Náufragos Jesuítas, Convento de São Francisco e os Beneditinos
Aos 28 de abril de 1573, os P.P. Tolosa, Luiz da Grã, Antônio da Rocha, Vicente Rodrigues, Fernão Luiz, Irmãos Bento de Lima e João de Souza, viajando para Porto Seguro, naufragaram na foz do Rio Doce. Perderam tudo mas salvaram as vidas. A pé caminharam para a Vila Velha de Vitória. Serafim Leite narra que "foram agasalhados com amor por toda a população. Depois de feita uma romaria a Nossa Senhora da Penha, ermida que se vê ao longe, no mar, e é refrigério e devoção de mareantes, resolveram os Padres aproveitar essa demora forçada, de cinco meses, para construir nova igreja".
"— Tolosa escreve... começamos logo uma igreja capaz, de mais de cem palmos de comprido, fora a capela, e quarenta e cinco de largura; as paredes de taipa, por não haver aqui pedreiro: os alicerces todavia são de pedra e cal, que fizeram os Padres de casa como souberam".
"O capitão Belchior de Azeredo com toda a mais gente principal ajudaram com suas próprias mãos a trazer umas pedras grandes para os alicerces. Todos mandam os seus escravos para a obra. Outros mandam as coisas necessárias para o nosso mantimento e das gentes que trabalham. Uma pessoa nos tem dado três bois. E como andarem quase cinqüenta pessoas nas obras, com a gente de casa, todas se sustentam de esmolas, que é para espantar em Capitania tão pequena, onde há mais gente pobre do que rica".
Onze anos depois, Anchieta diz que a igreja é nova, mui capaz para a terra e bem armada.
Fernão Cardim, na mesma data, escreve que a casa do Espírito Santo era bem acomodada com sete cubículos. "Na cerca havia laranjeiras, limeiras doces, cidreiras, acajus e outras frutas da ferra, com todo o gênero de hortaliças de Portugal. O terreno da casa descia até o porto, onde havia cais de embarque e desembarque privativo".
Os religiosos, no Brasil seiscentista, são os únicos que constroem para a posteridade. Justifica-se, porque eles vinham para a catequese, que parecia indefinida, e vinham dar assistência aos colonizadores para que não caíssem na desordem espiritual.
Os colonos, com poucas exceções, eram abastardados de costumes, condenados a galé por crimes muitas vezes bárbaros, analfabetos e de más estirpes. Precisavam quase tanto ou mais da assistência religiosa do que os pobres nativos, na sua barbárie inconsciente. Os padres construíram para abrigar os propagadores do Evangelho, cuja missão não finda. Os colonos eram aventureiros à procura de fortuna fácil. Sonho que na realidade se dissiparia aos poucos, na proporção das dificuldades a vencer.
O MISSIONÁRIO
Que ânimo perseverante e ardente inflamava os soldados de Loiola! Ainda hoje o percurso de "Regência Augusta" (1) até Vitória é uma caminhada aventurosa; imagine-se há quatrocentos anos atrás: floresta virgem, lagoas perigosas e cento e trinta quilômetros de marcha entre a praia e o matão insondável. Diz bem o aforismo que a fé remove montanhas. O drama da catequese é ainda um livro, cujas páginas não foram coloridas com as tintas próprias da vivência naqueles dias mesclados de sofrimento e de esperança, de martírio e de glória.
O missionário encarnou, por vezes, o evangelizador de Cristo, o guerreiro de César, o homem de Estado e pai Providência. O emigrado, na pátria nascente, descristianizava-se para satisfazer seus apetites mórbidos. A moral era um preconceito de conveniências para muitos. As paixões adormecidas acordavam violentas e brutais na luta do dia a dia. Cada Capitania era uma nação a se construir, uma raça a se forjar, com elementos os mais heterogêneos. A cupidez do branco igualava a ferocidade do nativo. (2) A distância da metrópole era uma maldição bíblica.
O País não era um jardim de flores e frutos, de contrastes de luz e de sombra, onde uma população de seres sem malícia, como pareceu ao bucólico Vaz Caminha, desfrutava as delícias do paraíso terrestre. Eram matas emaranhadas a abraçar serros indefinidos, vales divagantes a vestirem, de vegetação cerrada, rios caudalosos, que se confundiam com tremendais intransponíveis. Tribos bravias, desconfiadas e traiçoeiras, de tocaia nas trilhas abertas pelas feras indomáveis. Era o desespero dos colonos frustrados nos seus anseios e revoltados contra as leis da natureza. Vencer esses obstáculos foi a epopéia nobilitante dos missionários.
