Duas histórias – Por Plínio Marchini
I - A VISITA
O DIÁRIO era uma casa no alto da Rua Sete. As oficinas ficavam ao lado, num galpão.
Nem sujo nem limpo. Encardido. Não adiantava pintar as paredes, lavar as oficinas. Ficava aquele clima de coisa relaxada, de que todos nos envergonhávamos sem confessar.
A partir da pequena escada escura que dava acesso ao salão, a impressão da visita não poderia deixar de ser péssima, para nosso desconforto.
Clichês espalhavam-se pelas mesas, máquinas de escrever, antigas e lerdas, sem as tampas, tombadas nas escrivaninhas para desobstruir o espaço do redator; marcas de tinta borravam digitais pelas paredes. Portas verdes, verde atrevido, grosso, de não esquecer.
Até hoje, ao lembrar-me de tudo isso, sobe-me um desconforto de desasseio.
Numa época, O DIÁRIO foi comprado por um empreiteiro de Campos, Mário Tamborindegui. Era um homem rico, ligeiramente espalhafatoso. Anunciada sua visita, fomos recebê-lo, à noite, na porta do jornal. Não estava só. Acompanhava-o sua mulher, jovem, linda, uma das mais bonitas que eu já tinha visto. Uma lady, uma fada, um deslumbramento desde seu apuro esgalgado até o olhar altaneiro, mas simpático.
Pude ver-lhe a surpresa, educadamente disfarçada. Devia ter sonhado ver um jornal e agora adentrava nossa amada estrebaria. De repente tudo parecia ainda mais sujo, triste, suado. E quanto mais a deusa fingia ignorar nossa pobreza trapista, mais nos agredia.
Subida a escada, dentro da redação, abriu simpaticamente o pacote que trazia nas mãos. Vinha de uma recepção. Lembrara-se de nós, trazia-nos docinhos da festa. Comemos os docinhos ali, à frente das visitas, vencidos, humilhados, sem brio ou orgulho. A lady se foi para sempre, mas aquela mulher até hoje vigia as minhas vaidades, humilha algum momento da minha soberba. Me faz ver como sou e como sempre espero ser.
II - O TIRO
Estacionei o Citroen na frente dO DIÁRIO, onde trabalhava. Olhei em volta, antes de abrir a porta. Meti a mão na maçaneta e estendi a perna para fora. Foi aí que escutei o tiro seco, perto, inesperado. Ouvi um barulho de metal, vi um friso do Citroen subir aos ares e se aplastrar no chão.
- Estou sob fogo - pensei antes de me abaixar.
Encolhido, fiquei pensando quem estaria tentado me matar. O jornal era oposicionista, eu tinha 11 processos na Justiça por vários delitos de imprensa. Vivíamos em clima de tensão, e atentados contra políticos e jornalistas não eram incomuns.
Esperei alguns segundos. Não houvera um segundo disparo. Me animei um pouco. Olhei em volta. Tudo normal.
Foi quando vi o revólver. O meu revólver, que sempre levava no bolso esquerdo da calça, pois sou canhoto. Estava no chão, ao lado da porta do Citroen.
Entendi. Quando abri a porta do carro (que se abria ao contrário, naqueles Citroen antigos) e levantei a perna para sair, o revólver escorregou do bolso, caiu no calçamento. O cão deve ter se chocado contra o paralelepípedo, disparando. O tiro atingiu a lateral, arrancando um friso. Ufa, que alívio. Abaixei-me meio sem graça, recolhi o revólver, subi a escada e fui trabalhar.
Fonte: O Diário da Rua Sete – 40 versões de uma paixão, 1ª edição, Vitória – 1998.
Projeto, coordenação e edição: Antonio de Padua Gurgel
Autora: Fernando Jakes Teubner
Compilação: Walter de Aguiar Filho, fevereiro/2018
Plinio Marchini. Escritor e publicista. Dirigiu vários jornais no Estado, estando atualmente à frente do matutino “O Diário”
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