Leitura e Ideologia - Por Francisco Aurélio Ribeiro
“Para a formação plena do indivíduo e do cidadão, é imprescindível a aprendizagem da leitura.”
O homem é linguagem e o mundo, um livro. Retomando as premissas de Roland Barthes e Stéphane Mallarmé, gostaria de tecer algumas considerações para refletirmos juntos sobre o tema proposto: "Leitura e ideologia".
Em primeiro lugar, recorro a Roland Barthes, quando afirma que "a linguagem não pode ser considerada como um simples instrumento, utilitário ou decorativo, do pensamento. O homem não preexiste à linguagem, nem filogeneticamente nem autogeneticamente. Jamais atingimos um estado que o homem estivesse separado da linguagem, que elaboraria então para exprimir o que nele se passasse: é a linguagem que ensina a definição do homem, não o contrário".
(In: O rumor da língua, SP; Brasiliense, 1988, p. 31-2.)
Ao nascer, o indivíduo recebe, também, como herança, uma língua de seus pais, sistema de códigos que o identifica dentro de uma sociedade.
Segundo Vilem Flusser, em Língua e realidade, a língua é o
"instrumento mais perfeito que herdamos de nossos pais e em cujo aperfeiçoamento colaboraram incontáveis gerações desde a origem da humanidade, ou talvez, até além dessa origem. Ela encerra em si toda a sabedoria da raça humana. Ela nos liga aos nossos próximos e, através das idades, aos nossos antepassados. Ela é, a um tempo, a mais antiga e a mais recente obra de arte, obra de arte majestosamente bela, porém sempre imperfeita. E cada um de nós pode trabalhar essa obra contribuindo, modestamente, para aperfeiçoar-lhe a beleza. No íntimo sentimos que somos possuídos por ela, que não somos nós que a formulamos, mas que é ela que nos formula. Somos como que pequenos portões, pelos quais ela passa para depois continuar em seu avanço rumo ao desconhecido."
Todavia, não é o fato de possuirmos uma língua e nascemos em uma sociedade que nos torna cidadãos.
É aí que entra o papel da escola ou da educação. A função da escola é, pelos menos, dupla: propiciar ao indivíduo caminhos para que aprenda, de forma consciente e consistente, os mecanismos de apropriação de conhecimento e, ao mesmo tempo, possibilitar que os indivíduos atuem criticamente em seu espaço social.
A escola, porém, não é a única responsável para propiciar conhecimentos ao indivíduo e torná-lo um ser participante na sociedade. Muitas vezes, ela é até incompetente para fazê-lo. Família, sociedade e escola são coparticipantes da formação (ou não) do indivíduo e do cidadão.
Para a formação plena do indivíduo e do cidadão, é imprescindível a aprendizagem da leitura. Leitura como processo de conhecimento, de descoberta, de criação, que, muitas vezes, não é aprendida na escola, porque nela o trabalho com a leitura remete, com frequência, ao uso do texto como pretexto para o estudo da gramática ou à concepção redutora de texto como uma somatória de palavras. Aprender a ler deve ter, pelo menos, duas maneiras fundamentais, confiando e desconfiando do texto. De preferência, ambas. Segundo Luiz Antônio Aguiar, o leitor deve sempre "indagar sempre quem está narrando, se o que diz é algo que parece fluir ou se utiliza as artimanhas do modo de dizer para comprometer a compreensão do leitor" ("Viver é ler o mundo", JB, 23/ 07/94).
A escola não é, por isso, diferente da sociedade em que se insere. Ela apenas reflete a ideologia da classe que representa e forma indivíduos da maneira como o sistema lhe determina. A leitura é a ponte que um processo educacional eficiente estabelece entre o indivíduo e a sociedade, proporcionando a este sua formação integral de indivíduo e cidadão. Todavia, já nos lembra Althusser, existem os aparelhos ideológicos de Estado, dentre os quais se inclui o escolar, através dos sistemas das diferentes escolas públicas e particulares e o cultural, com suas academias, publicações, desportos, etc. A escola não é, por isso, neutra nos conteúdos que transmite e na forma como o faz. A escola é hoje uma da principais responsáveis para transmitir a ideologia do sistema que representa. Os livros e o tipo de leitura requerida por ela são uma forma de transmitir a ideologia da classe dominante.
