Que fim levaram as tanajuras? - Por Francisco Aurélio Ribeiro
Há muito tempo não vejo mais as tanajuras, pelo menos, em bando, como as víamos, na infância. Dia desses, feriado, caminhando pela praia, mar ressacado, observei algumas tanajuras mortas, poucas, mas o suficiente para me trazerem à lembrança a infância vivida no Caparaó, quando saímos correndo atrás do bando de tanajuras, cantando: “Cai, cai, tanajura, na panela de gordura”. E, interessante, elas caíam, nem que fosse pelo cansaço ou pelo peso da "poupança." Juntávamos as que caíam, colocávamos em sacolas e as levávamos para as mães dos colegas que faziam "farofa de tanajura", uma receita simples, nutritiva e, segundo eles, saborosa. Eu nunca tive coragem de experimentar, culpa de minha mãe, enjoada que nem só ela com hábitos alimentares, e que dizia ser aquilo uma "porcaria, comida de índio", não fosse ela uma autêntica neta de Puri. E era mesmo, mas não só de índio, de toda a população, como confirma o relato do célebre sábio naturalista francês, Auguste de Saint-Hilaire, que por aqui passou, em 1818: "Toda a população do Espírito Santo não se aflige, entretanto, com a abundância das grandes formigas. Logo que, munidas de asas, vêm a aparecer, os negros e as crianças as apanham e comem; os moradores de Campos, que vivem em estado de contínua rivalidade com os da Vila da Vitória, chamam-nos de papa-tanajuras, comedores de formigas. Não acontece apenas na Província do Espírito Santo alimentarem-se de grandes formigas aladas; asseguraram-me que elas são vendidas no mercado de São Paulo, sem o abdome e fritas; comi eu mesmo um prato delas, preparadas por uma paulista, e não achei desagradável o seu gosto."(Viagem ao Espírito Santo e Rio Doce.1974,p.13).
Portanto, minha gente, se o sábio naturalista experimentou e apreciou, quem somos nós para falar de antigos ou atuais hábitos alimentares? Eu, por exemplo, menino das montanhas, até hoje não me habituei ao hábito do litoral de comer caranguejo, jogar farinha naquela água preta e mandar pra dentro enquanto chupa, com prazer e gosto, as pernas cabeludas do habitante do manguejal; em compensação, me pelo por um chouriço de sangue de porco, ou de miúdo, como os feitos pelos alemães de Domingos Marfins, o que repugna a muita gente. Afinal, tudo pode ser iguaria, se fizer parte da cultura alimentar de um povo: buchada de bode, testículo de boi, línguas e vísceras de animais, rabos, pés e orelhas de porco, patês de ganso cevado à força. Nada disso é pior do que farofa de tanajura e pode ser até ser servido no jantar do Palácio Anchieta ou na Festa da Finlândia. E só convidar um chef de cuisine, importado ou nativo, tupiniquim ou do tacacá, rei das panelas ou das frigideiras, que tornará qualquer produto uma ambrosia, prato dos deuses ou dos endinheirados, até as tanajuras.
Perguntei a minha amiga Neusa, que mora no Caparaó, se ainda existem tanajuras lá, ela me disse que sim. Portanto, deve haver, também, crianças que repitam o mesmo ritual que praticávamos, na infância, a não ser que já não existam crianças como as de antigamente e elas estejam todas grudadas nas tevês, sem ver a tanajura passar. Que pena! Perderão, também, a oportunidade de espetar uma delas no palitinho, a mais bem fornida de nádegas, e chegar com a bichinha zoando (de aflição), no colégio, brincando de aviãozinho. Maldade? Pode ser! Mas não me lembro de ninguém que matasse pais, batessem em professores, atirassem em colegas ou morressem de fome para desfilar suas caveiras aos urubus das passarelas.
Fonte: Adeus, amigo e outras crônicas – Editora Formar, 2012 - Serra/ES
Autor: Francisco Aurélio Ribeiro
Compilação: Walter de Aguiar Filho, fevereiro/2020
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