo, opinam sobre tudo e sobre todas as coisas com a maior cara de pau, fazendo disto um apanágio da liberdade de opinião e da cidadania.

 

A companhia de Jesus

 

Fundada em 1539, quando o papa Paulo III concedeu a sua aprovação oral, ela só se consolidou em 27 de setembro de 1540 com a bula papal Regimini militantis ecclesiae. Foi um Deus nos acuda na Cúria romana para que tal acontecesse. Uma ordem religiosa nova era algo inconcebível. O fundador desta Ordem Religiosa foi em basco de nome Inácio de Loyola, 1,58 de altura. Convertido dentro da própria fé cristã, sentiu a força e atração de uma missão que considerou divina. Associam a decisão por ele tomada com a rachadura da parede do castelo dos Loyolas, por onde julgam ter saído o próprio diabo. A vida de Inácio é digna de atenção, cheia de andanças e contratempos, de solidão, de mendicância, de prisão, de viagem à Terra Santa, etc. A Cúria Romana e o governo da igreja Católica iam mal das pernas. A reforma luterana já grassava na Europa. Inácio conseguiu reunir ao seu redor um pequeno grupo de seguidores do mesmo objetivo que, no fundo, era um retorno à doutrina e espírito do evangelho, Inácio precisou de muita constância e de toda diplomacia, da área de influência, pois afinal era um nobre da época. A 3 de maio de 1539, condensam suas resoluções - Inácio já trabalhava em grupo - em doze curtos capítulos e até o dia 24, empenham-se em esclarecer as questões em suspenso. Providencialmente, em vez de irem para a Terra Santa, por causa da guerra entre Veneza e Turquia, foram para Roma. E vêem nisto já uma intervenção providencial de Deus, pois a ordem vai se concretizar. A nova ordem, um grupo de seis, fazia votos de pobreza, castidade e obediência. Renunciava ao uso de um hábito particular, à oração no coro, às austeridades de regra. Não deveriam aceitar cargos eclesiásticos. Poderiam possuir rendimentos para as casas de estudo destinadas à formação de jovens religiosos, e chamar-se-ia "Companhia de Jesus". Donde se conclui que a SJ, iniciais de Societas Jesu, inova na Igreja, com a aprovação papal, um novo tipo de vida e ação religiosa. A SJ é uma ordem militante e não conventual. Possui casas, residências e colégios. Inácio de Loyola que em tempos de recém-convertido vivia de esmolas descobriu que era impossível esmolar para sobreviver e conciliar esta tarefa com estudos e trabalho de atendimento religioso, ele que estudou no meio de crianças depois de adulto e conseguiu se formar mestre de Letras em Paris em 1534. Neste ano nascia um parente seu, era Anchieta. A SJ adota os costumes dos lugares onde exerce sua atividade, não se distinguindo pelo hábito que veste mas pela conduta que assume. A qualidade fundamental do fundador da ordem era a fé na Transcendência e tudo o que fazia convergia para a maior glória de Deus. As decisões que tomava eram feitas através de métodos e exercícios espirituais, tendo Jesus Cristo como mediador nesta transação. A conversão de Inácio se dera graças à Vida de Cristo de Rudolfo de Saxônia. Também a Imitação de Cristo era um dos seus livros prediletos. Numa época de isolamento e meditação, em Manresa, Inácio teve revelações místicas e forjou um livreto, Os Exercícios Espirituais.  É exatamente o que passou para os primeiros seis companheiros que conseguiu aglutinar ao seu redor, não sem um anterior fracasso na tentantiva de arranjar adeptos do seu ideal. Diogo Laynes, Alfonso Salmeron, Pascoal Broet, Jean Codure, Cláudio Jaio. A eles vão se agregar também mais quatro num grupo de dez, dez que valiam por mais de cem: Pedro Fabre, Francisco Xavier, Simão Rodrigues e Nicolau Bobadilla. O grupo cresce em qualidade quando se nomeiam um Pedro Ribadeneira, um João Polanco, o secretário, um Pedro Canisio, um Francisco de Borja, estes dois últimos também santos da igreja católica. Quando Inácio de Loyola morreu em 1556, os jesuítas eram mais de mil, mas só 38 eram professores, isto é, faziam o quarto voto de obediência ao Papa. Quem não era professor era "coadjutor'. A ordem tinha também irmãos leigos que não se destinavam ao sacerdócio, mas que faziam os três votos e se dedicavam aos trabalhos físicos. Houve uma tentativa de três mulheres fundarem a parte feminina da Ordem. Mas as três deram mais trabalho que todo o resto e foram mandadas embora com a autorização do Papa.

Até alguns anos atrás para se formar um jesuíta, o caminho a percorrer depois do segundo grau completo, consistia em dois anos de noviciado, um de juniorado, três de filosofia, dois de magistério e quatro de teologia. Anchieta foi um jesuíta que deu certo; mas é bom que se saiba que fez todo o curso sendo acompanhado por padres e colegas sem sala de aula até se ordenar sacerdote em 1566, na Bahia.