OS FRANCISCANOS E O CONVENTO
Frei Pedro Palácios não veio ao Espírito Santo enviado por seus superiores, ao que se sabe. Os franciscanos têm sua origem, em Vitória, na estima e simpatia que o ermitão da Penha granjeou entre os colonos e principalmente de Vasco Coutinho Filho e sua mulher.
Estando, em 1585, o Custódio Melchior de Santa Catarina, em Salvador, (3) recebeu do donatário do Espírito Santo, súplica para edificar um convento em Vitória. Regressando a Olinda, o Custódio recebeu novos irmãos de hábito e pôde aceitar o pedido de Vasco Coutinho, despachando, em 1589 os frades Antônio dos Mártires e Antônio das Chagas, que aportaram a Vitória em novembro do mesmo ano. Receberam-nos festivamente D. Luisa Grimaldi, agora viúva, os irmãos Azeredo e o povo. Doaram-lhes o sítio, que cobre o contraforte da Fonte Grande, descendo para os mangues orientais, hoje Parque Moscoso. (4) Na encosta construíram uma residência provisória com capela, onde se instalaram, deixando a hospedagem do capitão de ordenanças, Miguel de Azeredo, que lhes disputara a preferência. O local, onde se edificou a casa primitiva, tomou o nome de Tapera e o caminho, que dali galgava o morro, recebeu a denominação de rua da Tapera, hoje restabelecida, logradouro que une a Rua Thiers Veloso à Rua D. Fernando. Na capela dessa temporária moradia dos primeiros franciscanos originou-se a Irmandade de S. Benedito, célebre na história religiosa e folclórica da ilha.
Para relatarem e receberem instruções do Custódio, cinco meses depois, embarcaram os dois frades para Olinda. Vencidas as dificuldades inerentes ao cometimento, em fins de 1590 ou no começo de 1591, Frei Antônio dos Mártires e seu companheiro regressaram a Vitória, autorizados pela Ordem, a construir o Convento de S. Francisco. (5)
Com ajuda do povo e dos "principais" lançaram, nesse mesmo ano, a pedra fundamental da fábrica franciscano, que se imortalizaria na paisagem urbana da vila. Em 5 de dezembro escrevia-se, em cartório, a carta de doação dos terrenos, onde glebas houve de propriedade de Manuel Pereira, Juliana Raiz e Antônio Gonçalves. (6)
A pobreza da vila não impediu que, em poucos meses, as paredes do edifício estivessem elevadas. Mas o luto empanaria o entusiasmo e a satisfação dos habitantes. Frei Antônio dos Mártires, vencido pelo cansaço, entregava sua nobre alma ao Criador. A capelinha provisória da Tapera foi seu primeiro túmulo. Anos depois lhe trasladam os ossos para a igreja de São Francisco, quando o convento praticamente estava concluído. Finou-se em plena mocidade, na era de 1592. (7) Sucedeu-lhe, como superior, Frei João S. Miguel. Retardam-se as obras. Vitória, além de sua população ser pequena, era pobre. Poucas famílias podiam contribuir. A maior coleta era de serviço. Dois anos decorridos, Frei Antônio das Chagas, o companheiro de Frei dos Mártires, ascendia ao superiorato da casa, e em 1596 se concluía o Convento. A igreja continuou paulatinamente e em 2 de agosto de 1601, com festa votiva celebrava-se a primeira missa no altar de São Francisco. (8) No convento, modesto mas confortável, na sua fábrica de estilo ingênuo, fizeram seu noviciado inúmeros jovens, inclusive vindos de outras capitanias, que depois se derramaram a iluminar a inteligência das gerações brasílicas. O convento estimulou a devoção e serviu de sede a Irmandades e Confrades, famosas em assistência religiosa e social ao povo. Eclipsou-se pela segunda metade do século passado, por falta de Religiosos. A incúria do Governo e a pobreza do Bispado deixaram que o vetusto convento franciscano desaparecesse, quase, pela ação corrosiva do tempo.
NOTAS
(1) Foz do Rio Doce. Já definido.
(2) C. Malheiro Dias.
(3) Rower. ob. cit.
(4) Daemon — Mário Freire.
(5) Rower — idem, idem.
(6) Damon. Rower. Cezar Marques.
(7) Rower. Idem, idem.
(8) Gomes Neto. "As Maravilhas da Penha".
Fonte: Biografia de uma ilha, 1965
Autor: Luiz Serafim Derenzi
Compilação: Walter de Aguiar Filho, abril/2017
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