Cacimbas - Por Orminda Escobar Gomes
Poema
Em busca do feroz selvagem que apavora
Deixou seu rancho — entrando em um sertão bravio...
O campo, o tremedal, como a floresta e o rio
Ousado atravessou — a muito custo, embora.
À treva arrancará aquele a quem deplora
Em meio do esplendor da selva — onde erradio
Passando, olha e não vê... indiferente, frio
Pra o iris, o arrebol, e o rosicler da aurora.
Não pode compreender as pompas que o rodeiam;
Nem os mameis que, sempre, à noite bruxoleiam;
Nem o zumbir da abelha e da magnólia o odor.
Tem vida de animal, somente. Em despertando,
No imo de sua alma, a fé... irá, rezando,
Sentir que existe um Deus — Supremo Criador!
Na direção seguiu do matagal cerrado.
O seu olhar tão puro; o seu olhar suave,
Bem como o azul do céu; profundo, como o grave
Tocar do sino à tarde, além, no povoado;
O seu tranquilo olhar se torna amargurado
E aflito — toda a vez que, ao contemplar a nave
Da capelinha, nota a deserção... e uma “Ave”!
Murmura pra quem segue a senda do pecado.
Um índio acompanhou-o, ao se internar na selva...
Tão leve, tão sutil — pisando a verde relva
Que nem um só vestígio havia de seus passos...
“Se o forasteiro entrar na mata, mais e mais...
O rumo perderá... oh! sim... Voltar?! Jamais!”
Pensou... Do corpo seu não ficarão pedaços.
Clareira em frente. Ao lado, um viperídio dorme
Enrodilhado, à sombra... após, desperta e vendo
Aproximar-se alguém, ligeiro, vai erguendo
O horroroso porte, em espiral.... disforme...
O índio estremeceu; e dando um salto enorme
No forte arco ajustou a flecha, e distendendo
A corda... seu triunfo, audaz, foi antevendo...
Pois fez rolar, no pó, a vil cabeça informe.
Sangrando em fúria... o corpo, em vão, se debateu...
Rumor, o peregrino, atento percebeu
E em frente, um rosto brônzeo, apareceu irado.
Em chispas seu olhar que o estranho vence... as mãos
O Lenho elevam... Fez-se a paz entre os irmãos...
Transfigurou-se, o bugre ante o Crucificado!
O penetrante olhar do branco disse o quanto
Diria um magistral sermão. Assim, sereno,
Tolheu-lhe o movimento e a fala... O Nazareno
Pregado à Cruz — surpreso contemplou.. . Entanto,
Se revelara mau. O aspecto seu que tanto
Assustaria um simples caminhante — ameno
E calmo se tornou. Cruel, mortal veneno,
O ódio que nutrira até então! O espanto
Modificou, de pronto, o sentimento e os tratos
Do habitante livre dos sertões. Seus atos
Agora, mansidão traduzem... Sem temor
O asceta, após, falou... falou do bem que ensina
A “Santa Lei de Deus” a pura sã doutrina
Daquele que morreu, na Cruz, por nosso amor!
Após ouvi-lo, atento — Orone o Convidou
Pra ir à sua taba; estava longe ainda.
Seguindo na floresta escura, densa, infinda ...
De bichos infestada, ele um jaguar matou.
Faminto vinha. Então, o arco retesou....
Certeira, foi zunindo a flecha; e a fera, linda,
Atravessou. Ao ombro, o bugre o fardo guinda;
Levá-lo vai para a ocara. A caminhar, mandou
Que o esperasse, ali, o estranho. Entrou na brenha
Um cipoal rompeu; por traz de grande penha...
Sumiu-se. Vendo um tronco, o viajor se assenta.
Atentamente, lia o “Breviário”. Alheio...
Sem cogitar no tempo... Enfim, sem ter receio,
Mais dois selvagens, vê... e Orone se apresenta.
Tranquilo contemplou os índios. Radiantes
Se aproximavam, já, por um atalho oposto
Àquele que seguira; Orone — o qual transposto
Deixava ver malocas, muito além... distantes.
