Bares, doces bares amargos da juventude - Por Milson Henriques
A geração saúde, da qual faço parte – como espectador, mas faço – não tem idéia do que representava o bar no meu tempo de jovem. Não curto essa de falar do passado, mas como em minha vida este tempo já é maior que o tempo futuro, não tenho outra saída. Espero que este depoimento seja lido pelos verdes boêmios de agora...
Bar hoje é um ambiente agitado, descontraído, onde em sua maioria bebe-se cerveja (falta de imaginação, de grana, ou excesso de marketing?), fala-se alto, canta-se, ouvem-se cantares, droga-se paquera-se, mostra-se, finge-se de bêbado e, principalmente, busca-se a alegria. Bem diferente dos bares dos anos 50 e 60, quando a boemia era quase uma religião e o bar seu templo. Como em toda religião havia uma certa encenação solene que tentava tornar crível a ilusão e fuga através da embriaguez dos sentidos. E como em quase toda religião antiga, adorava-se a tristeza. Alguns trechos de músicas cantadas naqueles anos: - “Mesa de bar confidente, fiel companheira, és a maior testemunha da minha desgraça!”... “Quantos estão pelas mesas bebendo tristeza, querendo ocultar o que se afoga no copo, renasce na alma, desponta no olhar”... “Se chegue tristeza, se sente comigo aqui nesta mesa de bar, beba do meu copo”... ”Bar tristonho sindicato de sócios da mesma dor, bar que é refúgio barato dos fracassados do amor”... Sentiram a barra?
Claro que existem os baderneiros, o bêbado chato, as comoventes coroas famintas de companhia masculina, o brigão que quer aparecer, o metido a cantor, os adolescentes tomando o primeiro porre, o solitário misterioso, o recém-separado quarentão em busca de capim novo, enfim, a eterna fauna da noite, que por motivos diversos não suporta a solidão ou o excesso de gente em casa e sai em busca. De quê? Nem eles sabem.
Ao falar de bares antigos em uma coletânea corro dois riscos: ou citar os mesmos lugares que todos, o que ficará repetitivo, ou falar de bares que ninguém conheceu, o que comprometerá minha fama de boêmio tão bem cultivada. De qualquer modo vamos ao agradável labor de rememorar os que eu freqüentava, lembrando que havia também as boates Buteko, Cave, Aux Chandelles, Porão 214, Anelise, Monalisa (as duas últimas freqüentadas por senhoras não muito de família), mas aí já é outro assunto. Como tudo criado pelo homem, o bar sempre foi e será dividido em classes sociais distintas. Por exemplo, o Marrocos, na Rua Duque de Caxias, atrás da praça Oito, o primeiro que freqüentei assim que cheguei a Vitória, nos idos de 1964. Lá reunia-se a esquerda intelectual festiva ou não, uma verdadeira igrejinha fechadíssima, formada de jovens inteligentes, pretensiosos, que iriam mudar o mundo ( o tempo provou que o mundo mudou todos eles...) O prato famoso era o filé ao Marrocos. Garçom era o “Cariacica”. Ali madruguei porres homéricos, bebi uma lente de contato, chorei desamores...
Já o Dominó, no então aristocrático Parque Moscoso, era freqüentado por mocinhos (mocinhas não iam a bar) das famílias ricas. Sua decadência começou quando um garçom matou a tiros um dos rapazes freqüentadores, num tempo em que crimes ainda abalavam a população. Eu só o freqüentava pela madrugada para comer a última refeição do dia – ou a primeira? – um delicioso e pavoroso arroz com ovo e salsicha.
O Britz Bar (da cidade) começou a subir com a queda do Dominó, e ficou famoso por estar localizado perto das redações de todos os jornais e logicamente freqüentado pelos jornalistas que viam o sol nascer em suas cadeiras. A esquerda jovem liberal, hippies, os porraloucas, a polícia federal disfarçada, as primeiras bichas liberadas, fizeram lá seu ninho para tomar cerveja quente, sentir o terrível odor do banheiro, os esporros do proprietário, a reclamação do prédio em frente em forma de sacos plásticos com urina lançados das janelas... Sabem o mistério daquela pessoa feia, sem educação, vulgar, desbocada, sem graça, mas que você não consegue passar um dia sem ver? Assim era o Britz.
