Morro do Moreno: Desde 1535
Site: Divulgando desde 2000 a Cultura e História Capixaba

Memórias de um colégio da Praia do Canto: Sacré-Coeur de Marie

Meninas do Sacré-Coeur de Marie - Colégio Sagrado Coração de Maria

Reviver um tempo longínquo nos transporta à imagem de uma instituição escolar que sobressai, altaneira, com reflexo nas brumas do mar, e, aos poucos, se transforma em ecos da memória que ressoam no ar pinceladas de saudade. Aos poucos, as pinceladas de saudade se reverberam e a luz crepuscular se manifesta em recordações dos dias felizes, passados no convívio do Colégio Sacré-Coeur de Marie. Eis que ele surge, majestoso, em nossa imagem!

Os anos ficaram no passado, mas, ainda hoje, o chamado “Sagrado Coração de Maria” é um marco importante, uma instituição de grande valor educacional. Eu me sinto sensibilizada e agradecida em poder registrar, neste livro, a memória de um espaço educativo, no qual vivemos um tempo único de muitas emoções. Foram momentos ricos, e abrindo o baú de recordações, descrevemos, aqui, algumas passagens, com o prazer de mostrar como era o Sacré-Coeur de Marie do ontem.

O Colégio, com seu rigor e exigência, formava a base complementar da educação no seio das famílias capixabas. Eu não irei tão longe, mas é preciso lembrar que contribuímos, em muito, para a construção desse educandário, seja organizando festas, vendendo rifas e até solicitando doações de pessoas e empresários capixabas. Eu tive a felicidade de colaborar com a equipe de organização da festa do cinquentenário do Colégio que foi comemorado em alto estilo com direito a missa, barraquinhas, baile e peça teatral. No encontro, entre abraços, a felicidade de todos, e muita recordação. Sentimos a ausência dos que partiram como passageiros de um novo tempo para alçarem voos céleres rumo aos céus, e encontrarem-se com Deus. Entramos em procissão, a partir da gruta, com Nossa Senhora no andor, velas acesas, e lágrimas escorrendo nos olhares de cada rosto. O tempo se revestia em sonhos! Sonhos acalentados e partilhados com as amigas de uma época de anos inesquecíveis. Revivendo esse tempo, contido em nossa visão, lembranças acesas do passado que vamos retratando nesta crônica.

O sistema de internato tinha peculiaridades únicas, como o tilintar de uma campainha soando nos ouvidos das internas, avisando que teriam início as orações matinais, obrigações do ofício. Horários eram rigorosamente cumpridos e certos hábitos invioláveis, como o banho, tomado somente de camisolão; já na hora da troca de roupas, uma aluna tinha que ficar de costas para a outra, visto que, de frente, a exposição dos corpos dava ensejo a pensamentos pecaminosos, o que era proibido!

Não podemos deixar de relembrar os anos dourados daquela época, em festas do SCM como os bailes no Iate Clube, os lugares de flertes, namoricos e de “arrasta-pés”, e isso era o máximo! As freiras, alunos, ex-alunos, pais, professores atuais e antigos se misturaram aos sons e ritmos dos “iê, iê, iê; chá, chá, chá; twist e rock” revivendo as décadas de 50, 60, um tempo emocionante.

Na chegada, internas e semi-internas eram obrigadas a mostrar as cadernetas e quem as esquecesse ficava sem aulas naquele dia. As filas eram formadas no galpão, e cada turma tinha a sua própria fila, alinhadas com respeito e seriedade, bem caladinhas, pois Mère Lacreche, - de caderninho em punho - marcava cruzes ao lado de cada nome de quem abrisse a boca. E, nessas marcações, as freiras eram impiedosas, pois perdia-se pontos na nota de disciplina. O meu nome levava tantas cruzes que mais parecia um cemitério.

Quanto aos uniformes, um para cada estação do ano e mais o de educação física, requeria um tipo diferente de vestimenta, com detalhes para ocasiões especiais. O de verão, o de inverno, o de gala e o de educação física e cada qual tinha que ser usado na época que determinava o calendário, ou seja, mesmo no calor, o de inverno era obrigatório. O uniforme de gala era pomposo, de tropical inglês azul-marinho, gravata, solidéu e blusa de seda. Outro detalhe importante, tinha que medir quatro dedos abaixo do joelho. Usar batom no colégio? Moça de família? Nem pensar! O emocionante era se maquiar às escondidas na saída, onde os meninos estavam na ladeira à nossa espera.

Nas aulas de canto orfeônico, hinos eram constantemente treinados, notadamente o do colégio, bem difícil de entoar devido aos registros agudos, o que favorecia a desafinação da turma, muitas vezes proposital, uma oportunidade de “implicar” com o maestro Waldir Mattos. Vale destacar que ele era uma exceção como professor - tanto ele quanto o capelão - pois homens não transitavam pelas dependências do colégio a não ser com autorização especial. Ainda em relação a hinos, devido à tradição francesa da instituição, às quartas-feiras eram entoados os hinos do Brasil e o da França, e as orações, muitas vezes, eram também rezadas em francês. Muitas vezes trocávamos as letras, e fazíamos gozação com as freiras - melodia do repertório popular como “ninguém me ama, ninguém me quer, eu vou ser freira do Sacrè-Coeur”, bem como outras brincadeiras, sem maldade, apenas engraçadas. Já as aulas de bordado, era quando, cada aluna com a sua cestinha, aprendiam os pontos de marca, de cruz, paris, corrente e ainda faziam toalhinhas de vagonite, que eram expostas ao final do ano.