Marilena Chauí afirma que a ideologia é um fato social porque é produzida pelas relações sociais, possui razões muito determinadas para surgir e se conservar. De acordo com ela, "Além de procurar fixar seu modo de confiabilidade através de instituições determinadas, os homens produzem ideias ou representações pelas quais procuram explicar e compreender sua própria vida individual, social, suas relações com a natureza e o sobrenatural. Essas ideias ou representações, no entanto, tenderão a esconder dos homens o modo real como suas condições sociais foram produzidas e a origem das formas sociais de exploração econômica e de dominação política. Esse ocultamento da realidade social chama-se ideologia. Por seu intermédio, os homens legitimam as condições sociais de exploração e de dominação, fazendo com que pareçam verdadeiras e justas".
(In: O que é ideologia, 15 ed., S. Paulo: Brasíliense, 1984, p.21).
“A escola forma indivíduos da maneira como o sistema lhe determina.”
Efetuarei agora uma pequena análise de textos utilizados pela escola que podem revelar o modo como ela age em função da educação que pretende transmitir e como a linguagem reflete a ideologia carreada por ela.
Encontrei no Arquivo Público Estadual uma publicação de 1859, em que o autor J. M. P. de Vasconcelos escreve o seu "Cathecismo histórico e político, para uso das escolas de 1ªs letras da Província do Espírito Santo". Não por acaso, a obra é oferecida ao Exmo Sr. Dr. Pedro Leão Velloso, Presidente da Província. É, portanto, a autoridade máxima da província o principal destinatário da obra. A ele interessa, em primeiro lugar, o ensinamento que deverá ser transmitido aos alunos e incorporado por eles.
Feito de perguntas e respostas, para serem decoradas na íntegra e repetida pelos aprendizes, o Cathecismo de J.M.P. de Vasconcellos é um modelo de subserviência, moralismos, preconceitos e visões estereotipadas dos fatos históricos e sociais. À pergunta "O que é o Espírito Santo?", é dada a seguinte resposta: "Uma das vinte províncias, que fazem o brilhantismo da coroa do sábio Monarca, que nos governa" (p.03). Os jesuítas são definidos por ele como "Religiosos de uma comunidade, fundada por Santo Ignácio de Loyola, incansáveis no desempenho de seu ministério, que consistia em levantar templos, e conventos, e em catequizar os índios nas doutrinas puras e santas de nossa religião" (p.05).
A religião adotada no império, segundo ele, é a "católica, apostólica romana, a mais pura e santa de todas as religiões"(p.11). A última pergunta é: "Qual é o verdadeiro e o mais seguro modo de viver em sociedade?". E a resposta: "Respeitando a Deus, e aos maiores em idade, e autoridade, guardando os seus mandamentos, sendo amigo da verdade, do trabalho e da economia, e não fazendo aos outros o que não queremos que nos façam” (p. 13 e 14). Obediência total, este é o primeiro princípio incutido aos alunos pelas escolas provinciais.
No princípio do século XX, os primeiros livros infantis foram escritos por consagrados escritores brasileiros da época, como Olavo Bilac, Coelho Neto, Francisca Júlia, Júlia Lopes de Almeida, dentre outros, e eram instrumentos de divulgação das imagens de grandeza do país, procurando incutir, nos alunos, as ideias de culto cívico, patriotismo, nacionalidade, através da exaltação da natureza, da unidade e grandeza nacionais, através de símbolos, vultos e episódios da história do Brasil. Alma infantil, de Francisca Júlia e Júlio da Silva, publicado em 1912, é um claro exemplo disso. Apresenta poemas ("recitativos, monólogos, diálogos, comédias escolares, brincos infantis e Hymmos), para uso das escolas. Os quatro "Hymmos" são: ao estudo, à escola, ao trabalho, e à pátria. O hino à escola, por exemplo, mostra a escola afastada da cidade, "ocupada somente com o orgulho de levardes sabida a lição" (p.166). O final do hino é uma "pérola" de 'verdade':
"A ignorância que pede uma esmola / A riqueza lhe dá do saber; / Tem as portas abertas a escola: / Entre a escola quem quer aprender" (p.167). "Pobre ou rico, na mesma alegria / Reunidos aqui, dão-se as mãos / Enfim todos, em franca harmonia, / Em sincera igualdade de irmos" (p.168).
E o refrão, repetido após cada duas estrofes convida a todos para se dirigirem à escola, donde sairão com um facho de luz": "Vinde à escola, pois ela é uma escada / Que ao fastígio da glória conduz; / Se entrais nela com a ideia apagada / Saís dela com um facho de luz" (p.167).
