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Ele era o Professor, nós as Maducas – Por Marilena Soneghet

Capa do livro: Coletânea de estudos e registros do folclore capixaba 1944-1982 - Autor: Guilherme Santos Neves

“Põe o lencinho no bolso/ deixa a pontinha de fora”... A gente cantava, ele anotava.  Anotava os cantos, a “coreografia”, a gente se divertia. E a novidade: aprendíamos que tudo aquilo era cultura, das raízes de onde provinham, da mistura de etnias que ao se mesclarem resultavam em novas criações. Que tudo o que vinha da boca do povo tinha valor: a cantoria esganiçada nas rodas de ciranda, a toada da lavadeira à beira-rio, o aboio do peão, os jongos do tambor... até o versinho canhestro de escolher pegador no pique “o nani, o nani napoliano, o navio que passou pela Espanha”... tinha o pomposo nome de parlenda - e era folclore!

De repente a gente se descobria importante, donos de uma sabedoria insólita que jamais suspeitáramos. Mesmo as superstições, desdenhadas pelos adultos instruídos, eram anotadas. Logo descobrimos que havia uma fonte inesgotável de informações em casa: a cozinheira, a arrumadeira, o homem que capinava, o sapateiro ali perto que falava das estrelas e narrava histórias das constelações. Contei ao professor, ele pediu que anotasse. Fui ao sapateiro toda prosa, de caderno na mão. Tudo era folcloricamente válido! Até as receitas de cozinha - a torta capixaba da semana-santa, o beiju de tapioca, o muxá, o curau... ora vejam! Que coisa mais abrangente o tal folclore!

O melhor de tudo foi quando ele inventou de sairmos em excursão, perguntando, anotando, recolhendo dados. Éramos pesquisadoras!

“Ô raiva, ô fúria, Ô desesperação!... cantava meu tio em tonitroante voz. Logo descobri - era folclore; parte da Lapinha de Vila Velha da qual participara quando menino. Tudo que pensávamos ser coisa de criança, ou de gente da roça, merecia ser visto com interesse e seriedade.

Quem foi afinal esse tal professor? Ora, quem mais? Nosso querido Dr. Guilherme Santos Neves, que agora, após tantos anos de ausência entre nós, ressurge na palavra escrita com toda sua força e grandeza, na fantástica “Coletânea de Estudos e Registros do Folclore Capixaba”, fruto de mais de quarenta anos de pesquisas, e reorganizada com amor por seus filhos.

Mergulhei fascinada nesse manancial. Nele me revi menina, cirandei, travei língua, tagarelei parlendas, fui ver o pé do diabo, joguei amarelinha, cabra-cega, barra-manteiga, queimada. Gente! é imperdível! É o mesmo que reencontrar de repente, e com saudade, uma amizade de infância:

“Ó bela Lilía, como tens passado? Há quanto tempo eu não te vejo, onde você tem andado?”

UNI DUNI TÊ SALAMÊ MINGÜÊ...

“Os olhos de Marianita, são pretos que nem carvão...”

Valia de tudo - tocado, cantado, dançado, assobiado, recitado. Ele pegava o filão popular, ampliava, desdobrava, dava-lhe foros culturais - étnicos, lingüísticos. O que para nós eram simples folguedos, de repente, viravam assunto sério a serpesquisado, fonte de ricas informações. A par desta sensacional descoberta, aprendemos que um professor podia nos abrir janelas por onde circulavam aragens de imprevisível frescor.

Estudávamos no Colégio do Carmo - respeitável educandário, dirigido por freiras Vicentinas - as Irmãs de Caridade. Professores tradicionalistas integravam o quadro docente. Quando nos tornamos alunas de Professor Guilherme Santos Neves, logo nos cativou seu jeito afável, sem arrogâncias professorais. Bem humorado, aberto ao diálogo, não lhe faltava certa dose de ironia; essa  sorte de ironia brincalhona, carinhosa, camarada. Com muita graça nos chamava “as manducas”. Sempre próximo de seus alunos, era capaz até de driblar um pouco a disciplina vagamente monacal.

Nas aulas de português, até então sob a batuta de Irmã Rosa, as análises léxicas e sintáticas, o imperativo dos verbos irregulares, a ortografia, o porquê de usar este e não aquele termo na oração podiam tornar-se um pesadelo. Mas a gente aprendeu. Quem foi aluna de Irmã Rosa sabe ao menos expressar-se com correção. E sabíamos apreciar sua determinação em colocar em nossas cabecinhas tantas regras.  

O método do Prof. Guilherme, menos gramático: estimulava a leitura como o ideal para introjetar o aprendizado, melhorar a redação, adquirir estilo. 

Logo descobrimos sua paixão pelo folclore (impossível, para mim, dissociar um do outro); inventava encontros e excursões para pesquisá-lo. Vibrava com uma versão diferente, um achado novo, a frase que faltava. E nós com ele! Adorávamos quando transferia a aula para a sala do piano onde cada uma contribuía com seu quinhão de trovas, parlendas, cirandas, dramatizações, crenças, benzeduras numa miscelânea em que se embaralhavam o real e o imaginário. Tudo o que até então fora apenas brincadeira e a repetição automatizada de uma oralidade sempre mutante, ganhava vibração, existência independente, palpitação de vida. Quem sabia um pouco de música colocava as notas na pauta; outras escreviam as letras, as diferentes versões, citando as fontes e o local de origem. Debruçava-se sobre toda colaboração com curiosidade e interesse, e isso nos tornava muito importantes. 

Certa vez levou-nos em excursão à Pedra do Diabo, na Estrada do Contorno que, por si, já era uma atração ao enlaçar a ilha num abraço verde, cheio de surpresas, seguindo as curvas do abraço do mar. O ônibus lotado de colegiais eufóricas saiu cedinho, rumo ao local de uma lenda que corria de boca em boca pelo povinho de lá.

Com professor Guilherme dirigindo as pesquisas, fomos conferir a lenda, anotá-la, desenhar os arredores, fazer perguntas e ouvir, curiosas, as respostas. Ainda existia o antigo casarão da fazenda, de um branco sujo, cheio de janelas e, ao lado, a laje de uma enorme e rasa pedreira como um gordo lagarto a espreguiçar-se ao sol. Nela viam-se, nitidamente, gravados em baixo relevo, as marcas do chicote e do pézinho de Sto.Antonio, e as do pezão do coisa-ruim. O santinho, segundo a lenda, enfrentara e salvara o fazendeiro do seu pacto com o chifrudo, feito num momento de desespero.

Copiada a lenda, medimos pegadas, tiramos fotos e nos ajeitamos para lanchar. Como adoro o campo, escapuli a zanzar por ali e achei um cavalo pastando, sem sela, nem bridão. Num pulo o montei. Mas de lado, como uma dama, já que estava vestida com a saia do colégio e surgi no meio da turma trotando meu pangaré. Que alvoroço!

Professor Guilherme tirou-me alguns retratos. Dias depois, louca para ver as fotografias, ao encontrá-lo nos corredores do colégio perguntei:

- E aí, professor, já revelou as fotos?

E ele, naquele jeitão zombeteiro... 

- Sim; o cavalo ficou lindo!

 

Autora: Marilena Soneghet

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