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Regência - Por Rubem Braga (1949)

Farol de Regência - atualmente há um outro farol em Regência que foi construído em 1994. A parte superior do farol da foto, ficou na vila como museu

Regência, na beira sul da foz do Rio Doce...Daqui para cima todo o vale se agita numa febre de progresso; motores novos pulsam no rio, a estrovenga limpa o mato, o machado abate os troncos, o cacau se alastra, as serrarias guincham, os colonos requerem terras, a ferrovia se renova, os minérios são arrancados da terra, os americanos fazem contratos, os baianos chegam ávidos de dinheiro.

Mas Regência dormita. Ali mesmo do outro lado, a menos de uma légua rio acima, um lugar que só tem o nome de Povoação está crescendo; já se mudou para lá o juiz distrital, já lá se foi o registro civil; lá se fundam fazendas, lá se abrem casas, lá se ganha dinheiro depressa. Em regência as casas são todas relativamente novas e feias; a igrejinha é de um medíocre estilo comercial. Isso me espanta; não ficou nada da antiga Barra do Rio Doce, da nobre Regência Augusta, pátria do Caboclo Bernardo?

Pergunto onde morava o Caboclo Bernardo. Dizem-me que era perto da igreja, ali...onde está aquela comprida canoa de peroba. A velha Regência o rio comeu, lambendo devagar uns 250 metros de barranco onde estava a povoação toda... “Aqui onde nós estamos – explica-me um caboclo velho – aqui a onça vinha pegar o bode.”

No extremo ocidental da aldeia há cinco coqueiros; um deles já pende sobre as águas, que lhe lambem a terra sob as raízes. O baixo Rio Doce fica de ano para ano mais largo e mais raso.

Estico-me debaixo de uma árvore, no capim, à beira-rio. Esse matinho ralo aqui perto me é familiar: vassoura, guaxima, assa-peixe. E a casa de pensão tem um jardim desordenado e ingênuo, de acácias, amor-de-homem, cravo-de-defunto e cravo-de-cachorro. E no meio de tudo um pé de aipim, com seu caule de um violeta escuro, os ramos um pouco mais claros, as folhas de um verde que vai do rosa até o arroxeado, com uma delicadeza de veias tênues que fazem esse arbusto delicado e flexível lembrar certas morenas finas em que o azul das veias sob a pele tem um leve tom violáceo.

Ando pela beira do rio e recolho essa semente não sei de que, a que chamávamos de olho-de-boi; me lembro de que às vezes a gente esfregava numa pedra e quando estava bem quente a encostava na perna do outro menino.

Um caboclinho está pescando e lhe peço a iba, que aqui se chama, bem mais explicado, pindaíba. Sinto um peixe que não belisca, mas puxa mansamente o anzol, e sussurro para o menino um nome de que não me lembrava mais desde a infância: “Acho que é moréia...” Um puxão mais longo, e a moréia vem no anzol. Essa pequena vitória me enche de uma secreta delícia; então esses inumeráveis anos de bater à máquina, de fazer tanto gesto mecânico no exílio urbano não me tiraram essa sensibilidade de menino que ainda reconhec3 a moréia e sabe o instante exato de puxá-la. Aqui o lambari de São Paulo e Minas se chama, como no Itapemirim, piaba; aqui reencontro meus peixes, minhas palavras no seu sentido antigo, uma vida de beira-rio que afinal nem de todo se perdeu.

Quando anoitece ainda ando pela margem. Vejo então uma caboclinha de seis ou sete anos que parece muito ocupada. Está sozinha naquela boca de noite; apanha água no rio com uma latinha, atravessa um pequeno trecho de areia, senta-se no capim e lava os pés. Depois volta a pisar na areia, sujando outra vez os pés, apanha água, volta para o capim. Faz isso muito séria, tirando um gozo infinito desse brinquedo ingênuo e pateta. Fico a olha-lha em silêncio, e ela não me vê, toda entregue ao seu trabalho singular. Seu vulto escurinho de índia, com os cabelos muito pretos e lisos caindo pelas costas, se move na penumbra da beira-rio.

Aceito um ingá. Sento-me ao seu lado no capim, diante do grande rio que desce com um vago murmúrio; ficamos em silêncio, na noitinha olhando o rio, cuspindo caroço preto do ingá...  

 

Fevereiro, 1949

 

Fonte: Crônicas do Espírito Santo, 1984
Autor: Rubem Braga
Compilação: Walter de Aguiar Filho, janeiro/2012
Obs.: Este livro foi doado à Casa da Memória de Vila Velha em abril de 1985 por Jonas Reis



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