Além de todos os problemas desses textos, mostram uma educação alienada, uma escola sem conflitos e distante da sociedade, há preconceitos raciais e socias terríveis como os mostrados, por exemplo, no poema "A menina feia” (p.41 e 42):
"Mamã, a menina Paula / arrasta a perna, coxeia; / Ela decerto é a mais feia / De todas que vão à aula. Tem fala tati-bi-tate, / Olhos tortos de caolha; / Tem o nariz, mamã olha; / Vermelho como um tomate. /Disse-me um dia Arabela, / Falando dela a respeito, / Que a Paula é assim desse jeito / porque era ébrio o pai dela. / Que o papá e mamã sua / descalços e braços dados, / andavam embriagados / cambaleando na rua. / Não há porém um instante / em que não a veja, aplicada, / sobre os livros debruçado; / É muito boa estudante. / Dentre as meninas instruídas, / mais adiantadas da classe / Não há uma que lhe passa: / Tem sempre as lições sabidas. / Por isso os pais, a chorar de ventura e de alegria, / juraram à Paula um dia / nunca mais se embriagar."
Júlia Lopes de Almeida (1862-1934), escritora famosa no início do século, começou sua carreira literária com Contos infantis, publicados em 1886 em parceria com Adelina Lopes Vieira. No entanto, foram as Histórias da nossa terra, publicadas em 1907, que a consagraram como escritora escolar preferida. A edição por mim consultada é a 18ª, de 1925. O primeiro texto "A nossa bandeira" é altamente laudatório, cerimonioso como convinha ao principal símbolo da república, a bandeira nacional:
"A nossa bandeira é como um pólio confraternizada sobre a cabeça de todos os brasileiros. Unamo-nos para honrá-la na sua grandeza e para que ela seja sempre para nós, além do símbolo da Pátria, o símbolo do Bem, da Razão, da Justiça. Só é inatingível o que é impecável; só é forte o que é puro" (p.8).
O mesmo conceito de "pureza", "inatingível", "imaculada", um nacionalismo exacerbado com cheiros de fascismo é o que podemos ler no segundo texto, "A nossa língua":
"entre todas as coisas que sabemos, a nossa língua é a que devemos saber melhor, porque ela é a melhor parte de nós mesmos, é a nossa tradição, o veículo de nosso pensamento, a nossa pátria e o melhor elemento de nossa raça e de nossa nacionalidade. Para nosso orgulho, basta-nos lembrar que nenhuma outra língua há de nobre estrutura. De sonoridade variadíssima, opulenta nos seus vocábulos, maleável como a cera ou dura como o diamante, a língua portuguesa é a mais bela expressão da inteligência humana. Defendei-a! Não deixeis que outras a invadam e a deturpem. Não deixeis que a viciem e lhe cosam remendos aos trajes magníficos. Ela não quer esmolas, não precisa de esmolas, é a mais rica e - tem orgulho de o ser. Defendei-a até o extremo, até a morte, como um filho defende a mulher de que nasceu. Defendei-a a todo o transe, apaixonadamente, custe o que custar" (p.12 e 13).
Ainda bem que Dª Júlia Lopes de Almeida foi contestada pouco depois por um grande escritor modernista, Oswald de Andrade (1890-1954), que assinava no manifesto "Pau Brasil", de 1924: "A língua sem arcaísmos. Sem erudição. Natural e neológica. A contribuição milionária de todos os erros''. Hoje, a língua portuguesa é uma das dez mais faladas no mundo, uma das cinco línguas oficiais da UNESCO e sua literatura uma das mais ricas da literatura ocidental, porque ela foi mais oswaldiana que seguidora dos conselhos de Dª Júlia. Sem precisar de ninguém se matar por ela.
No Espírito Santo, Elpídio Pimentel (1894-1971), membro fundador da Academia Espírito-Santense de Letras, professor de Português e Literatura, foi o grande mentor da educação literária de sua geração. Purista da linguagem e ideólogo do sistema, escreveu Quando o Penedo falava, em 1927, obra dialogada entre o sábio avô, que pleno de sabedoria e experiência acumulada, ouvidas de um gênio preso no Penedo, tudo ensina aos jovens discípulos, representados na figura de Glauro, seu neto. Dirigiu, em Vitória, o Diário da Manhã, órgão oficial do Estado, e a revista Vida Capixaba, a principal divulgadora dos escritos de Vitória. Em o Diário da Manhã, edição de 17/12/1937, encontrei o seguinte texto do professor Elpídio Pimentel, na seção "O que os pais devem ler"; "Tarzan, o invencível; livro de propaganda comunista". Comunicado do Serviço de Divulgação da Chefia de Polícia do Distrito Federal.