 

José de Anchieta

 

Anchieta era parente próximo de sangue de Inácio de Loyola. Dizem os biógrafos, inclusive que ambos tinham olhos azuis. O porquê Anchieta veio para o Brasil todo mundo sabe, o que a maioria ignora é o aspecto principal, que era um jesuíta. Depois da expulsão do Brasil, o termo jesuíta passou a significar "hipócrita falso e mentiroso", exatamente, por causa da campanha difamatória contra eles promovida pelo Marquês de Pombal. Os jesuítas eram, pela sua competência, confessores de reis e nobres e estavam continuamente metidos em serviços diplomáticos. Jesuíta quer dizer, em latim: assim como Jesus. A explicação para a expulsão se deveu ao poder dos jesuítas. Poder e propriedades. As propriedades dos jesuítas nas Américas incomodaram todos os reis na Europa, menos o Papa nos Estados Pontifícios e Catarina, a Grande, da Rússia que não permitiu a expulsão dos jesuítas do seu império.

Hipócritas ou não, o certo é que não há história do Brasil sem a história da companhia de Jesus. E se Anchieta, Nóbrega e os demais foram hipócritas há muito pouco a salvar da História do Brasil. Anchieta escreveu muito, deu-se a conhecer no papel através de obras literárias e através de uma volumosa correspondência. Escrever cartas sempre foi uma atividade organizacional de primeiro plano na Ordem Religiosa. Santo Inácio deixou até 1549, 920 cartas e depois desta data mais 6641 num total de 7561 cartas. Pode-se saber tudo sobre os jesuítas, basta ir ao arquivo da igreja do Gesú em Roma. O problema é o acesso. (Pessoalmente conheço três volumes de cartas seletas de Inácio, de Francisco Xavier e de Anchieta). E todo jesuíta sempre foi livre de escrever quando e o que quisesse para os colegas superiores.

Em tudo o que fazia e dizia Anchieta era um jesuíta, um homem que acreditava na transcendência, tinha fé em Deus, na existência de uma vida além desta. Como justificar o seu procedimento sem a crença em um Deus?

Como jesuíta, Anchieta tinha uma linha de comportamento em nada condizente com o que falam em geral dele e dos jesuítas. As pessoas, hoje, não sabem o que seja e não valorizam o ascetismo, a penitência, o jejum, certas renúncias, a sublimação da vida sexual, o valor da oração, etc. Os meios de comunicação apresentam os padres, hoje, sempre de forma caricata ou então como uns fantoches e esquecem os padres bons, que são a maioria. Ainda existe uma unanimidade em reconhecer em certos religiosos algo de sobrenatural e valido, como o caso do padre João Batista Reus em São Leopoldo, RS; como o da irmã Dulce na Bahia; de um Frei Damião ou de uma Teresa de Calcutá. Se estas pessoas não são santas em vida, fica difícil falar de Transcendência.

José de Anchieta, pelo que se deduz de suas cartas devia exercer uma enorme influência sobre os indígenas por certas qualidades inatas e por aquilo que poucos ousam confessar em público, uma vontade divina. Anchieta tinha algo de pajé dos brancos. Consciente de sua debilidade física e de suas limitações humanas, Anchieta vivia e agia como se tudo dependesse do Deus no qual acreditava e que prescrevia costumes diferentes dos costumes indígenas. O que escandalizava os brancos europeus e aos padres de então foi resumido em três pontos principais: a nudez adâmica das populações brasílicas, o desregramento sexual das mulheres índias e a antropofagia. Pero Vaz de Caminha foi o primeiro a testemunhar o encanto da nudez simples na sua carta. Já Américo Vespúcio se espantava com a libidinagem das índias. Anchieta também, mas devemos creditar o mal da antropofagia a ser combatido porque desconhecia a concepção antropológica relativa à reprodução humana. De fato. Tal procedimento explicava-se na antropofagia. As índias procuravam engravidar do inimigo preso ou dos cristãos para se banquetearem com a carne tenra das crianças que consideravam fruto apenas da semente masculina e não delas. Tal procedimento justifica a lenda ou história anedótica de Anchieta tendo de ir ministrar os Últimos sacramentos a uma velha índia e de lhe ter perguntado qual era seu último desejo. A resposta foi o desejo de roer a mãozinha bem tostada de um curumim, isto é, uma criança.

A imposição da fé e do império português, não pode ser discutida aleatoriamente, mas reconsiderada diante do pragmatismo da história que não é utópica. A fazer disto uma bandeira de luta, qualquer religião deveria ser banida do mundo. E é isto o que quer e deseja uma minoria de agnósticos e ateus que só acredita na verdade das ciências positivas. Este sistema pragmático, positivista se opõe a todos os sistemas de crença que se baseiam na aceitação da fé. Religião é crença na transcendência, é um outro sistema cuja verdade não repousa na experiência das ciências positivas. Aí entra o problema do porquê da vida e do milagre, da intervenção mais ou menos acentuada do divino no humano, ou sua manifestação. Anchieta sempre acreditou na manifestação do divino na sua e na vida de seus correligionários. E pronto.