Ao Bar Santos fui relativamente pouco, talvez porque, apesar da localização no coração da Vila Rubim, era muito familiar. Mas o ambiente antigo, as famosas mesinhas de tampo de mármore, as deliciosas canoinhas com Toddy duplo, a simpatia dos proprietários lusitanos, dá uma saudade!
Mar e Terra era mais restaurante do que bar. De suas janelas via-se a Ilha do Príncipe e o mar, onde hoje existe a rodoviária. Na alta madrugada era ponto de prostitutas com seus clientes, cafetões, os boêmios mais adultos e escolados e... a alta sociedade da Praia do Canto, que, voltando das boates, antes de dormir ia deliciar-se com a famosa galinha ao molho pardo. A clientela tão diversa não se misturava, havendo sempre o maior respeito e uma certa cumplicidade entre as madames e as “madamas”. Famoso também era o banheiro, onde chegava-se abrindo uma porta e descendo por uma escada estreita, escura e íngreme que terminava na maré, onde várias vezes mijei em cima dos siris ao lado da privada. Sem falar nas ocasiões em que fiquei vigiando a porta para que a indefectível Carmélia, gorda e com medo dos siris, não chegasse ao fim da escadaria e se aliviasse ali mesmo no meio dos degraus. Êêê tempinho bom!
Estes eram os meus bares. Esporadicamente batia ponto também mo Miramar e Bar do Iate Clube, na Praia do Canto, Bar do Álvaro e Shakesbeer, respectivamente ao lado e atrás do Teatro Carlos Gomes, Bar do David (Jucutuquara), Scandinave (no centro), Bar do Grego (na Duque de Caxias), Bar do Toninho (na longínqua Praia da Costa, onde dormi várias vezes esquecido pelos amigos que tinham carro), Bar do Caranguejos (Paul) e muitos botecos anônimos, principalmente em Santo Antônio. Não esquecer o saudoso Terra Viva, em Santa Lúcia, berço de muitos cantores capixabas, onde dei adeus à vida noturna.Só que este foi mais recente, da década de 80.
Um bar porém marcou minha vida. Era o Vermelhinho ou Bar do Ralph, situado em uma sobreloja em plena praça Costa Pereira, em frente ao Teatro Glória, onde hoje (1995) existe uma farmácia. Pequeno, aconchegante, com poltronas vermelhas estofadas lembrando um carro-restaurante de trem, quatro lugares fixos com vista para a janelinha, separados dos outros por meia parede de madeira, o que proporcionava uma deliciosa intimidade. Curioso que a freqüência maior era durante a tarde, o freguês divisando todo o movimento da praça sem ser visto, já que na sobreloja as pequenas janelas ficavam ocultas pelas copas das árvores. Foi ali, numa tarde de chuva fina, carpindo uma fossa amorosa, que tomei uma grande decisão. Bebericava em silêncio junto com Zélia Stein (colega de teatro que tinha a propriedade de, quando de pileque, chorar com um só olho) quando, olhando a praça, avistei os moços Elcio Álvares e Marien Calixte cruzarem por Boião, mendigo negro enorme que morreu de beber, logo após passarem pelos jovens Marcos de Alencar e Amylton de Almeida, e pararem para um papo com o quase garoto Antonio Carlos Neves e Arthur Carlos Gerhardt Santos. Em seguida adentrou no bar a figura de Mané Diabo seguida pelo locutor de rádio Gerson Camata. Todos já eram personagens da cidade, eu os conhecia e me conheciam. De uma forma ou de outra faziam parte de minha história. Aí, veio a decisão: - Vou ficar para sempre em Vitória! Além do mais eu já estava embriagado de amor pela ilha.
Acho que é por isso que não freqüento mais bares. Não preciso. Meu porre – de amor – é permanente.
Fonte: Escritores de Vitória, 1995
Autor: Milson Henriques
Compilação: Walter de Aguiar Filho, janeiro de 2014
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