Dias tensos eram os da leitura das notas realizados em presenças da Mère Providencial e da Notre Mère. A Mère Regina, diretora, dirigia a sessão solene, de forma tranquila e segura. O momento do friozinho na barriga era na hora da entrega das notas, com certificado de quadro de honra, medalhas e prêmios. Os resultados eram lidos em voz alta, as alunas subiam ao palco, o público aplaudia e as famílias ficavam orgulhosas de suas filhas. As estrelas azuis, verdes e vermelhas representavam primeiro, segundo e terceiro lugares, respectivamente, e eram colocadas ao peito de quem as merecia.

O lema do SCM, além do Tudo a Jesus por Maria, era estudar de verdade para alcançar os louros no final do ano. O que agregava às notas, além dos valores das provas, eram a assiduidade, a disciplina, as contribuições às missões na África e levar mantimentos aos mais necessitados em bairros pobres e morros da cidade de Vitória. O desafio era conquistar honra ao mérito com seriedade, responsabilidade, estudo e dedicação.

O ritual das reverências era incrível! Consistia em cumprimentos obrigatórios quando encontrávamos com uma freira: costas eretas, mãos cruzadas e inflexão pelo lado esquerdo, o lado do coração. Eram obrigatórios nos corredores e quando as freiras entravam nas salas de aulas: Bonjour, ou Bonsoir, ma Mère. Importante destacar as aulas de civilidade, o aprendizado dos bons costumes, noções comportamentais e as etiquetas sociais, pois educação e bons modos eram metas imprescindíveis.

Vez por outra havia os retiros espirituais, geralmente em locais diferentes: muitas orações e estudos da vida dos santos, silêncio e leituras; após, escrevíamos o que havia sido absorvido para as notas da matéria de Religião. Nessas ocasiões, surgiam brincadeiras e até músicas que eu tocava ao piano e a turma as entoava em coro. “Doi a gente com mère Angela/ Re tiro é uma babação/ Minha alma já está pura/ Falta-nos é distração...”

Ainda sobre religiosidade, o rosário era rezado todos os dias, antes do recreio, com todos os seus “mistérios”, o que considerávamos uma espécie de tortura! Não faltavam embolações, pois quanto mais rápido respondíamos as Ave-Marias, mais cedo descíamos para o pátio. O mais curioso, para nós, era descobrir o verdadeiro nome das freiras, e, para isso, fazíamos sindicâncias para desvendar os mistérios que as envolviam, mas de algumas freiras descobrimos: Mère Agnes era Alice, Mère Santa Face era Nice, Mère São Tomás era Beatriz... Outra proeza era entrar na clausura, lugar essencialmente interditado, mas que enchia as nossas cabeças de fantasias...E ainda tentávamos descobrir - qual seria a cor do cabelo das religiosas, já que os véus os escondiam.

Vivemos uma fase de muitas ações, momentos de descontrações no Praia Tênis Clube, onde participávamos dos jogos que marcaram gerações e gerações em importantes convívios. Nas aulas do dia a dia, assuntos não faltavam sobre os jogos, quer tenham sido na praia, ao ar livre, ou no clube. Fizemos parte da diretoria do Grêmio Litero Esportivo Padre Gaillac e ainda me lembro do discurso de posse de nossa chapa: “A nossa diretoria, sabemos bem, que será constituída de meninas boas, inteligentes e amigas, nós, alunas do SCM, que vivemos num ambiente santo, orientadas por essas abnegadas religiosas, temos consciência das responsabilidades que nos pesam”. Relembrar o tempo passado, vivido no seio de nossas famílias, num bairro humano e agradável como a Praia do Canto é reviver histórias de vida com emoção. Nós éramos em muitas irmãs no Colégio, ao todo onze filhos e nossos genitores privilegiavam a boa educação. No dia da festa dos pais ou das mães percorríamos a entrada da capela em grande escala, motivo de orgulho para eles.

Silencia o tempo e a imagem do crepúsculo dilui-se aos poucos em marcas de que traduzem uma grande saudade...O nosso recolhimento transcende a atmosfera do adeus, e o nosso sentimento perpetua a memória, e que expressamos em poucas palavras: OBRIGADA, COLÉGIO SACRÉ COEUR DE MARIE!

 

Fonte: Revista da Academia Espírito-santense de Letras / Comemorativo ao 98° Aniversário da AEL
Autor: Maria das Graças Silva Neves
Cadeira n°23 da Academia Espírito-santense de Letras
Compilação: Walter de Aguiar Filho, março/2022

 

Literatura e Crônicas

Bilro - Tipos populares de Vitória

Bilro - Tipos populares de Vitória

O vi no Mercado da Capixaba, para onde levava o gelo destinado às bancas de peixe

Pesquisa

Facebook

Leia Mais

Ano Novo - Ano Velho - Por Nelson Abel de Almeida

O ano que passou, o ano que está chegando ao seu fim já não desperta mais interesse; ele é água passada e água passada não toca moinho, lá diz o ditado

Ver Artigo
Ano Novo - Por Eugênio Sette

Papai Noel só me trouxe avisos bancários anunciando próximos vencimentos e o meu Dever está maior do que o meu Haver

Ver Artigo
Cronistas - Os 10 mais antigos de ES

4) Areobaldo Lelis Horta. Médico, jornalista e historiador. Escreveu: “Vitória de meu tempo” (Crônicas históricas). 1951

Ver Artigo
Cariocas X Capixabas - Por Sérgio Figueira Sarkis

Estava programado um jogo de futebol, no campo do Fluminense, entre as seleções dos Cariocas e a dos Capixabas

Ver Artigo
Vitória Cidade Presépio – Por Ester Abreu

Logo, nele pode existir povo, cidade e tudo o que haja mister para a realização do sonho do artista

Ver Artigo