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Ilha ilha e fidalgas cinco pontes – Por Alessandro Darós

Escritos de Vitória, 27 - Pontes, 2010

e principia a ilha, em toda sua fidalga forma, de seus abismos e precipícios, na cabeça de suas cinco pontes em meio ao braço de mar; de início, vinte braços foram cruzados, todos exibindo muitas e imponentes abotoaduras metálicas; d'outro bordo, entre o continente e o meão de pélago (pura nostalgia), uma ressequida e solitária ponte, se arremete entre secos e molhados, entre canoas, remos, mastros e velas, entre peixes, feirantes e palmitos pascais, entre hodiernas pedras de êxtase fugaz; de passagem, noutra face, uma pequena pinguela ganhou corpo em pranchões de madeiro mais forte, substituído depois por concreto armado e uma vez mais por quatro grandes agulhas envoltas em muitas e grossas linhas, cosendo a margem onde pousa a andorinha e as terras de nobre casa serrana, extensão quintal do alvo mestre, recortadas por um sombrio canal de escravos, uma cicatriz aberta no entorno de alagados e mangues; atravessa-se ali, de uma realidade a outra num instantâneo de tempo, o mesmo que escorre, entre as margens e além delas, em meio à multidão pastosa e modorrenta da cidade que, se antes fluía pé-ante-pé, marca agora, em pneus, o calado de negros rios urbanos — os caminhos da ilha; unindo retalhos, ao longo da calha aquosa, criou-se arremate de ciência inexata,apreendida entre um rochoso coeur sagrado e um novo-já-velho arrabalde litorâneo; grampearam assim o rio que, segundo uma incerta etimologia tupi, mudava de lugar, despejando pescadores na enseada de camburi; e progredindo o progresso em marolas juvenis, tateando a costa de pedras písceas, jaz o presépio, lambido não mais em recortada face, mas apenas nas amuradas portuárias — a encorcovada e sutil ilha, habitada de uma plebe abotoada e embotada de ares provincianos; e de um lado a lado outro, rodoviando no entorno, arqueando o horizonte numa visada, produz-se pontifício arc'outro secundário; e brota na mnemônica externidade da lâmina d'água algum negro calhau em meio ao deflúvio santo, perfazendo capitéis por fundação; e há monólitos arcaicos e selvagens, pichados por tribos oitentistas — marcas rupestres cortando, milenares, a face santa de Maria; incerta vez, fez-se sacrifício humano ali; três embusteiros alvejados na oclusão das pedras, ante o olhar indistinto da sociedade e de suas câmeras escuras; hecatombe realizada por antigos sacerdotes trajando um escuro azul, em busca de alcançar a justa medida de sangue que cabe ao deus, estado das coisas; e diziam os oficiantes do ritual que o deus falara-lhes aos ouvidos — trabalha e confia — e não olvidaram de suas intenções (era a força da terra ditando a lei); e em mais um cataclismo quotidiano, versículo qualquer de um capítulo já lido, as lousas ruborizaram o mágico aniquilamento, a pedra-irmã sombreando tudo e ocultando dos olhos mais atentos, no ocaso do dia, as mazelas de um coletivo de "degredados filhos de Eva", irmãos de Caim; as personagens do presépio ressentiram a historíola, fragmento já esquecido, desde muito, pelos gentios da ilha exógena; os seixos revelando, em seu conjunto, apenas a abertura de um inferno habitual de décadas e a história repousando sobre um rio d'almas aflitas e perdidas; não havia ainda o sexto arco-íris de concreto sustentado por colunas de um panteão de imagens ancestres, ligando de leste-a-leste a ilha à ilharga continental — moreno morro altivo que protege a chegada ao grande canal —, assistindo ao escoamento do ódio destilado naquele evento, calado e desembocado debaixo da ainda imaginária terceira via — uma falsa impressão de liberdade; e ainda assim, os homens continuam sua andança em dia santo, pedindo a benção da existência; e as mulheres e os cavaleiros os seguem de perto, ou de longe; e os barcos, com seus baixos calados e suas bandeirolas coloridas, continuam, desde os quinhentos, fazendo suas procissões de fé numa província cuja vitoriosa biografia a batizou, ainda que dissimulada, chacina.

 

Fonte: Escritos de Vitória, 27 - Pontes, 2010
Autor: Alessandro Darós - Nascido em Resplendor-MG no ano de 1972 e radicado na Grande Vitória desde muito cedo. Mestre em Letras e Licenciado em Filosofia, publiquei SQIZO ou as patas do velho sátiro, em 2006, e participei da coletânea Instantâneo publicada em 2005, ambos pela SECULT-ES.
Compilação: Walter de Aguiar Filho, maio/2020

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