"Um dos veículos de infiltração do credo comunista, como já tivemos a oportunidade de salientar, é o livro.
Essa arma branca, que facilmente alcança o espírito, o cérebro e o coração da juventude, estava sendo manejada com perigosa habilidade pelos agentes do Komintern que, não satisfeitos com as suas tentativas dirigidas contra os estudantes universitários, criminosamente lançaram o veneno das suas exóticas ideologias no espírito indefeso dos alunos das escolas, dos estudantes ingênuos, que ainda não compreendem as palavras "política", "regime" ou "partidos", que ainda vivem no mundo maravilhoso de Júlio Verne, vibrando com as aventuras de Peter Pan, Robinson Crusoé e Tarzan, o homem das selvas.
A Polícia do Distrito Federal acaba de proceder a apreensão do livro Tarzan, o invencível, de Edgar Rice Burroughs, trad. de Paulo de Freitas, col. "Terra, Mar e Ar", da CEN, de SP. Essa notícia deverá impressionar a todos os pais brasileiros que, até hoje, quase inconscientemente, sorriam satisfeitos vendo seus filhos envolvidos e interessados nas aventuras de seus preferidos heróis. Olhavam para as capas dos livros, impressos em capas vistosas, viam o homem das florestas, os leões, as flechas, os caçadores de feras e não mais se preocupavam.
Mas, as autoridades brasileiras do Estado Novo, vigilantes na tutela espiritual das crianças, futuros homens do Brasil, vão mais longe, e percorrem, atentas, todas as páginas desses livros inocentes.
Tarzan, livro de propaganda comunista?
- Não, trata-se de coisa pior. Tarzan, o invencível é um livro de preparação às ideias comunistas. Tanto que, logo nas primeiras linhas da tradução brasileira, das aventuras de Tarzan, vemos a má fé do autor. Tarzan, figura lendária do homem primitivo, popularizada na tela cinematográfica pelo campeão olímpico da natação Jonnhy Weismuller, oferece aos envenenadores da mocidade uma oportunidade para agir."
Professores como o prof. Pimentel estiveram à frente da ideologia do sistema, utilizando livros e escola como instrumentos de controle e exclusão de consciência crítica. Bem intencionados, certamente, mas ideólogos do sistema capitalista com todas suas contradições.
A leitura só poderá propiciar a formação da cidadania quando for conquista de todos, quando reverter a exclusão, afirmar a autonomia, radicalizar a manifestação da humanidade. A leitura deve ser um exercício e canal de ligação entre o indivíduo e o mundo, prática de redefinições, geradora de uma visão particular e engajada da vida. Ler é enxergar o mundo, questioná-lo e tornar-se instrumento de mudanças.
A manifestação do livro como produto destinado a crianças e jovens, numa sociedade capitalista e competitiva como a nossa, deve ter seus limites. Os livros e autores que vejo na lista dos bestsellers, Paulo Coelho ou Sidney Sheldon, Olho mágico ou Wally, ainda nos dizem que temos muito o que fazer. Gostaria de que lá estivesse o Cena de rua, de Ângela Lago, por exemplo, que denuncia em cores vibrantes, agressivas e imagens expressionistas a miséria social das crianças de rua brasileiras. Uma literatura que dispensa a palavra, exceto no título grafitado em sangue, "Cena de rua". As cores e imagens são a linguagem utilizada por Ângela Lago, para denunciar as mazelas de uma sociedade e para nos alertar o quanto estamos distantes, ainda, da verdadeira cidadania. Compreender a questão da leitura numa sociedade como a nossa é focalizar o caráter específico das relações sociais, tendo em vista a relação entre sociedade e indivíduo, numa contextualização histórica, sob o ponto de vista da humanidade socializada, como nos alertava Marx.
Ser leitor no mundo atual é compreender a si mesmo e o seu papel no mundo, e tornar-se sujeito e agente da história, e não apenas ter a leitura como mais um instrumento de alienação e dominação. Para isso não haveria necessidade de nenhum programa nacional de leitura. A sociedade de consumo e os meios de comunicação de massa já fazem isso com eficácia.
Fonte: Revista IJSN Instituto Jones dos Santos Neves – Ano VIII - Nº1 – 1995
Autor: Francisco Aurélio Ribeiro
Escritor, doutor em literatura comparada, professor universitário e secretário de cultura da UFES.
Compilação: Walter de Aguiar Filho, março/2021
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