Varíola e Febre Amarela – Por Areobaldo Lellis Horta
A primeira vez que assisti aqui a um surto de varíola e outro de febre amarela, era eu aluno do curso primário. Ambos se apresentaram com caráter epidêmico e serviram para revelar, de um lado, o atraso da ciência no tocante aos métodos de combate a essas espécies de males infectocontagiosos; de outro lado, para evidenciar a indiferença entre as autoridades sanitárias, só fechando as portas depois da casa roubada. Há ainda um outro aspecto interessante dos aludidos surtos — o da coincidência de cada qual deles com fatos, tomados como causa legítima dos males.
O fato ao qual se atribuiu o aparecimento da varíola, ocorreu durante a Semana Santa daquele ano, na noite de Sexta-feira da Paixão, pouco antes da saída da Procissão do Enterro. A Catedral se achava repleta quando, partindo não se soube de quem, um grito de "incêndio!" "incêndio!" ecoou por toda a nave do templo, provocando imediata situação de pânico. Dado o reboliço, oriundo dos que se precipitavam para as portas, buscando sair, juntamente com novos gritos aconselhando calma, alguns policiais destacados para acompanhar a procissão e que se achavam do lado de fora, investiram pelo interior da igreja, de facão em punho, distribuindo pranchadas a torto e a direito. A muito custo a calma foi restabelecida, registrando-se ferimentos em várias pessoas. Malgrado o lamentável incidente, a procissão não deixou de sair.
Passam-se alguns dias quando, certa tarde, foi a cidade sacudida por uma notícia sensacional e alarmante. No quartel da polícia, apareceram vários casos de varíola, e o povo quis ver naquilo uma manifestação de castigo. Invadiram a igreja, na hora de uma das mais emocionantes solenidades! Ali estava agora a resposta. Porém, o mal foi se alastrando. Aqui, ali e acolá os casos iam sendo verificados. O pequeno salão, existente na Ilha do Príncipe, à guisa de isolamento, não cabia mais enfermos, urgindo outras medidas. E o Convento de São Francisco é arvorado em hospital, recebendo novos variolosos, sob a guarda do abnegado seminarista Egídio de Martini Granza. Enquanto isso, os lares iam também registrando os seus enfermos. Tão acentuado era o número de doentes, conservados na própria residência que, em cada porta flutuava uma bandeirola vermelha, anunciando a existência do mal reinante. Na entrada de tais casas fumegavam cacos, contendo brasas, sobre as quais se lançava, de quando em vez, alcatrão, como meio para sanear o ambiente. Fecharam-se as escolas, como recurso preventivo em defesa da infância, e postos de vacinação foram abertos, funcionando da manhã ao anoitecer. Cartazes foram pregados nas vias públicas, anunciando que a varíola, quando não matava, deformava a fisionomia. Era o processo adotado para atrair o povo aos postos de vacinação.
Vacinei-me, com os meus irmãos, na sede do Clube Carnavalesco "Apoio", na Capixaba, sendo depois levado, com outras crianças, ao antigo gasômetro, ali mesmo no bairro, por entenderem os médicos ser útil receber-se o cheiro que então ainda se desprendia dos canos. As boas vacinas infantis serviam para inocular-se em outras pessoas, economizando-se os tubos, vindos do Rio, e cuja chegada era sempre demorada. A vacina que recebi e que me valeu duas pústulas em cada braço me imunizou para sempre, pois das inúmeras vezes que repeti, jamais as suas reações passaram além de simples prurido. A intensificação da vacina, aliada ao pavor geral que levou aos postos os moradores da cidade, impediu, ao cabo de alguns meses, maior disseminação do mal, que não deixou de ceifar vidas e deformar fisionomias. E, fosse como fosse, a nossa gente jamais se afastou da idéia de um castigo.
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Em meio a nossa baía, existia um grande mole de granito, coberto pelas águas, à altura do Paul. Não havia marco que o assinalasse, nem durante o dia nem à noite. A sua posição era, entretanto, conhecida dos práticos, jamais se tendo verificado qualquer acidente. Todavia, certa manhã entrou no porto um navio francês "Helas" que, com o seu prático, fez rumo seguro sobre o rochedo submerso, chocando-se com ele e abrindo, como consequência, água que atingiu os porões de proa.