O que lhes disse o estranho ouviram, exultantes !
Patenteando, plena confiança e o gosto
Supremo de tocar, ouvir e ver o rosto
Do viajor poupado ao sacrifício. Instantes
Após o encontro amigo, se afastaram da aba
Impenetrável, densa; e foram para a taba
Onde o cacique, o chefe, os esperava em festa.
Falou-lhes ao chegar, o branco, de tal sorte
Que congregou as tribos dos confins do norte...
Catequizando, em breve, os donos da floresta.
Permaneceu prudente, o asceta, entre o gentio.
Ingênuos, bons, fieis, constantes, prestimosos...
Manifestavam, sempre, o quanto jubilosos
Julgavam-se a seu lado. Assim, não mais bravio
O humano ser que, eterno errava no sombrio
Docel da selva olente. Aqueles valorosos
Guerreiros, já agora, — humildes, respeitosos,
Ouviam-lhe a palavra amena qual cicio
Da brisa nos juncais. A fé ele implantara
No simples coração d'aquela gente ignara
Que, cruelmente, foi de início escravizada!
Fugindo pira viver das matas, no recesso,
Porque mais nada tinha. O índio — peito opresso —
Sentia a dor atroz da raça relegada!
Serenamente e belo, o tempo se escoava...
Cedinho, o catequista doutrinava a gente
Que se sentia bem ao lado seu... Contente
O grande, audaz pagé, a tribo acompanhava.
Voltar devera, em breve, o peregrino. Estava
A sementeira feita; e, ele certamente
Mais tarde, exultaria ao vê-la viridante
Surgir pelo sertão ignoto. Inda pensava...
Pensava... no ideal sublime que afagara;
E na ventura imensa que também gozara
Fazendo despertar, no bugre, a confiança.
Porém... sentiu num dia... incrível mal-estar...
Insônia... aturdimento... assim, ia enfermar..
E resolveu seguir para a aldeia, sem tardança.
Pediu-lhe que ficasse, o bom cacique amigo
Ia o pagé curá-lo... um nada, o que ele tinha.
Saúde gozaria... Após, si lhe convinha
A seu rincão voltar... não se oporia. Abrigo
Teria em sua taba, o companheiro antigo;
Aquele que à manhã, à tarde e à noitinha
As rezas ensinava... (oferta, assim, continha
Solene jura!) Quis livrá-lo do perigo
De regressar sozinho. E cinco bons guerreiros...
Do asceta, às ordens, pôs... dispostos, altaneiros,
Garbosos... para seguir as armas empunharam.
Que grande obediência! Nobre o proceder
Dos bugres que, fieis, somente para atender
Ao bom morubixaba, o branco acompanharam!
O missionário, então, agradeceu o quanto
Houvera do cacique recebido. Crentes
E fundamente bons, inúmeros presentes
Fizeram-lhe, da tribo, os maiorais. Entanto,
Forçoso era partir. À frente, Orone, enquanto
O asceta ladeado pelos quatro ardentes
Selvagens — cabisbaixo, triste, mui frequentes
Ocasiões, vacila e o passo encurta... O manto
Da morte, lentamente, o envolve... Comovido,
Orone, ao vê-lo assim... avança e decidido
Suspende o corpo seu... Da sapucaia ao pé...
Detem-se... e, após, melhor se achando o catequista,
Apressa a dura marcha... um tanto mais... À vista
O arraial, enfim... o belo Cricaré.
Descanço. Após, partiu a caravana. Vinha
Alvorescendo, lindo, um dia de verão.
A luz do astro-rei brilhava na amplidão
A despertar o tigre, a corça, a ovelhinha...
O nobre ser humano e quanto na alma aninha.
Em uma tosca rede, aos ombros — com emoção —
Levado era o enfermo a quem a multidão
Queria, venerava e como um santo tinha.
Difícil o trajeto; a mataria densa;
Amigo o povo humilde — em sua fé imensa...
E seu sincero amor àquele que sofria...
