O Milagre da Seca - Poema de Orminda Escobar Gomes
Poema
I
FLAGELO
Horrível panorama. A seca devastava
O solo abençoado desta linda terra...
Do plaino e da colina, ao chapadão e à serra
O fulgurante sol, crestando, o castigava.
Sem ideal. Não mais o camponês folgava
Nas noites de luar. Pastagens, longas, erra
O gado sequioso... e a soalheira aterra
Matando ou definhando a erva que abrolhava.
À gleba desnudada, em fogo, o alvião
Do lavrador não cava; é duro; é vil torrão
Que o sopro das rajadas desgastando vai
O arbusto e o cipoal do agente aéreo à ação —
Se enredam, forte, ao cedro-orgulho do sertão —
Por fim, geme o colosso se estorcendo... cai.
II
DEVASTAÇÃO
Na vastidão do campo, é tudo transformado.
Secou de todo a fonte; a planta feneceu;
O fado, o marulhoso arroio já perdeu
A força que movia a bolandeira. O eirado
Vazio está. O ativo, o sertanejo ousado
Não mais procura agir; apenas recolheu
O que salvou a custo, o que não pereceu
No triste transcorrer do tempo mau... coitado!
O rio tão soberbo, o rio majestoso
Que, na campina em flor, corria caudaloso
Tem trechos que o pedestre, aflito, a vau transpõe...
O sabiá não canta... e o arvoredo umbroso
Alegre, onde habitava o sonhador ditoso
Raízes ressequidas, tristemente, expõe.
III
O INCÊNDIO
Radiação ou chama casual?! Ardia...
No bosque-onde soluça um rio em sua origem
Intenso, enorme incêndio. Assim já se dirigem
Para o alto, as labaredas agitadas. Via
O fraco, o sem valor, que inútil lhe seria
Esforços empregar para dominá-lo. Exigem
Os firmes, impassíveis que jamais se afligem
Extenso, largo aceiro e muita calma. Urgia!
Convulso, um bambual, constante detonava...
Faíscas arrojando, em derredor. Lutava
O destemido, o herói, para as flamas extinguir.
Rompendo a fumarada, o urutu silvava!
E a onça, tão feroz, qual corça se esgueirava...
Sutil... horríveis fauces, a fugir... fugir...
IV
CALAMIDADE
Os coruscantes raios do astro-rei batiam
Nas penedias. Esta, à sua ação gretava;
E aquela, a dilatar-se ao máximo, estourava...
Apavorando os tibios que, a gritar, corriam...
Só a palmeira esbelta e o cacto, se sentiam
Felizes como a urze. O ambiente estava
Abrasador... cruel; e, quase, asfixiava
Aos que do sol, a pino, as flamas não temiam.
A seca que assolava a gleba, primorosa;
E a fome que abatia o povo, rigorosa...
Comovem... e os poderes se dispõem a agir.
Ao pobre, o filantropo abriu mão dadivosa...
À Virgem Mãe da Penha a gente piedosa
Fiel, promessas fez para graças lhe pedir.
V
ENTUSIASMO
Manhã soberba e linda e clara e radiosa
Bem cedo, pelas ruas, vozeria enorme
Da gente que se esgota e pouco ou nada dorme
Insuportável, quente, a noite; mas ditosa
A nova que circula. Comissão que goza
De simpatia e estima agindo está, conforme
Solene aclamação, para que de pronto forme
O povo e acompanhe a Virgem Gloriosa.
De Jaburuna, perto, embarcações... eis quando
Suave, mansa brisa, as velas enfunando
Traz doce refrigério aos lassos tripulantes...
Em frente ao Forte, em tom festivo, tocam sinos...
Foguetes, pelo espaço, atroam... Cantam hinos
Milhares de fieis, alegres exultantes!
VI
EM TERRA
Chegados ao Cais Grande — Praça Oito, agora...
Compacta multidão se comprimia, à espera
Da excelsa Padroeira; — a fidalguia era
Presente, como o clero e as irmandades... Chora
De comoção, o velho; o adulto, revigora
A sua crença; a massa, em suma, considera
O que se está passando... tudo o que fizera
O sábio franciscano e as lendas rememora.
Com o ritual da igreja, é recebida a Santa,
Moveu-se a procissão... o povo todo canta
E vai para São Francisco. Ecoam os louvores
Da mole humana; e, ali... bandeiras desfraldadas,
Folhagens pelo chão, damascos nas sacadas,
Em honra à Mãe do Céu que cura as nossas dores.
