Caramurus e Peroás – Por Elmo Elton
Em Vitória, os devotos de São Benedito, muitos deles autênticos tipos populares da cidade, se dividiram em dois partidos: - caramurus e peroás. No começo, mantinham simples rusgas, depois essas rusgas redundaram em seríssimos atritos. As desavenças mais se acentuaram a partir de 27 de dezembro de 1832, quando deveria sair do Convento de São Francisco a procissão de São Benedito. Aconteceu que Frei Manoel de Santa Úrsula, guardião daquele cenóbio, decidiu suspendê-la, visto ser dia de muita chuva, - decisão com a qual não concordaram os da Irmandade, ali sediada, já que acreditavam que estiaria o tempo, assim que o andor de São Benedito apontasse no adro da igreja.
Dia seguinte, após a missa dominical, a Irmandade de São Benedito se reuniu para discutir sobre o impasse criado pelo frade-guardião, então ausente do convento, uma vez que teria ido à casa dos pais, na localidade de Santo Antônio, onde fora avisado, pelo escravo Bento, do que estava acontecendo no Convento. Frei Manoel, de imediato, retornou à cidade, e, após séria discussão com os devotos descontentes, acabou atirando no adro do convento todos os livros e demais pertences da Irmandade.
O resto foi bem assim, conforme conta estudioso do assunto:
"Sabedor, posteriormente, de que havia um plano arquitetado para retirar do São Francisco e levar ao Rosário a imagem de São Benedito, Frei Manoel baixou-a do altar, escondendo-a numa saleta. Pouco depois, é substituído, no guardionato, pelo ilustrado orador sacro Frei Antônio de São Joaquim. Este sacerdote, idoso e surdo,- recolocou a imagem no seu antigo local.
23 de setembro de 1833. Domingo, sete e meia da manhã. A igreja está deserta para a missa conventual da Ordem Terceira de São Francisco. Os sinos já haviam repicado a primeira vez. Ruas desertas. Sinhás, senhores, escravos e negros forros preparam-se às festas. Os guardas constantes da imagem de São Benedito - o escravo José Barbeiro e o cozinheiro Bento - retiraram-se a serviço. Em sua cela, alma elevada a Deus, Frei Antônio de São Joaquim ora. . . Três vultos surgem do Porto dos Padres. São eles Domingos do Rosário, o africano liberto Antônio Motta e o crioulo Elias de Abreu. Seguem pela rua da Lapa, sobem a ladeira dos Frades, e, encostadas às paredes da Ordem Terceira, vão à igreja. Num instante São Benedito desce do altar; às costas de Antônio Mota, caminha ladeira abaixo. Na rua da Capelinha, hoje cel. Monjardim, esperavam-lhe outros companheiros. Todos percorrem o Pelame (praça municipal e lugares circunvizinhos) e chegam, triunfantes, ao largo da Conceição, atual Praça Costa Pereira.
Os sinos do Rosário dobram às festas. Repicam. Repicam. E, a seus sons agudos e repetidos, à sua voz metálica e alegre, juntam-se os estouros dos foguetes. A procissão - porque agora é verdadeira procissão - atravessa a ponte do Reguinho (canal d'água na rua Sete) e leva a imagem ao Rosário, onde ela ficaria, daí para diante, com sentinela aos pés.
Este acontecido provocou rivalidades incríveis entre as duas irmandades – a do Convento de São Francisco e a do Rosário, que veneram o santo – e foi causa de lamentáveis conflitos, até os feridos, como os do Largo da Conceição, da Ladeira Pernambuco, do Porto dos Padres, da Rua dos Quadros... Em compensação, porém, deu as festas do padroeiro do Rosário um deslumbramento então jamais alcançado.
A imagem retirada do São Francisco foi então substituída por outra. Agora os festejos do outeiro ultrapassavam, em fulgor, em brilho e animação, às festas anteriores. Isto, acreditavam os do Rosário, era provocação. E deram, aos irmãos do São Francisco, o apelido de caramurus eram os partidários do partido político e restaurador, tidos e havidos como provocadores. Daí o apelido. Os de São Francisco, porém, receberam a coisa pelo lado ridículo, pois caramuru é peixe de qualidade inferior, e repeliram a alcunha recebido nas bancas. Os primeiro usavam mantelete verde na opa e os segundos um mantelete azul, que representavam as cores dos dois peixes.”(6)
Mais tarde, na revista "Ontem e Hoje", de Ubaldo Rodrigues, apresentada pela Companhia de Operetas da atriz Júlia Plá, que inaugurou, em Vitória, o Teatro Melpômene (1896), foram cantados estes versos alusivos à rixa entre caramurus e peroás:
I
"Agora que estás pra riba,
Fala' podeis;
Mas depois na pindaíba
Ficareis.
Estamos no mês de alegria
Da festa dos peroá ) Coro
Onde passamos, noite e dia )
Dançando no Camundá,
Camundá, Camundá, Camundá,
Ca. . . mun. . . dá!
II
Podeis vestir vosso verde,
Caramuru,
Que a cô que eu visto não perde
Do céu o azu.
III
Deixai-vos de pabulagem,
Ai peroá.
Que a cô que eu visto no traje
É a cô do má.
