Quilombos: Territórios e Patrimônio Cultural - Por Osvaldo Martins de Oliveira
Quando Maciel (1994) escreveu sua obra, poucas comunidades dos quilombos foram ali mencionadas, entre as quais Divino Espírito Santo, no município de São Mateus; Santana, em Conceição da Barra, e Cacimbinha e Boa Esperança, no município de Presidente Kennedy. Atualmente, 18 anos depois, motivados pelos direitos sociais, culturais, étnicos e territoriais assegurados pelos artigos 215, 216 e 68 do ADCT (Atos das Disposições Constitucionais Transitórias), da Constituição Federal de 1988, bem como pelo Decreto 4.887/2003, que estabelece as normas de regularização dos territórios dos quilombos, mais de 50 comunidades, segundo a estimativa da Coordenação Estadual das Comunidades Quilombolas do Espírito Santo - ‘Zacimba Gaba’, são consideradas como remanescentes dos quilombos no mesmo Estado. Apesar dessa estimativa, para efeito das fontes deste texto, apresentarei um pouco adiante apenas aquelas que estão reconhecidas pelos certificados emitidos pela Fundação Cultural Palmares (FCP), do Ministério da Cultura, que são 30 comunidades. O movimento dessas comunidades vem empreendendo uma retomada de suas memórias, identidades e culturas, que surpreendeu as definições arcaicas de quilombo, que passarei a desconstruir agora.
Fazendo uma retrospectiva, os discursos ideológicos contrários aos direitos à autodefinição e à regularização dos territórios das comunidades dos quilombos chegam ao máximo à definição externa apresentada pelo Conselho Ultramarino Português de 1740, no intuito de reforçarem a noção de quilombo como comunidades formadas apenas por “escravos fugidos”. No entanto, conforme escrevem Munanga (1995) e Nascimento (1980), as experiências que proporcionaram a autodefinição e a visão de mundo das organizações sociais denominadas quilombos, que já vinham sendo empregadas pelas lideranças das organizações de movimentos negros desde a primeira metade do século XX, antes de surgirem no Brasil dos séculos XVII, XVIII e XIX, existiam no continente africano, sobretudo entre os povos de língua bantu.
O termo quilombo, no contexto africano bantu, era empregado para se referir à organização social das vilas, povoados, capitais, feiras, mercados e acampamentos guerreiros. Nesse sentido, para muito além da fuga, os milhares de quilombos no Brasil têm sido formas de organização social de diferentes experiências e saberes herdados e transmitidos por meio da autonomia na produção, nas interações sociais e nas trocas comerciais, embora as instituições estatais e religiosas e as iniciativas de interesse privado da exploração da mão de obra tenham, historicamente no Brasil, tentado controlar essa autonomia.
Os dados documentais sobre a existência de quilombos no Espírito Santo remontam principalmente ao início do século XIX. Esses quilombos se tornaram uma realidade cotidiana e em número crescente na Província do Espírito Santo, o que levou a administração pública a organizar Companhias de Guerrilha para abatê-los. Isso porque um número cada vez maior de escravizados, segundo o relatório do presidente da Província de 1848-1849, deixava as casas de seus senhores para viver nos quilombos. No então distrito de Cariacica, segundo o mesmo relatório, havia mais gente nos quilombos do que nas fazendas. Entre os muitos quilombos descritos pelas fontes documentais do referido século, segundo os trabalhos de Oliveira (2002 e 2005), Marinato (2006), Martins (2000) e Moreira (2010), destacamos os seguintes:
Ano Nome e descrição da localidade do quilombo
1814 a 1817 “República Negra” e “escravos do mato” eram termos que se aplicavam aos agrupamentos negros independentes que existiam na vila e nos sertões de Guarapari. O mais expressivo e resistente era formado pelos escravizados das fazendas do Campo e Engenho Velho, que após a morte do proprietário se revoltaram, passaram a trabalhar menos, considerando-se livres e recusando a se submeterem a uma nova administração. Segundo as descrições do viajante príncipe Maximiliano Wied-Neuwied e dos documentos oficiais, a República Negra, formada pelos escravizados nas referidas fazendas, contava com cerca de 600 integrantes.
1827 Quilombo nos subúrbios da vila de São Mateus, com mais de 90 integrantes, como constatado por moradores que enviaram um documento ao Governo da Província.
1827 Quilombo na zona rural de São Mateus, com mais de 100 integrantes, descrito pela Câmara da Vila, que, no referido ano, enviou um documento ao Governo da Província solicitando providências.
1830 Quilombo no distrito do Itapemirim, destruído no referido ano pelos índios Puri e soldados, quando quatro integrantes escaparam adentrando às matas.
1835 Quilombo descrito pela polícia como existindo no sertão de São Mateus.
1836 O historiador Maciel (1994) escreve que nas proximidades do Rio Santa Maria da Vitória, no referido ano, havia escravos aquilombados que, depois de fugirem das fazendas nos municípios da Serra e Vitória, subiram por esse rio em direção às matas de Santa Leopoldina.
