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Maria Tomba Homem - Por Mário Gurgel

Maria Tomba Homem - década de 50

Há uma página da literatura francesa, lida por nós num volume de antologia, em que o autor fala, maravilhado, sobre a vida e a história de sua pequena cidade do interior, e comenta numa descrição inesquecível toda a beleza e toda a emoção que o domina ao deter-se numa apreciação sobre o lugar. Para melhor impregnar a alma dos seus patrícios desse amor filial que deve caracterizar cada homem, coloca-se como filho pródigo de sua terra natal, observando-a na alegria de um regresso inesperado, e deixa que a cidade proclame por si mesma o seu encanto, no bulício do vento e na voz da população que se entrega ao labor.

Ao ler esse trecho, pensamos nas narrativas perdidas pelo mundo, onde os espíritos concentrados e fecundos achariam epopeias de grande valor cultural. Cada bairro, cada aldeia, por pequena que seja, encerra quase sempre uma lenda e um conto, dosados num relato sublime de amor ou salpicados de ódio, numa tragédia de pólvora, de desespero e de lágrimas. Os mais variados assuntos jazem por aí, ignorados, nadando à flor dos charcos — onde se afoga a pobreza —, ou emergindo da magnificência e do luxo — onde cintilam o dinheiro e a beleza da vida.

De vez em quando o pobre levanta os olhos marejados de pranto e se deslumbra ofuscado, para expor com minúcias o sonho encantado de seu coração. Falando de coisas que não teve, revela maravilhas que não conhece. E há também casos como o desse romancista, americano e rico, que despiu-se das galas do seu palácio e do riso alegre de algumas beldades, para viver alguns anos em contato direto com a miséria, a fim de apresentar ao mundo, com a marca chocante da realidade, o paralelo entre os dois extremos da fortuna. Atolado no lodo ou coberto de púrpura, há sempre na face de cada indivíduo o tilintar de um sorriso ou o eco surdo de um soluço. E foi por meio da gargalhada feminina que apreciamos um dia a mais entristecedora repercussão de um gemido. O peito de que brotou, num instante de embriaguês e delírio, não quis ou não pôde transformar em palavras a imensidade da desdita que se lia no seu olhar.

Havia apenas um nome; Maria. E, para tirar-lhe a vulgaridade, um aposto atrevido: "Tomba Homem".

Maria "tomba homem", como é conhecida nos meios alegres em que é vista, é digna de uma crônica, já que a nossa pobreza de recursos intelectuais não lhe pode dedicar um romance. "Preta", referência íntima que lhe dão as companheiras de infortúnio e de vício, é uma bela mulher de seus vinte e tantos anos. Representante fiel da raça negra, estaria hoje segregada nos Estados Unidos, no bairro do Harlem, onde vivem as pessoas de nossa cor e de nossa origem. Se vivesse na terra ressequida da África, de onde devem ter vindo os seus parentes mais distantes, poderia ser, sem nenhum favor, rainha de um povo ou sacerdotisa de uma tribo. Porém, teve da vida o pior dos destinos. Na América, fora o risco do linchamento que a democracia não enxerga, haveria a possibilidade de dar de ombros, vivendo no seu meio, e retribuir com desprezo a indiferença dos outros. Dos riscos que correria na África, sobrava-lhe a possibilidade de ser a mulher de um guerreiro e jantar num banquete a carcaça suarenta de um civilizado. No Brasil, ou melhor, aqui na nossa pacata Ilha do Príncipe, o muito que lhe deram foi um barraco de taipá, pendido de lado, onde vive em liberdade, como os animais e os insetos. Vemo-la passar todo dia, imperturbável no seu passo de "coquette" negra, inimitável na sua graça e no seu sorriso.

Maria "tomba homem" é famosa pela força do seu pulso, que tem derrubado como um cepo todos os homens que se têm atravessado no seu caminho para dominá-la. É o terror das mulheres de sua zona. Respeitada e temida, manobra o seu braço com a velocidade de um raio e com o peso de um bólido. Sai da refrega num "muchocho" dolente, consertando as pulseiras ou verificando os anéis onde as pedras faíscam. Às vezes embriaga-se, e então, num esforço de amazona gigante, grita como possessa e contorce com arte os lábios que o exagero da pintura desfiguraram.

A história de Maria é a mesma de todas aquelas que parasitam à margem dos caminhos, corroídas de mazelas, afogadas no álcool, vencidas pela ignorância e pelo atraso.

Certa vez um crime terrível sacudiu a cidade, levando intranquilidade à Ilha. Um modesto e pacato homem aparecera morto à beira do mato, rodeado de sangue em grandes coágulos que se petrificaram na poeira. Informada por alguém, a Polícia soube que esse homem fora, em algum tempo, companheiro da destemida mulher. Como sempre acontece nesses casos, pessoas ouviram conversas misteriosas, vultos suspeitos e referências comprometedoras. Maria "tomba homem" foi presa por suspeição de assassinato do operário ou, pelo menos, por autoria intelectual do crime. Recolhida à cadeia, negou corajosamente, segundo suas próprias palavras. Mas, nas suas negativas, nunca escondeu que a vítima "merecia, pelo menos em parte", o trágico fim que lhe deram. Dizia isso sem a menor sombra de respeito pelo desaparecido. Um dia o verdadeiro criminoso foi denunciado e Maria voltou à circulação, reassumindo a liderança de seu grupo.

Quando a vemos na rua, levantada na sua faceirice, carregando sobre as pernas roliças aquele corpo desenvolto e faceiro, paramos um pouco para olhá-la e para sorrir dos que riem de sua condição humilde de mulher do mundo.

Quando a trava piedosa da noite cobre o cenário vergonhoso dos charcos e esconde do mundo a face desfeita dos barracos, a figura singular dessa estranha mulher sacode um momento no ar as mãos grandes e negras, encardidas de lama mas rutilantes de joias baratas. Na sua miséria moral, Maria "tomba homem" reflete a quase totalidade dos homens de sua época. Com uma diferença apenas: aos que passam, ela grita quem é, para que não a tomem como respeitável e para que possa mais vantajosamente explorar o nefando comércio de sua própria carne. Grita com força para que vejam na sua voz a força de seu golpe. Alguns homens que a procuram nas caladas da noite, em automóveis silenciosos e confortáveis, trocam de nome e descem de condição social para poderem fugir aos comentários do povo, na narrativa das surras que tomaram ...

*Dedicatória do livro: "Dedico estas crônicas a Hely, querida companheira de sempre.
A Antônio, Vicente, Graça Rita e Mário Filho.
À imensa Multidão de descalços que sempre compareceram às filas de votação para sufragar o meu nome." 

 

Fonte: Crônicas de Vitória - 1991
Autor: Mário Gurgel
Compilação: Walter de Aguiar Filho, fevereiro/2019

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