Viagem ao Espírito Santo (1888) - Princesa Teresa da Baviera (PARTE III)
De manhã bem cedo nos dirigimos para a terra firme, onde fomos recebidos hospitaleiramente na casa do Sr. Peschier, um rico comerciante. A primeira coisa a fazer foi largarmos a bagagem supérflua e nos preparar de modo simples e prático para a viagem pela mata virgem costeira para visitar os botocudos.
Aqui pedimos para guardar nossas roupas de corte europeu e passamos a usar um vestuário apropriado, tanto para cavalgar como para andar a pé pelo matagal. Não levamos nenhuma muda de roupa para não tornar a bagagem muito pesada, mas não recusamos de ficar em abrigos quentes para nos proteger da chuva e do frescor da noite.
Às 11h30min, as nossas duas barracas, as três camas de campanha extremamente simples, nossos parcos utensílios de cozinha, vários tipos de conservas, duas lanternas e um estoque de velas estavam acomodados na canoa que nos foi destinada. Além disso, havíamos tomado um reforçado café da manhã, talvez por algum tempo, pela última vez. Então seguimos mata adentro, sem ter a certeza de que realmente chegaríamos ao nosso destino. Nossa canoa era feita de um enorme tronco de madeira amarela(33) e tinha seis bancos. Esses bancos não eram destinados a nós, mas ao pessoal que remava a canoa. Essa equipe era composta de quatro remadores, sendo dois deles negros, um índio e um branco, mais o piloto, igualmente um negro parado em pé, que comandava a canoa com um remo. Para nós estava reservado um lugar comprido, sem banco, acima do qual havia uma cobertura, um meio-cilindro de folhas de palmeira, que servia para nos proteger dos raios do sol. Sobre a madeira do piso havia uma esteira e um colchão. Aqui nós tivemos que ficar sentados no chão durante todo o dia, à moda oriental, as costas mal apoiadas pela nossa bagagem de mão. No início, a viagem seguia na direção norte, Lameirão acima, e depois de percorridos 18 km, na extremidade norte, entramos no rio Santa Maria. Esse rio, que deve ter um comprimento de pouco mais de 100 km, é navegável ao longo de 54 km também por canoas e vapores pequenos. Nas duas primeiras horas da viagem, a canoa foi conduzida pelos remos, depois empurrada para frente com paus compridos. As margens da Laguna Lameirão eram emolduradas em sua maior parte com vegetação de mangrove (Rhizophora mangle) que, tanto aqui como provavelmente em outras partes do Brasil, se compõe de mangue preto (Avicennia L.) e mangue branco (Languncularia racemosa). Nas poucas rochas das margens que interrompiam o cinturão da vegetação de manguezal(34) estavam aderidas inúmeras ostras, provavelmente Ostrea spreta d´Orb. Pelo menos a última espécie de ostra citada é a que melhor combina com a descrição do pesquisador naturalista Hartt(35), relativa a ostras que aparecem nesse lugar e servem de alimento para os habitantes de Vitória. Por detrás das margens ladeadas de mangroves, tornaram-se visíveis, a certa distância, as mais belas montanhas, a do Frade Leopoldo e principalmente, a nordeste, a do Mestre Álvaro. Esta última, uma pirâmide de gnaisse de contorno elegante, com três pontas de mesmo tamanho, medindo 980 m, sobressai da planície de forma solitária e majestosa. Quem uma vez chegou a ver essas montanhas costeiras mais importantes da província, muito dificilmente apagará da lembrança tal formação característica, quase clássica.
Ao meio-dia, a temperatura do ar era de 26°C com ventos fortes, e a da água, de 22,5°C. Agora a nossa via de navegação era dividida por baixas ilhotas cobertas de mangroves. Ela se tornava cada vez mais rasa, gaivotas baixavam com vôos rasantes sobre as presas e maçaricos pescavam escondidos nas margens. Bem-te-vis, possivelmente Pitangus lictor Licht., voavam sobre o rio Santa Maria para lá e para cá.