1839 Quilombo nos subúrbios da vila de São Mateus, que se caracterizava pelas relações comerciais com a vida social urbana, e não pelo isolamento.
1846 Quilombos descritos pelo relatório do presidente da Província, em números elevados, nos distritos de Cariacica e Viana.
1847 a 1848 Quilombos e mocambos no distrito de Viana, especificamente nas localidades de Araçatiba, Santo Agostinho, Lama Preta e Jacaraoabas, quando 47 senhores fizeram um abaixo-assinado pedindo providências do Governo Provincial contra os mocambeiros.
1848 a 1849 Quilombos e mocambos no distrito de Cariacica entre os anos de 1848 e 1849, que comportavam um número de integrantes superior aos escravizados que permaneciam nas fazendas, entre os quais se sobressaem aqueles liderados por Prufino José Fernandes e Antônio do Mato, que, inclusive, possuíam armas.
1848 Quilombo nas matas próximo ao Rio Muqui, descoberto no referido ano pelo delegado de polícia de Itapemirim, que contou com a ajuda de moradores que teriam ouvido “toques de tambores”, “cantos de galos” e “fumaça na mata”, verificando que o mesmo existia há muitos anos, pois seus habitantes foram estimados variando de 200 a 300 integrantes, advindos de fazendas do norte fluminense e do sul do Espírito Santo.
1848 Quilombo do Sertão da Pedra Lisa, no distrito do Itapemirim.
1848 Quilombo no meio rural do distrito de Itapemirim.
1849 Quilombo no meio rural de São Mateus.
1850 Quilombo no meio urbano, no distrito e vila da Serra, quando a polícia solicita recursos financeiros e reforço policial para atacar também outros quilombos ali existentes.
1866 Quilombos nos sertões de São Mateus, com número estimado pela polícia de 16 a 20 integrantes cada um.
1881 Quilombo liderado por Rogério (Rugério), com cerca de 20 integrantes, em Santana, no município de Conceição da Barra.
1883 Quilombos nas proximidades dos rios Santa Maria e das Farinhas, com mais de 20 integrantes, que andavam armados.
1884 Quilombo nas matas da Fazenda Campo Redondo liderado por Benedito, com uma população estimada pelos documentos de polícia entre 20 e 30 integrantes.
1885 Quilombo descrito pelo relatório de polícia como existente nas proximidades das estradas de Mangarahy, município de Santa Leopoldina. Segundo a memória dos moradores de Retiro e do Una de Santa Maria, os integrantes desses quilombos eram denominado calhambolas, sendo um deles liderado por Bem-Bem, ex-participante da Revolta de Queimados.
1849 a meados do século XX Quilombo do Morro São José, município de Santa Leopoldina, em que os integrantes eram descendentes dos escravizados que participaram da revolta ocorrida na vila de São José do Queimado. O nome da vila do passado nomeou a nova comunidade e, em meados do século XX, seus integrantes, que, desde então, assinam pelo sobrenome Santana, entraram em processo de miscigenação com descendentes de imigrantes alemães, especificamente com os de sobrenome Leppaus.
1885 Quilombo no município de Viana, especificamente na localidade de Araçatiba, que já havia sido constatado pelo relatório de polícia desde 1847, conforme descrito anteriormente.
1885 Quilombo na localidade de Mamoeiro, no município de Viana.
1885 Quilombo nas matas do Jacarandá, no município de Viana. No mesmo município, segundo Maciel (1994), havia também um quilombo que, na segunda metade do século XIX, era conhecido como “Morro do Quilombo”, onde se dizia que os quilombolas usavam “os cabelos da altura do morro”. No mesmo município, segundo pesquisa de Oliveira (2005), existiam quilombos que contavam com grande número de escravizados fugidos.
São a esses mais de 20 agrupamentos dos quilombos do passado no Espírito Santo que as lideranças quilombolas do presente recorrem para falar de suas formas de organização e tradições herdadas. Cabe observar que essas estratégias de construção das formas de organizações políticas e sociais negras não é nova, pois a Frente Negra Brasileira na década de 1930, o Teatro Experimental do Negro em 1945 e o Movimento Negro Unificado no final da década de 1970 e início dos anos 80 empregavam os mesmos argumentos para demonstrar que os segmentos étnicos negros tinham (e têm) particularidades históricas, tradições culturais e capacidades próprias na organização política advindas dos quilombos desde o século XVII.