Não sendo fácil qualquer meio imediato para sustar soçobrasse o navio, foi ele rebocado para o trapiche do Pinto Coelho, que ocupava todo o antigo prédio, onde hoje existe o edifício Sagres. Pinto Coelho era antigo negociante e trapicheiro entre nós, tendo puxado, ao lado de seu estabelecimento, um cais, avançando para o mar até certa distância fora do cais do antigo mercado. Foi ali que o Helas foi atracado, com grande trabalho, pois não tardou muito em submergir, em parte.
Demorando a vinda de recursos do Rio, para salvamento do navio, entrou a deteriorar-se a carga, dando lugar à formação de um ambiente de podridão que, lentamente se estendendo, ganhou toda a cidade. Coincidindo com tão profunda modificação do ar, que entramos a respirar, começaram a ser registrados os primeiros casos de febre amarela, atribuindo-se a responsabilidade da eclosão do mal à deteriorização da carga do navio.
Não sabemos se, naquela época, já possuíamos alguma coisa que se pudesse chamar de serviço de higiene pública, devidamente organizada e, se havia, também ignoramos se tal serviço estava a cargo do Dr. Ernesto Mendo de Oliveira. Sabemos que, agravando-se a situação, foi solicitada a presença daquele médico, que desfrutava em Vitória do melhor conceito, como clínico. O Dr. Ernesto se achava na Bahia, não se fazendo demorar, pois pela primeira condução, aqui chegou, pondo mão à obra.
A campanha contra a amarela constituiu em uma espécie de expurgo da cidade, mediante a queima, nas nossas ruas, de alcatrão, em fogueiras, que se mantinham acesas dia e noite. O mal foi realizando a sua ação mortífera sobre a população, durante alguns meses, só nos deixando em paz, quando bem quis. Assim se pode afirmar porque, com o progresso da ciência, se veio, a saber, mais tarde que o Helas, com sua carga deteriorada, nada tinha a ver com o surto da febre amarela, que nos surpreendera, de vez que ficou depois demonstrado, ter o mal como vetor, o "Stegomyia Fasciata", mosquito de todos ora conhecido, ao menos, de nome.
O "Helas", considerado irremediavelmente perdido, consentiu em ser rebocado para um recanto do Paul, onde o mar e o tempo o destroçaram. O rochedo submerso foi assinalado aos navegantes por enorme bóia, preta e branca, colocada pelo Loyd Brasileiro, desaparecendo ultimamente, com os serviços de construção do Cais do Porto.
Foi deste modo que tivemos, e combatemos dois grandes e fatídicos surtos de varíola e de febre amarela, o primeiro tido como um castigo à irreverência pelas coisas divinas. O segundo como resultado do afundamento, em nosso porto, de um navio cargueiro.
Antes do mais
O presente trabalho, com o qual concorro ao prêmio "Cidade de Vitória", instituído pela Lei Municipal n°. 20, de 8 de setembro de 1946, é um modesto subsídio ao estudo do desenvolvimento da nossa Capital, em suas condições urbanísticas, métodos educacionais de ordem cultural e social, de costumes e tradições ao tempo de minha infância e juventude.
Se valores intelectuais do passado, como padre Antunes de Siqueira, Daemon, Afonso Cláudio e outros de idênticos assuntos se ocuparam para o conhecimento dos vindouros, o fizeram em relação às mesmas épocas de sua juventude. Deixaram, por isto, uma solução de continuidade compreendendo as duas últimas décadas do século dezenove e a primeira do século vinte. É essa lacuna, que pretendo preencher despretensiosamente, com o que a memória me conservou daquela fase de minha vida. Procurando realizá-lo, não posso fugir ao dever de uma homenagem ao berço da nossa evolução - Vila Velha — onde passei parte da minha meninice e à qual a Vitória está presa por uma série de caras circunstâncias, homenagem representada nas crônicas que dão corpo a este trabalho pelo que a seu respeito escrevi.
Vitória, junho de 1951.
O AUTOR
Fonte: A Vitória do meu tempo – Academia Espírito-Santense de Letras, Secretaria Municipal de Cultura, 2007 – Vitória/ES
Autor: Areobaldo Lellis Horta
Organização e revisão: Francisco Aurelio Ribeiro
Compilação: Walter de Aguiar Filho/ junho/2020
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