Na vegetação das margens voavam tranquilos os tiês-sangue, pássaros de maravilhosas plumas cores vermelho-escarlate e preta (Ramphocoelus brasilius L.)(36), que estavam entre as mais belas aves do Brasil. De tempos em tempos, uma piroga igual à nossa vinha navegando silenciosamente rio abaixo. Era ocupada ou com mulheres de cor escura e crianças, ou com fazendeiros que transportavam sacos de café até a costa. Assemelhavam-se a uma aparição essas canoas pitorescas, remadas por índios e mais frequentemente por negros, passando por nós e desaparecendo logo em seguida aos nossos olhos na primeira curva do rio. O cinturão de mangroves havia ficado para trás. Agora os dois lados das margens vinham acompanhados de uma vegetação fechada e árvores baixas, por entre as quais mui raramente sobressaía uma árvore mais alta. Nesse lugar não havia trepadeiras, nem epífitos, ornando a orla da mata, que não nos parecia bela, nem densa. Sentimos falta das fantásticas cenas de vegetação das margens do Amazonas. Lembramo-nos então de que nos encontrávamos numa região da mata costeira do Espírito Santo, que só apresenta plantas magras, semelhantes à capoeira. No rio, que se tornava cada vez mais estreito, juncos cresciam formando um grupo, e plantas de folhas carnudas, quase redondas, certamente aguapés ou pontedeiras, apareciam em grande quantidade por sobre o espelho d´água. Ora num, ora noutro ponto do rio Santa Maria oferecia-se uma bela cena idílica, produzida pelas elevações cobertas de mata ou de montanhas, fechando o horizonte. Essa foi a paisagem que se apresentou na pequena aldeia de Porto da Pedra, de onde se avista o monte Mestre Álvaro, de aparência maravilhosa. Alguns quilômetros mais acima, bem no alto de uma elevação coberta de grama, apareceram algumas casas da comunidade São José do Queimado.
As fazendas dessa região de criação de cavalos e gado permaneciam mais ou menos ocultas atrás do arvoredo das margens. Durante algum tempo, um certo fazendeiro a cavalo, acompanhado de dois garotos negros, cavalgava num cavalo de passo lento pelas margens do rio acima, permanecendo sempre à mesma distância em relação à nossa canoa. Logo em seguida, o pequeno grupo de cavaleiros chegou bem perto das margens, desaparecendo novamente por detrás dos arbustos. Não sabíamos ao certo o que isso significava, até que um fazendeiro de barbas brancas apareceu, saltou para dentro do rio e gritou, nos perguntando se vínhamos do Rio de Janeiro. Ele só desejava saber se o seu imperador havia retornado bem e feliz do estrangeiro. Depois que recebeu a notícia satisfatória, troteou rapidamente dali e logo desapareceu das nossas vistas. Essa manifestação tão espontânea de lealdade num lugar tão distante do mundo deixou em nós uma impressão muito benfazeja, ao pensarmos no monarca que merecia tão alto apreço.
Uma garça de cor cinza, denominada de socó, possivelmente Nycticorax violaceus L., levantou voo e um outro pássaro cinza, branco e preto, que nosso pessoal chamou de soldado, saltitava com pequenos passos nas margens do rio. Suponho que esse pássaro, que se assemelhava mais ou menos a um meiro aquático, devia ser um “anunciador de chuva”(37), possivelmente o Ochthodromus wilsoni Ord. (38) Depois que conseguimos navegar facilmente por algumas curvas do rio - o rio Santa Maria não tem muita descida - passamos finalmente pelo lugarejo de Queimado propriamente dito, que se estendia ao longo das duas margens.
Não paramos ali, pois ansiávamos seguir adiante, sem parada, em direção ao lugar previsto para o pernoite.
Durante toda a tarde o sol não brilhou, deixando a temperatura mais amena. À noite, às 17h15min, o termômetro marcava 24,5°C, e durante a tarde não havia soprado vento algum. À nossa direita saltava uma elevação coberta de coqueiros, que ostentavam apenas algumas poucas folhas em leque curvadas. Esses foram os primeiros coqueiros que vimos na nossa viagem pelo rio hoje. A tripulação da canoa denominava-os de cocos de quarto, mas como em parte alguma é mencionada essa denominação, tratar-se provavelmente dos cocos-da-quaresma (Cocos flexuosa Mart.), não somente pela denominação semelhante, mas também porque de acordo com o seu habitat e a forma de seu aparecimento, são os que mais se aproximam desses coqueiros. As margens se encontravam cobertas com lindas plantas de ubá (Gynerium parolium Nees ab Esenbeck) e atrás delas havia algumas árvores, de onde pendiam inúmeros trançados em forma de barba cinzenta, as chamadas “barbasde-velho” (Tillandsia usneoides L.).
Prosseguimos silenciosamente a viagem até que novamente uma canoa veio em nossa direção. Os homens das duas canoas se cumprimentaram e casualmente ficamos sabendo que a outra canoa estava levando para Queimado as selas destinadas à nossa cavalgada de amanhã.
E pelo que descobrimos através dos homens da outra canoa, também os nossos cavalos já estariam a caminho. Mas em Vitória haviam nos dito que os cavalos estariam à nossa espera numa fazenda perto do emboque do rio Mangaraí(39), que se encaixa a sudeste no rio Santa Maria, num trajeto um pouco acima de Queimado. Ou seja, sem esse encontro casual, teríamos continuado tranquilamente a viagem com a canoa, enquanto as selas e os cavalos, que facilmente ficariam despercebidos na escuridão, teriam passado e esperado em vão por nós no povoado de Queimado, situado rio acima. Tratava-se de um mal-entendido, que se não fosse solucionado tão rapidamente teria nos custado todo um dia de viagem. Não nos restava outra coisa a não ser ficar aguardando pelos cavalos naquele ponto do rio, onde necessariamente teriam que passar. Já era noite. As duas canoas foram amarradas nas margens e em seguida os remadores acenderam uma grande fogueira em terra firme para preparar o jantar. Nós permanecemos na canoa e preparamos nós mesmos o nosso lanche modesto, que era ao mesmo tempo almoço. De tempos em tempos olhávamos para fora, para as figuras estranhas que se agrupavam em torno das chamas ardentes.
