Rio Doce - Por Monsenhor Eurípedes Pedrinha (1891)
Além, nas margens do Anfitrite undoso
Doces águas de um rio serpenteiam
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Ambos iguais na força destemidos
Disputam entre si a prepotência
Padre Antunes de Siqueira.
Nasce o Rio Doce na província de Minas Gerais, nas abas meridionais da serra de Ouro Preto, donde, correndo muitas léguas por essa província em leito pedregoso e vinte e cinco pela do Espírito Santo, vem meter-se no mar Oceano, sete léguas abaixo de Linhares, de que escreverei em artigo especial, como apontei.
Rega em Minas Gerais a cidade de Mariana, com o nome de Ribeirão do Carmo, corre para o oriente, atravessa sertões de indígenas, forma a cachoeira das Escadinhas (série de infinitos degraus, cavados na Serra do Souza e entra no Espírito Santo, rico já de muitos e grandes rios, que, enriquecendo-o com o cabedal das águas, nele perderam os nomes).
Vem seu nome de alguns navegantes portugueses, que, encontrando no mar água doce defronte deste rio, a 6 milhas da barra, deram-lhe o de Doce, que mais diz braveza, que doçura.
Consideremo-lo agora banhando a província do Espírito Santo, onde teve o nome e se ostenta tão nobremente majestoso.
Vejamo-lo correr pomposo e soberbo, com a velocidade de 8 milhas — nas enchentes — sobre um amplíssimo leito, às vezes de 500, 600 e 700 metros de largura, levando ante si — no marulhoso agitar de suas águas — madeiros pesadíssimos, e mostrando-se invencível conquistador das alterosas margens, que sempre lhe fogem despojadas de domínio. Como insaciável, vai recebendo sempre cabedais imensos de seus muitos e poderosos tributários, que cortejam, até se afogar enfim no oceano, ufano de tanto poderio e tanta glória!
Como brilha nas alvas areias de que são semeadas suas praias! Que brincos delicados, sorrindo no revolver das águas!
Que de extensas ilhas, que de ilhota frescas, tão verdes todas, tão floridas, tão deleitosas, nadando risonhas nas espumas! Que variada e rica vegetação, que pomba deslumbrante em suas ribas! Aqui se inclina a jaboticabeira com seus regalados frutos; ali se ergue a oiticica; ali a taicica, cuja resina cura a tosse crônica dos selvagens; ali a barriguda, de que fabricam os botocudos os metó, botoques, para as orelhas e beiço inferior; ali a garaúna promete ao artífice duração secular; ali o eminente e aromático cedro; ali o vinhático de veios amarelos e escuros; ali abundantemente o precioso jacarandá, o histórico pau-brasil, aformoseado, enriquecendo, enobrecendo o opulentíssimo solo, que lhes dá vida e majestade.
Que munificente é também aqui o reino zoológico!
Aqui passeiam o tigre veloz e a grave anta; acolá foge a tímida corça; além se oculta a corça, além se oculta a medrosa paca; lá salta o ardiloso macaco, lá trepa vagarosa a preguiça; por ali leva rápida carreira a ágil e mimosa cutia; por aqui se vem chegando o tamanduá-bandeira, ostentando sua cauda desfraldada e formosa: todos bebem aqui das doces águas e garbosos se miram em seu espelho.
Que lindas plumagens! Que mavioso concerto desses variados bandos de aves tão belas na pintura, tão doces no canto. Aqui passa o vagaroso e nobre pato silvestre; ali a receosa pomba; ali a formosa arara; acolá estão saltando por entre raminhos o azul saí, o interessante canário, o belissimamente matizado carajuá; lá graves piam o macuco, a jacutinga, o mutum, dali respondem o periquito, a maracanã, o papagaio; aqui arremeda o gaturamo, ali o encontro trina alegre; além saudoso sabiá solta gorjeios, que enternecem o vale e enternecem o monte.
E o rio, em sua rápida carreira, vai recriando quantidade de saborosos peixes, o mero, o robalo, a tainha, a curvina, e deixa brincar em seus remansos cardumes de inúmeras curimatãs.
Que perfumosa brisa se respira ali! Lindas parasitas, macios musgos, graciosos ramalhetes de flores, sobressaem por entre folhas verdes, penduram-se até a corrente e a furto beijam as ondas espumantes.
E a majestade do rio como se impõe fulgurante, com essas magnificências e riquezas?!... Todos os sentidos acham encantos que os levam, tudo forma a mais agradável perspectiva, tudo está suspendendo os corações e soletrando estas letras divinas: "scitote quoniam Dominus ipse est Deus: ipse fecit nos et non ipsi nos".
Tão rico e deslumbrante o Rio Doce e tão deixado daquele mesmo que aliás deviam olhá-lo com mais consideração. A Sociedade de Comércio, Agricultura e Navegação de 1819 de que foi representante José Alexandre Carneiro Leão; A Companhia Nacional Estrangeira de João Diogo Struzem, 1536; a catequese desde 1824, estabelecida em favor dos índios; o grande projeto de Dr. França Leite, primeiro que singrou aquelas águas em 1857 em um barco de vela, com lotação de 38 toneladas, levando mil arrobas de cargas e colonos portugueses, franceses e alemães, e tantas outras empresas de incontestáveis vantagens — tudo malogrou-se, tudo perdeu-se!
Estes fatos parecem confirmar aquela tristíssima fase, atribuída ao famoso Padre Anchieta, a qual repete o povo em tom profético: " o Rio Doce será sempre desejado e nunca povoado".
Ah! mas a história, essa luz da verdade, nos diz e prova que o governo é o único responsável pelo lastimoso estado em que se acha o grande Rio Doce! Meu caro Brasil! Por que hás de esquecer o de que muito deves lembrar e cuidar?!
Minha querida província olha para tua riqueza e formosura e não te veja eu pobre e humilhada... Veste as finas sedas com que Deus te enriqueceu, e senta-te entre tuas irmãs com glória e nobreza. Tens tudo em ti mesma para te apresentares cheia de pompa e de brio.
Pati do Alferes, setembro de 1891. (Publicado no Brasil)
Nota: O Monsenhor Pedrinha (1864-1919), autor do texto acima publicado, foi poeta, ensaísta, orador sacro e parlamentar por mais de uma legislatura. De família tradicional de desbravadores, nascido às margens do Rio Doce, foi um dos maiores intelectuais de sua época. Patrono da cadeira 18 da AEL.)
(Rio de Janeiro: Tip. de O Apóstolo, 1896. CAPÍTULO XIII.)
Fonte: Revista da Academia Espírito-Santense de Letras – Comemorativo ao 86º aniversário da AEL, ano 2007
Autor: Monsenhor Eurípedes Pedrinha
Compilação: Walter de Aguiar Filho, novembro/2015
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