O Tirador de Areia - Por Mário Gurgel
O cortejo seguiu a pé do Morro do Martelo até o Cemitério de Santo Antônio dos Pobres. Era um enterro simples. Doqueiros, cavouqueiros, estivadores, meninos e rapazes, senhoras e moças pobres, pequenos funcionários, gente que não expressava mais que a sua condição humilde e eloquente de origem tipicamente popular.
Não estavam presentes para prestar uma homenagem, para dar um testemunho, para expressar qualquer sentimento, nenhuma das grandes figuras que fizeram a romaria cívica dos dias das dúvidas. Nenhum dos homens que graças à sua ajuda e com o entusiasmo do seu trabalho disputaram e obtiveram uma cadeira ou uma posição na vida representativa ou administrativa de sua terra. A gente que desfilava agora, através da rua pobre e esquecida, descendo os barracos, pulando os buracos, atravessando as valas, representava apenas os sofredores de todos os bairros pobres como os do Morro do Martelo, do Bonfim, da Penha, da Favela de Colatina, onde Fenelon levantou a sua trincheira de luta e de solidariedade. Favela como a da Rua Mineira, de Barra de São Francisco, como aquela Rua da Prefeitura que vemos do ônibus, no belo município de Rio Novo do Sul.
O cortejo segue e todos estamos tristes e calados como corpos sem vida, como vidas sem motivação. No grupo que caminha à frente, corpos curvados para o meio da multidão, no andar oscilado, compassado e ritmado, existia a força de um misticismo maior que a melancolia. Nesse grupo vai um homem conduzido pelos outros, na sua viagem eterna e derradeira.
Era um lutador, chegado há mais de trinta anos da Alagoas distante e conflagrada, das margens caudalosas do São Francisco, do sertão estorricado e infindável, das caatingas mergulhadas no terror e afundadas na desolação. Emídio Mello viveu no Espírito Santo fazendo um pequeno comércio, depois apanhando areia nas águas escuras dos rios próximos, como no Rio Marinho, no Santa Maria, no Jucu. Partia de casa ao raiar da madrugada e, pela noite adentro, muitas vezes, estava mergulhado nas águas da correnteza, arrancando do leito desconhecido e perigoso o produto que exporia mais tarde pelos lados do Cais Schimidt, no Mercado da Vila Rubim, para as obras e serviços da construção civil. Como tantos trabalhadores autônomos, Emídio Mello era um exemplo de arrojo e capacidade de realizar. Pobre, possuindo uma casa humilde como único bem que a vida lhe permitira adquirir, morreu depois de uma existência vivida na honradez e na alegria. Servia aos que precisavam da sua ajuda, tinha sempre em pauta problemas alheios que procurava equacionar e resolver, abandonava os seus interesses e os dos seus, para dedicar-se com uma impressionante atenção aos males que afligiam os seus semelhantes e os seus irmãos. Este era efetivamente um homem que viera para servir, nos moldes das palavras do Apóstolo. Era também, na interpretação de um lema muito usado e pouco realizado, um homem que dava de si antes de pensar em si.
Agora está morto e lembrado entre lágrimas de saudades pelos amigos sem número que fez em vida. Pelos que sentem a sua ausência e a falta dos seus cuidados. Nortista decidido e corajoso, não temeu a morte. Enfrentou-a e venceu-a uma vez. No segundo round, a Inimiga o baqueou com força. Mas Emídio Mello está vivo naqueles degraus sem fim da escadaria do Aterro, nas crianças internadas, nas viúvas assistidas, nos enfermos recolhidos. Nos órfãos protegidos pelos seus pedidos, pela sua intercessão, pelas suas caminhadas, pelos dias a fora, nos gabinetes e nos consultórios, nas Assembleias e nas portas dos palácios. Despretencioso e simples, sem qualquer ambição de poder ou de mando, construiu um monumento de bondade e de calor humano. Este, o pobre tirador de areia que a pobreza perdeu ...
(O Diário de 08/12/64)
Fonte: Crônicas de Vitória - 1991
Autor: Mário Gurgel
Compilação: Walter de Aguiar Filho, fevereiro/2019
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