VII
EM SÃO FRANCISCO
Vieram receber a Virgem no Cruzeiro,
À base da ladeira que ao Convento vai;
Os frades. Quanto ao sol aparentando, sai
Às vezes da penumbra; de outras, todo, inteiro
Parece mergulhar na treva, o derradeiro
Adeus do dia é longe... Ainda não se esvai
Inteiramente, a luz que impressiona e atrai
Por seu fulgor, seu brilho. Engalanado o outeiro;
Risonho, original. Dali, se descortina
A ilha... O Penedo, junto ao mar, culmina...
No primoroso quadro que a retina encerra.
Penetra, já, no templo — a Mãe de Deus. As flores
Em profusão, adornam seu altar... Louvores
Da multidão resoam da planície à serra.
VIII
AMEAÇA
Escurecendo está. As nuvens pardacentas
E negras vão cerrando, ao longe, os horizontes...
Prometem converter, os fios d’água, em fontes;
A vasa dos paúes, em ondas lamacentas;
O arroio, empobrecido — de águas turvas, lentas —
Em rio que abeirando, enfurecido, os montes,
Arrastaria tudo — as plantas, casas, pontes
Com a força irresistível das fatais tormentas.
A massa se comprime; é grande o seu ardor!
Não pensa no perigo... expande o seu fervor
Rezando o Ofício, o Terço ou a Salve Rainha!
Sibila o vento, geme o arvoredo... horror!...
O vendaval, porém... se afasta... Com dulçor
O povo, ajoelhado, entoa a Ladainha!...
IX
AGUACEIROS
Já lusco-fusco, então. O vento, menos forte
Agora, grossas gotas, vem trazendo a espaços...
Eleva-se o calor... exaurem os mormaços...
Às criaturas dando uma impressão de morte.
De novo sopram ventos, rijamente... e o norte
Traz aguaceiros longos... formidáveis... Braços
Se estendem para a Santa agradecendo os traços
De seu poder perante o Salvador. A sorte
Do que se humilha, é sempre... sempre compensada
Com o benefício; assim, a gleba torturada...
— Cruel verão que à sede e à fome vai ceifando
O homem e a alimária!...— A gleba... está banhada
Pela enxurrada hostil, soberba, arrebatada
Que para o pego e o mar se vai precipitando!
X
ENCHENTE
A chuva recrudesce e assombra... derruindo...
Em jorro, lava a encosta pedregosa e nua;
Da gruta um jato sai; na queda, se acentua,
A sua grande força e seu poder. Fulgindo
Um iris vê-se, além... Em borbotões, surgindo
Da eventual cascata — a água, após, flutua
Pulverizada... Então, a névoa se insinua,
Gentil e finamente, os alcantis vestindo,
Na terra ressequida, as águas vão correndo...
A derribar o arbusto e a ribanceira-enchendo
Os arraiais de horror... Para o rio, furiosas
Desde a nascente à foz — cascalhos arrastando
Surpreendem, nos covis, as feras que bramando
Confusas, loucas, fogem — torvo olhar, medrosas...
XI
A HERA
Se faz novena. A chuva, intensamente, desce...
Cessando de repente... e... dentro em breve instante
Retorna com vigor ou fraca... ou inconstante...
Assim, dessedentada vendo a gleba, esquece
Os dias maus, aquele que vivia em prece...
Será de novo alegre e bela e exuberante!
Exulta a criação! Além, altissonante
O zirro malha e canta o sabiá! Já cresce
E brota a trepadeira... A' triste parecia
Não mais poder sugar a seiva que a nutria
Pois enlaçada estava ao pequiá, coitado!
Mas, chove... O semimorto recupera alento,
E a hera, prelibando o fim de seu tormento,
Mais fortemente abraça o amigo abençoado.
XII
DEDICAÇÃO
O céu toldado está. Não mais os aguaceiros
Há calmaria em torno. A brisa nem sequer
Desfolha, lentamente, um triste mal-me-quer ...
Vapor. Condensações. De longe, vêm romeiros
A vadear, sem medo, os tredos atoleiros...
Pisando em espinhais; fazendo o que é mister
Para conseguir rezar aos pés da Virgem. Quer
A peregrinação provar que verdadeiros
São — sua crença e amor. Espessa a cerração.
A serra não azula, além... Quanto à visão,
O raio se restringe... Então, de instante a instante,
As caravanas chegam, lá do extremo norte;
Assim do centro e sul. Que gente boa e forte!
Fulgura a luz da fé, sincera, em seu semblante.
XIII
BONANÇA
Desfaz-se a cerração em chuvas copiosas;
Gerais se vão tornar. As terras desoladas
— Charnecas, sapezais, piçarras — requeimadas
Por soalheiras grandes, rudes, perigosas...
E expostas aos tufões... ficaram jubilosas
Pois sendo de umidade, a fundo, penetradas
Vão recobrar alento, e vão ser bafejadas
Por brandas, por subtis aragens bonançosas.