Na década de 1980, precisamente a partir de 1982, os debates a partir do quilombo eram feitos pelo Centro de Cultura Negra do Maranhão e pelo Centro de Estudos do Negro do Pará com as comunidades negras do meio rural desses estados. Na mesma década, os Agentes de Pastoral Negros travaram o debate em nível nacional, criando sua sede administrativa em São Paulo, denominada “Quilombo Central”, e nos estados se organizaram em pequenos núcleos denominados “Quilombos Regionais”, inclusive no Espírito Santo. As referidas organizações de movimentos negros recorriam, principalmente, ao caso do Quilombo de Palmares, como exemplo de organização democrática. Foi a partir dessas mobilizações e organizações políticas negras que surgiram as proposições que resultaram nos artigos 216 (Da Cultura) e 68 (Do ADCT) da Constituição Federal de 1988 e a Lei 10.639/2003.
Observando esses processos de mobilização das organizações de movimentos negros, os antropólogos integrantes do Grupo de Trabalho “Quilombo”, da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), que há alguns anos já vinham estudando esses movimentos e os processos organizativos das comunidades negras do meio rural pelo direito à terra-território e ao pertencimento ao lugar e grupos específicos, em 1994 apresentaram a seguinte definição para quilombo:
O termo ‘quilombo’ tem assumido novos significados na literatura especializada e também para os grupos, indivíduos e organizações. Ainda que tenha um conteúdo histórico, o mesmo vem sendo ressemantizado para designar a situação presente dos segmentos negros em diferentes regiões e contextos do Brasil. Definições têm sido elaboradas por organizações não-governamentais, entidades confessionais e organizações autônomas dos trabalhadores, bem como pelo próprio movimento negro. ...o termo ‘remanescente de quilombo’ vem sendo utilizado pelos grupos para designar um legado, uma herança cultural e material que lhes confere uma referência presencial no sentimento de ser e pertencer a um lugar e a um grupo específico (ABA, 1994).
Embora as pesquisas atuais constatem a existência de outras comunidades dos quilombos no Espírito Santo, este texto apresentará apenas as que estão certificadas pela FCP. No município de Conceição da Barra, temos as seguintes comunidades: Santana (Bairro Quilombo Novo e Santana Velha), Território de Roda D’Água (localidades de Porto Grande, Córrego do Alexandre e Roda D’água), Santaninha (Córrego de Santana), Coxi, São Domingos (incluindo Córrego do Macuco e Córrego dos Pretos), Linharinho, Território do Angelim (comunidades Angelim Porto dos Tocos, Angelim de Dentro, Angelim do Meio, Angelim Disa e Angelim Fontoura), Córrego do Sertão, Córrego Santa Izabel (Sertão de Itaúnas) e Dona Guilhermina.
No município de São Mateus, são: Palmito (Palmitinho), São Jorge, São Jorge (Morro das Araras), Nova Vista, Chiado, Dilô Barbosa, São Domingos de Itauninhas (Itauninhas), Beira Rio Arural, São Cristóvão, Serraria (em processo de regularização pelo Incra no mesmo território que São Cristóvão), Mata Sede, Córrego Seco, Cacimba.
Em outros municípios, temos: São Pedro (Ibiraçu), Retiro (Santa Leopoldina), Alto Iguape (Guarapari), Monte Alegre (Cachoeiro de Itapemirim), Cacimbinha e Boa Esperança (Presidente Kennedy), Graúna (Itapemirim) e Pedra Branca (Vagem Alta).
Essas comunidades se definem e foram certificadas pela Fundação Cultural Palmares como remanescentes dos quilombos porque suas memórias, genealogias e demais referências culturais conduziram os pesquisadores que nelas trabalharam a construírem uma retrospectiva no tempo, em espécies de viagens em direção ao passado, demarcando suas existências muitos anos antes da Constituição Federal de 1988 e anterior também à assinatura da Lei Áurea, em 1888.
Os processos políticos de construções genealógicas e de memórias para fundamentar as organizações sociais e políticas em tradições e/ou ordens culturais de longa duração é uma estratégia consciente e pode ser verificada também nos discursos das lideranças e formas de organização de comunidades religiosas de terreiro do candomblé, que se definem como religiões de matriz africana e se organizam em nações definidas segundo os nomes de onde, supostamente, teriam vindo, como poderemos observar adiante em um texto específico sobre o assunto.
GOVERNO DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO
Governador
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Vice-governador
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Secretário de Estado da Cultura
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Subsecretário de Gestão Administrativa
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Subsecretário de Cultura
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Diretor Geral do Arquivo Público do Estado do Espírito Santo
Cilmar Franceschetto
Diretor Técnico Administrativo
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Coordenação Editorial
Cilmar Franceschetto
Agostino Lazzaro
Apoio Técnico
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Editoração Eletrônica
Estúdio Zota
Impressão e Acabamento
GSA
Fonte: Negros no Espírito Santo / Cleber Maciel; organização por Osvaldo Martins de Oliveira. – 2ª ed. – Vitória, (ES): Arquivo Público do Estado do Espírito Santo, 2016.
Autor do texto: Osvaldo Martins de Oliveira
Compilação: Walter de Aguiar Filho, fevereiro/2022
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