IV
A cô azu é celeste,
É diviná.
Os peroá são quem veste;
Pra machucar."
Em 27 de março de 1905, o Bispo Diocesano Dom Fernando de Souza Monteiro, já cansado de assistir às rusgas entre caramurus e peroás, "inflexível no decoro e magnificência do culto católico, de modo a educar o povo induzindo à compreensão do sublime e a diferença entre religião, fanatismo e exibição", baixou portaria reduzindo a três as procissões de Vitória, excluindo a de São Benedito.
Os devotos beneditinos, de pronto, se rebelaram contra tal medida. Os caramurus, valentes e históricos, "eram Ca-pi-xa-bas e não aceitavam restrições a seus costumes fervorosos. Ninguém perderia o seu chale verde e sua camisa de seda que trazia a cor do mar. O lendário Convento, onde o carrilhão secular dobrava a música deliciosa, que saturava de poesia a cidade-presépio, emoldurada pelas encostas virentes do Bastos, da Piedade, da Fonte Grande e do Moscoso, festejaria de qualquer modo o seu Benedito querido!
- O Bispo não quer a festa na igreja? - Faremos nossa barraquinha e nosso leilão, - na . . . rua!"(7)
Assim, estourou uma festa inteiramente profana, diante do Convento de São Francisco, sempre terminando com bebedeiras, xingamentos e grossa pancadaria entre caramurus e peroás. (Em Vitória, ainda no começo deste século, a população se constituía mais de pretos e mulatos, muitos deles temíveis capoeiras.)
Desativados a igreja e o convento de São Francisco, ambos, então, já muito arruinados, foram inúteis as tentativas da irmandade de São Benedito para que se restaurasse, ali, o culto ao santo preto, ainda que sob a alegação, conforme documento enviado àquele prelado, de ter a irmandade fundado, em 1874, a Sociedade Emancipadora Primeiro de Janeiro, quando começava a evoluir o espírito de extinção dos escravos"; de ter libertado com o produto de suas rendas a diversos irmãos cativos; de ter aberto, também, em 1874, nas dependências do Convento, um hospital para tratamento de variolosos, de ter criado uma escola noturna, após a Lei de 13 de maio de 1888, "onde aprenderam muitos libertos", de ter fundado a Sociedade Beneficente Franciscana, que, "embora de caráter mormente civil, há prestado muitos socorros aos indigentes e pensiona a família de seus sócios falecidos etc."
Desfeita, para sempre, dita Irmandade, a do Rosário, continuou, persistente, em suas atividades, até que, após a morte de Dom Fernando, ocorrida a 23 de março de 1916, pôde restabelecer a procissão anual de São Benedito, embora sem o mesmo entusiasmo e fanatismo de antes.
Mas, enquanto suspensa a procissão de São Benedito, era vista, constantemente, em vários pontos da cidade, a figura popularíssima de um peroá saudosista. Chamava-se Cassiano, tipo sarará, de olhos agateados, cabeleira armada, tal se fosse uma peruca. Vestia opa de sua Irmandade, com mantelete azul, trazendo consigo, além da sacola de esmolas (as esmolas se destinariam ao culto de São Benedito), a litografia do santo, em caixilho de cedro, mais se assemelhando o pedinte a algum personagem copiado de uma aquarela de Debret. Batendo à porta de veteranos irmãos peróas, conseguia sempre arrecadar pequenas quantias, antes recordando com estes trechos da vida de São Benedito, seus milagres em Vitória, as rusgas entre caramurus e peroás.
Quando, a partir de 1916, se restabeleceu a procissão de São Benedito, Cassiano, infalivelmente, a acompanhava, muito contrito, embora à zombaria da garotada e ao despeito de velhos caramurus. Dizia-se, então, que, toda tarde, lá ia ele à igreja do Rosário levar os óbulos conseguidos durante suas andanças, sendo que, ali, na contagem do dinheiro, usava a divisão marota:
- Dois para mim e um para o santo.
Cassiano, nos últimos anos, foi sacristão da igreja de São Pedro, na Vila Rubim.
Foram, ainda, peroás famosos: Zé do Barão, também chamado Zé Guizô, tocador de bumbo da banda do Rosário; Donêncio Pinto das Virgens, leiloeiro de prendas, e Antônio Mota, mais conhecido por Macota, este o idealizador e executor do roubo da imagem.
Atualmente, a procissão de São Benedito ainda se realiza, mas com percurso e acompanhamento reduzidíssimos. A Irmandade dispõe de cemitério particular destinado a seus membros, no bairro de Santo Antônio, daí que os poucos "irmãos" costumam trazer em dia o pagamento de suas anuidades, talvez nem tanto por devoção religiosa, mas para não perderem o direito à sepultura que lhes garante a Irmandade.
Notas
(6) BONFIM, Celso. A religião na história do Espírito Santo, palestra realizada no salão nobre da Prefeitura Municipal de Vitória, em 31 de junho de 1943.
(7) NOVAES, Maria Stella de. Um Bispo Missionário, Vitória, Escola Técnica de Vitória, 1951.
Fonte: Velhos Templos e Tipos Populares de Vitória - 2014
Autor: Elmo Elton
Compilação: Walter Aguiar Filho, fevereiro/2019
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