Colinas, várzeas, prados, campos e devesas
Irão reverdecer! Medonhas correntezas,
O solo revolvendo e o húmus arrastando...
Vão tudo transformar. A Santa intercedeu
Perante o Bom Jesus que graças concedeu
Ao povo prosternado — Sua Mãe honrando!
XIV
REVIVESCENCIA
Da aurora, o rosicler; da estrela d'alva, o brilho;
Do belo e fulvo sol, o espectro resplendente;
Do infinito espaço, o azul puro e nitente;
Da nuvem que além corre adelgaçada, o trilho;
Da brisa, o ciciar, da rosa e do junquilho,
A cor; do meteoro, a luz opalescente...
E tudo esplendoroso! E a ação revivescente
Se produziu... oh! Mãe! porque foste a Teu Filho!
O passaredo vai, nas frondes, gorjeando
E vão, os colibris, na veiga esvoaçando...
Enquanto a vida é doce e a alegria intensa!
As flores, na campina, os ares perfumando;
E a rica natureza as galas pompeando...
Confirmam de Maria o amor e a força imensa!
XV
HOMENAGEM
Repleta a linda vila. O povo do sertão
Da praia, da montanha e do vargedo vinha
À Virgem Mãe trazer ofertas. Ela tinha
De bênçãos cumulado nossa terra, então.
Em tudo impera a crença; em tudo, a gratidão!
Aplausos, ovações, louvores!... Se adivinha
Que n'alma, a criatura, confiança aninha
Ao suplicar com fé, pureza e contrição.
Alegremente, enchendo os ares bimbalhavam
Os sinos; foguetões e salvas estouravam...
Ao ressoar na igreja, com efusão, o “Glória”!
Voltava já para Penha — a Santa — meio às rosas,
Orquídeas, madressilvas e cecéns mimosas
Do fértil, portentoso, solo teu — Vitória!
XVI
RETORNO
Tocante cerimônia. As criancinhas riam;
Tomados de emoção, os jovens suspiravam;
E os velhos, a tremer, chorando soluçavam...
Com o olhar seguindo o andor. Os freis que conduziam
A Virgem Mãe de Deus, curvados, já haviam
Chegado no Cruzeiro. Aí, os aguardavam
Fidalgos; bem assim, autoridades. Davam
Sinais de devoção, fervente, todos. Iam
Cantando a Ladainha; e, assim, a gente em massa
Oh! que união de crença! Oh! que sublime graça
Tu concedeste, Mãe?! Que estranha vibração
Sentia a alma cristã, ao cultuar a pura
Imagem da mais nobre e excelsa criatura
Formada pelo Eterno Autor da Criação!
XVII
VOGANDO
Foi conduzido o andor para o barco principal.
Por uma infinidade de galeras, lanchas,
Sumacas, escaleres, bergantins e pranchas
O mar coalhado está. A face de cristal
Sem jaça — então, reflete a bela, a natural
Riqueza do cenário... e o céu, azul sem manchas
De nuvens ouro ou rosa... Oh! brisa tu desmanchas
A vaga em branca espuma, à margem do areal
Em honra à Mãe do Céu! Bendita e carinhosa
Agitas da palmeira o leque e a suspirosa
Ramagem densa e linda do arvoredo em flor!
Oh! sabiá ditoso que na mata voas...
Abençoado sejas! pois, cantando loas,
À virgem agradeces a clemência, o amor!
XVIII
GLORIFICAÇÃO
Demonstrações de fé, saudade, extremo amor,
Respeito, piedade, eterna gratidão...
Fazia o povo à Santa — enquanto a procissão
Singrava o mar sereno. Assim, todo o fervor.
Das almas simples, puras, se expandia... A dor
De ver partir Aquela em cuja proteção
Se confiou, tenaz, de todo coração...
Se transformava em prece, em singular louvor!
Entrando na enseada, os sinos repicaram
No perfumado ambiente, as salvas espocaram
Quando ascendia, à Penha, a Virgem... Ante o andor
Clamava o povo, em pranto: “Ao Filho Teu Jesus!
Implora, nos conceda — a chuva... o sol... a luz!
E... “Salva, nossa terra! Oh! Deus Consolador!...”
Fonte: Lendas e Milagres no Estado do Espírito Santo (Poesias 1551-1950) – Prêmio Cidade da Vitória, 1951
Autora: Orminda Escobar Gomes
Compilação: Walter de Aguiar Filho, março/2021
Saltando, do reinol, encontra a porta aberta... E o frei vagando, só, na praia — já deserta — Distante vê, na gruta, o abrigo que buscava
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Ver ArtigoDo livro O RELICÁRIO DE UM POVO – Santuário de Nossa Senhora da Penha (1958, 2ª Edição), da autora Maria Stella de Novaes
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