Após longas horas de espera, chegou, finalmente, a tropa de mulas de carga, cavalgada por homens que vinham do interior. Eles pretendiam continuar usando os nossos cavalos para chegarem até Queimado. Conseguimos nos entender com eles sobre isso e também ficou combinado que nos devolveriam os cavalos para que pudéssemos chegar em tempo hábil ao emboque do Mangaraí. Ás 9 horas da noite prosseguimos viagem com a canoa. A escuridão era total. A pequena lanterna emitia um brilho fraco debaixo da cobertura, o movimento silencioso do barco causava sonolência e o lugar onde havíamos sentado com tanto desconforto durante o dia nos parecia agora maravilhoso para dormir.
Por volta das 11 horas da noite, chegamos finalmente à referida fazenda, para cujo proprietário levávamos uma carta de recomendação. Primeiramente tivemos que escalar o barranco lodoso no meio da escuridão impenetrável, correndo o risco de escorregar para dentro do rio, em seguida continuamos tateando para frente até chegar à moradia, onde todos já se encontravam em profundo sono. Sem uma palavra de desagrado, os brasileiros nos receberam muito amigavelmente, arranjaram as salas, arrumaram as camas até então ocupadas e se agruparam num pequeno cômodo sem camas pelo resto da noite. Nós duas dividimos uma cama dura e passamos muito frio. Visto que os quartos não tinham teto nem paredes que subissem até o alto, bem à moda brasileira, o frescor da noite atravessava desimpedidamente a casa toda. Tivemos que deixar a bagagem com os abrigos quentes na canoa, já que era muito difícil carregá-la no meio da noite escura.
NOTAS
(33) Supostamente a madeira da sucupira amarela (Ferreirea spectabilis Allem.) uma enorme árvore do Brasil central (Martius, Flora brasiliensis, XV, p. 311 e Das kaiserreich Brasilien, na exposição mundial de 1876 na Filadélfia, p. 50). Veja também Costa Rubim. Vocabulario brasileiro, p. 69 e Martius. Beiträge zur ethnographie und sprachenkunde Amerikas, II (Contribuições sobre a etnologia e linguística), p. 405-406. No entanto, em Flora brasiliensis (XIII, 2, p. 73–74) ela é denominada de pau-amarelo, principalmente a madeira da Vochysia obscura Warm, restrita à região do Alto Amazonas, p. 20.
(34) A autora usou a palavra em inglês mangrove no original. (NO)
(35) Hartt. Geology and physical geography of Brazil, p. 73.
(36) Também conhecidos como sangues-de-boi, tiês-fogo ou tapirangas. (NT)
(37) Tradução literal de Regenpfeifer. (NT)
(38) Spix descreve em sua obra: Avium species novae, II, p. 77, apenas um pássaro jovem; Wilson (American ornithology, IX, Tafel 73, N.5) retrata um exemplar adulto. (NT: nas pesquisas não foi encontrada a tradução para Ochthodromus, somente um Charadrius wilsonia, ou Wilsons Plover = tordeira-do-mar.)
(39) O nosso pessoal denominou esse ponto de Mangaraí, mas pelo mapa específico em Silva Coutinho (Breve noticia descriptiva sobre a provincia do Espirito Santo) a fazenda denomina-se José Cláudio de Freitas e Mangaraí é um povoado que se situa mais acima do rio Mangaraí efica bem fora da nossa rota.
PRODUÇÃO
Arquivo Público do Estado do Espírito Santo
Coordenação Editorial
Cilmar Franceschetto
Revisão
Julio Bentivoglio
Apoio Técnico
Alexandre Alves Matias
Jória Motta Scolforo
Maria Dalva Pereira de Souza
Agradecimentos
André Malverdes, Levy Soares da Silva, Cláudio de Carvalho Xavier (Biblioteca Nacional), Adriana Pereira Campos, José Eustáquio Ribeiro, Adriana Jacobsen e a Hadumod Bussmann pelo fornecimento do diário de Maximiliano von Spiedel.
Editoração Eletrônica
Lima Bureau
Impressão e Acabamento
Dossi Editora Gráfica
Fonte: Viagem pelo Espírito Santo (1888): Viagem pelos trópicos brasileiros = Meine reise in den brasiliaischen tropen: / autoria da Princesa Teresa da Baviera - Vitória: Arquivo Público do Estado do Espírito Santo, 2013
Autora: Princesa Teresa da Baviera
Tradução: Sara Baldus
Organização e notas: Júlio Bentivoglio
Compilação: Walter de Aguiar Filho, outubro/2020
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