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Fumaça nos meus olhos - Por Marzia Figueira

Festa das Debutantes no Clube Vitória, 1965 - Fonte: Memória Capixaba

A jovem de longo vestido branco, em renda e tule, sorriso nervoso no canto dos lábios, desliza pelo salão, ao som de Smoke gets in your eyes. Correm os anos dourados, suave é a noite, o salão é do Clube Vitória e a debutante sou eu...

Na parede da memória cantada por Belchior — e por Elis — essa lembrança é o quadro que dói mais. E minha dor é perceber que, apesar de tudo que vivemos, já não somos os mesmos, nem vivemos como nossos pais. É, mudei a letra, sim. Quem me dera que ainda fôssemos os mesmos e vivêssemos como os nossos pais! Porque naquele tempo a gente era de fato feliz — e não sabia. Nunca desconfiou. Por questão de nada e a propósito de tudo, curtíamos uma fossa de todo tamanho, sofríamos melodramas diante de um negro telefone se, ele, mudo permanecia... E chorávamos rios de lágrimas se alguém, muito especial, não aparecia... Era Vitória, era o clube, era o baile de debutantes, era o carnaval. Com os blocos, Os Inocentes — eram os maiorais —, o Segura o Leme, o Marujos por Acaso, rivais. O Clube Vitória era o ponto de encontro mais tradicional e elegante da sociedade capixaba. Ali se reuniam, para as festas de gala, as moçoilas casadouras, os rapazes de boa família, os bons partidos, os apaixonados assumidos, os que namoravam escondido. E os pais. E as mães. A vigiar a prole e a cuidar das boas maneiras e dos bons costumes, e a se cumprimentar cordialmente, nas ocasiões solenes como o réveillon. Que ali rompia, à meia-noite de 31 de dezembro, ao toque da orquestra, ao apagar das luzes, saudando o ano novo com assovios, reco-recos e uma grande, genuína, alegria.

O clube se debruçava sobre o Parque Moscoso, de suas sacadas se avistavam as árvores, e não havia grades. O espaço era livre e as pessoas também. Vivia-se a verdadeira liberdade. De ir e vir, vagarosamente, passeando entre as alamedas, sem pressa e sem cuidado, sem medo de pivete ou de assalto, sem receio do guarda — ou de ter que chamar o ladrão...

O Parque era grandioso, belo. Local nobre, cercado de casas por todos os lados, cortado por lagos. À direita o começo da ladeira Santa Clara, que levava à Cidade Alta. À esquerda, se tomava o rumo da rua Caramuru, se passava sob o viaduto, se podia subir para a Favela de Ouro, onde residiam famílias capixabas quatrocentonas.

O Parque Moscoso era o centro, de onde se seguia por vários caminhos e, da mesma forma, todos eles conduziam à sua calma e tranquilidade. Por perto ficava o primeiro Colégio Salesiano, assim como o Americano. E até nós, vindas do Carmo, costumávamos usar o Parque Moscoso como cenário, sempre renovado, nunca repetitivo, de fotografias para nosso álbum de recordações...

O bonde passava ao redor, moroso, talvez para não perturbar o silêncio que no Parque se desfrutava. À sombra do qual se formavam pares, se namorava nos bancos — em sossego e paz. O ambiente era propício, além de convidativo e acolhedor. Por isso mesmo, as famílias também se reuniam por ali, não apenas as crianças e os namorados, os poetas e... os fotógrafos. Sim, porque como todo parque dos anos 50 o Moscoso também tinha seu lambe-lambe, de saudosa presença nos retratos amarelecidos pelo tempo...

Depois, a cidade foi se modificando, o Clube Vitória trocou de lugar, perdeu o encanto — e os sócios. O Parque Moscoso ficou perigoso, foi cercado, trancado, patrulhado. A entrada deixou de ser franca — e risonha. Agora se paga ingresso, se impõem limites, se ditam regras, e proibições. Não tem mais bonde passando por lá, em direção à Praça do Quartel. Aliás, não tem mais praça e nem Quartel. O Salesiano se mudou, foi para o Forte São João. Prédios se ergueram em volta, sufocando o verde, roubando o ar puro, emparedando o Parque em nome da ordem e do progresso.

E Vitória esquece. Volúvel, tem novos amores, se embeleza no doce balanço a caminho do norte, preferindo a brisa que vem do mar. Segue pela avenida onde os carros desfilam lado a lado com os navios e se extasia diante de sua baía. Deixa para trás o centro, o velho clube, o antigo Parque, o passado. Moderna, vive o presente. Interesseira, tem os olhos no futuro. O coração do Parque Moscoso bate mais devagar. Mas a cidade não se importa, nem pensa em voltar pra lá.

 

Fonte: Escritos de Vitória nº 6 - Parque Moscoso, PMV e Secretaria Municipal de Cultura, Esporte e Turismo, 1994
Autora do texto: Marzia Figueira, nascida em Vitória (ES), formada em História (UFES), jornalista de A Gazeta, cronista e membro da Academia Espírito-Santense Feminina de Letras
Compilação: Walter de Aguiar Filho, outubro/2019

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