A febre ele habitara, sem temer, paragens
Onde o perigo estava em tudo... Nas folhagens,
No solo ingrato, no ar... a febre o consumia!
Reverberava a praia, além, apôs Regência.
O areal ardente, extenso... interminável...
Nem uma sombra amiga! Horror inigualável!...
Urgia, então, chegar... Tristíssima ocorrência...
Estava mal o enfermo. Em grande sonolência...
Permanecia inerte. Um medo incalculável
Sentia a turba ao ver, na rede, o venerável
Sem forcas... a morrer... do sol sob a inclemência!...
O próprio pessoal que, assim, o transportava
Sofria cruelmente... a água se acabava
E... era intensa a sede... o solo hostil, avaro!...
Silenciavam todos. Mas... quando anteviram,
A suspirar, da morte a perspectiva... ouviram:
“Aqui !... Alto!” uma voz pronunciar, bem claro.
Parou o pessoal, obediente ao mando
Daquele pobre enfermo ardendo em febre... A custo,
Na rede se moveu; e, levantando o busto,
Pediu que o amparassem. Logo, após, voltando
Ao céu o olhar, rezou... O rosto venerando
Se iluminou, então... Com o seu bordão adusto
Tocou a areia em fogo... “Aqui... Cavai! É justo
Que saciar possais a sede”... Cintilando...
A praia foi sulcada. Aqueles mais constantes,
Leais na fé de Deus — tornaram-se exultantes!
Milagre! Sim! Milagre! Uma água cristalina...
Brotou no areal... E o povo, satisfeito,
Orou com o catequista - agradecendo o feito,
O benefício, a graça, a proteção divina!
O mar bravio, grosso; a praia larga, infinda...
O sol qual placa rubra, ardente, rebrilhava...
E caminhando, triste, a turba receava
A sede, novamente, atormentá-la... Ainda
Distava a aldeia, muitas... muitas léguas. Linda
Situação, ali... mas... só interessava
Seguir com rapidez — pois que necessitava
O enfermo repousar. Bendita a sua vinda!
Na solidão da selva, à míngua de conforto
Só com os fieis amigos, estaria morto
O meigo missionário, o defensor da fé!
Voltava a seu rincão — doente, aniquilado.
Ali, fizera amar — Jesus Crucificado
Bem como nos sertões do grande Cricaré!
Por vezes, quatro ou cinco, a sede os assaltando —
O viajor, tremendo, a areia então tocava...
E a água fresca, leve e clara borbulhava
Com abundância, à turba audaz, desalterando.
Em marcha acelerada, o pessoal deixando
Do norte o litoral, no branco, só pensava...
Sofria muito... muito... ah ! quanto lhe custava
Vencer a areia jalde ao sol, sempre brilhando?!
O viandante incauto, ali passando, após,
Não mais sentia a sede requeimar-lhe, atroz,
Pois nas cacimbas via — o brilho da esperança!
Do humilde enfermo, a prece, ao céu foi ascendendo...
E Deus — piedoso e bom assim, se comovendo,
Do asceta compensou a grande confiança!
Taperas, povoados, arraiais - vencidos
Sem reclamar, sequer! A caravana ia
Seguindo satisfeita... e, assim, não mais temia
O desespero, o horror dos longos dias idos.
Ridente, uma colina eleva-se; envolvidos
Em densa bruma, os montes — como a serrania;
E o Padre Anchieta — olhando, em derredor, sorria
Fiéis abençoando, em pranto comovidos.
Voltando a Rerigtiba, o seu retiro amado
De cujo outeiro via o rio, o mar irado...
E oferecia a Deus o puro coração...
Recuperou, depressa, as forcas e a saúde...
Em sua humilde cela, em meio à gente rude
Sob o bendito olhar da “Virgem da Assunção!”.
Fonte: Lendas e Milagres no Estado do Espírito Santo (Poesias 1551-1950) – Prêmio Cidade da Vitória, 1951
Autora: Orminda Escobar Gomes
Compilação: Walter de Aguiar Filho, março/2021
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