 

A canonização de Anchieta

 

A matéria tem rendido assunto há quatro séculos mas nunca se poderia imaginar que adquirisse um aspecto tão aviltante como se tem notado nos jornais. Quem acompanha pequenas interferências e opiniões nos desvãos das colunas jornalísticas deve ter percebido: querem fazer turismo religioso, atrair divisas e mão de obra para desocupados às custas da santidade de Anchieta. Querem que seja santificado no grito, na votação e nos abaixo assinados dentro de um projeto político ou empresarial a curto prazo como costumam ser os projetos agrícolas e industriais. Esquecem, em primeiro lugar, porque e como a Igreja Católica age através do seu sistema hierárquico. Em segundo lugar, esquecem o mais importante: a santificação de Anchieta não depende só da vontade humana e dos fiéis. Depende, sobretudo, do Transcendente. O ou os milagres necessários para provar que Anchieta é e foi um santo devem ser um problema resolvido também no outro lado da vida e do mistério que ninguém sabe. Também existe um ritual a ser cumprido e um processo que tanto pode ser rápido como pode ser secularmente demorado. A igreja está cheia de servos de Deus, de Veneráveis, de Beatos que estacionaram no tempo e não caminham para a veneração dos altares. A Igreja Católica leva muito a sério o mito da santidade nos altares. Todo santo é comprovadamente um herói do seu grupo social, um intercessor dos homens junto de Deus porque se inseriu e vive no eterno estado da graça divina.

 

Uma carta de Anchieta a Inácio de Loyola

 

Lendo-se e analisando uma carta de Anchieta há muito que aprender de lições históricas sobre a vida no Brasil ao tempo da descoberta. A que ele escreveu ao fundador da Companhia, por exemplo, em julho de 1554, é bem significativa. Primeiro fala de órfãos que Portugal mandava para o Brasil para que os padres cuidassem deles. A estes os padres acrescentavam órfãos mestiços da terra, cuja qualidade está assim descrita: "é a gente mais perdida desta terra, e alguns piores que os mesmos índios." Pensavam os padres em fazê-los irmãos leigos da Ordem ou encaminhá-los de outro modo de vida.

País depósito de criminosos de toda espécie, prostitutas, órfãos aleijados e doentes como o próprio Anchieta. O jovem Anchieta nota ao padre Inácio "que aqui, onde as mulheres andam nuas e não sabem se negar a ninguém, mas até elas mesmas cometem e importunam os homens, jogando-se com eles nas redes porque têm por honra dormir com os cristãos."

Anchieta não era antropólogo do século vinte para perceber que, na mentalidade dos naturais da terra a mulher não era parte essencial na reprodução humana. Era apenas como a terra na semeadura. Hoje, todos sabemos que as índias procuravam engravidar dos inimigos para comer a carne tenra das crianças. Belos costumes que o cristianismo veio atrapalhar!

Quando se fala deste jovem Anchieta escrevendo versos em latim em louvor à Virgem Maria nas praias de Iperoig não se mede a estatura moral da pessoa que era. Aquilo era um compromisso de votos com a sua crença na Transcendência. Abandonado e refém em Iperoig, no meio de uma tribo de costumes bem diversos, estava claro que foi um estratagema para fugir do assédio das índias e da ameaça contínua dos homens que não viam o momento de lhe quebrar o crânio e de banquetear-se com a carne do homem branco. Nada me tira da cabeça de que aquele jovem de olhos azuis e de roupas escuras sobreviveu entre os índios por ter sido considerado, também pelos índios como um pajé dos brancos. Havia sem dúvida um temor e ao mesmo tempo uma vantagem na sua pessoa. Uma das questões que logo no início tratou em uma de suas cartas foi a prática da sangria usada por Anchieta que ajudava na cura dos doentes. Santo Inácio fez vista grossa e aprovou. Segundo as normas atuais Anchieta deve também ser acusado da prática ilegal da medicina como foi acusado de transmitir o bacilo de Koch descoberto em 1882!

Numa época em que não se crê em nada de sério, em que não se acredita na vida além da morte, não vejo sentido em se falar de direitos humanos se a morte nivela bons e maus, heróis e bandidos.

Anchieta, o jesuíta, foi um homem de outra dimensão como muitos de seus colegas no Brasil ainda nos dias atuais. E os bárbaros ocidentais estão precisando mais do seu exemplo do que os índios daqueles tempos.

 

Fonte: Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo. Nº 49, ano 1997
Autor: Luiz Busatto
Compilação: Walter de Aguiar Filho, 01 de abril de 2014 

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