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A UFES e eu - Por Ailse Cypreste Romanelli

UFES 65 anos - Marca Comemorativa

A UFES faz 65 anos. E eu... bem, deixa prá lá. É tempo de festa! Vamos comemorar! Em termos nacionais, podemos dizer que já é uma respeitável senhora. Mas, se pensarmos em Nápoles ou Bolonha, ela ainda é um bebê que não saiu das fraldas. Venceu muitos obstáculos, superou carências e incertezas e agora caminha firme em direção à maturidade. Mas sempre é bom olhar para trás quando queremos projetar o depois. Os construtores de estradas que o digam. Vamos ao comecinho do começo.

Entrei na UFES no tempo em que ela ainda não era UFES, mas uma simples instituição estadual. Na realidade, eu não pensava em ser professora. Ainda no Ensino Médio, minha pretensão era estudar Medicina, mas faltou dinheiro e o sonho morreu aí. Vim para Vitória e como uma espécie de prêmio de consolação, escolhi o curso de Pedagogia porque era o único que tinha Biologia no currículo. No ano anterior, já houvera um vestibular para o curso de Pedagogia, mas só apareceram dois candidatos e um deles ficara reprovado. Naquele ano, com uma demanda maior, todos esperavam que o curso se instalasse.

O vestibular constava de provas escritas e orais, apenas sobre as disciplinas relacionadas ao curso. A prova escrita de Português foi uma redação (O Primeiro Degrau era o tema), mas na prova oral, teríamos de passar por dois examinadores que cobravam Literatura e Gramática; aí estava o divisor de águas. O primeiro examinador, Prof. José Leão Nunes, arguia sobre Literatura. Se o candidato não conseguisse a nota oito, deveria passar pelo segundo examinador, o Prof. Guilherme dos Santos Neves que tratava de Gramática. E dali pouca gente se salvava.

Vinda do interior e sem nenhuma preparação prévia, a não ser estudar o conteúdo pedido nas provas, tive a ajuda de um rapaz chamado Joaquim, que conheci ali mesmo, durante o exame. Ele percebeu que eu estava em desvantagem, porque o livro usado na prova oral de Literatura era o mesmo livro texto do Ensino Médio do Colégio Estadual, portanto, mais do que conhecido do pessoal de Vitória. Ele então se prontificou a ficar no corredor, diante da porta da sala, de modo a não ser visto pelos examinadores a me soprar respostas. Também recomendou que eu deveria elogiar Eça de Queiroz e dizer que já havia lido seus livros e tinha gostado muito. Explicou que era para agradar ao Prof. José Leão, um apaixonado pelo escritor português.

Enfrentei a banca bastante insegura. Após os cumprimentos de praxe, o Prof. José Leão abriu o livro aleatoriamente, em um texto de um autor que eu conhecia. Graças a Deus! Consegui responder todas as perguntas e novamente o livro foi aberto; agora era um texto de A Moreninha, também meu conhecido. Respondidas as perguntas, disse que já havia lido o livro. "Então não vale", disse o Professor e buscou um outro texto. Era Amor de Perdição, que por sorte também eu já havia lido. Falei sobre a narrativa como foi pedido e pensei que havia terminado. Lá fora Joaquim sorria quando veio a clássica pergunta: "Você já leu Eça de Queiroz?" Eu estava tão desarvorada que respondi:" - Não". " - E por que não?" " - Porque deve ser muito chato!". Joaquim botou a mão na cabeça e saiu de cena pensando: pronto está reprovada. Mas não, nem precisei da prova de Gramática.

Tempos depois, o Prof. José Leão relembrou o fato e disse ter gostado do que ouviu. Estava cansado de ouvir loas ao Eça de gente que nunca havia lido sequer um prefácio dele. Tentavam, assim, obter boa notas. Com vinte alunos aprovados o curso de Pedagogia poderia enfim, funcionar. Eram os anos cinquenta e, na época, para a criação de uma Universidade, a legislação do ensino superior exigia um número mínimo de Faculdades, sendo uma de Filosofia e esta, obrigatoriamente, entre seus cursos, deveria incluir um que tivesse Filosofia no currículo, no nosso caso o curso de Pedagogia. Ainda vigorava o regime seriado e o curso funcionava no chamado sistema três mais um, ou seja, três anos de disciplinas específicas e um quarto ano com Didática. Os três anos iniciais conferiam o grau de Bacharel e, ao completar o quarto ano, o aluno seria Licenciado, podendo ser professor. A Faculdade, a princípio, funcionou no Colégio Maria Ortiz ali perto do Palácio Anchieta. As aulas eram à noite em salas grandes e confortáveis, com seu pé direto alto, comum nas construções antigas; mas o que mais me encantava eram as pias de ferro fundido, uma em cada sala, cobertas de esmalte branco, enfeitadas com lindos ramos de rosas vermelhas.

Posteriormente, voltei lá algumas vezes a serviço da Secretaria de Educação, sempre com saudade da pias antigas. Quando fizeram a reforma quem teria ficado com elas? Como aqui não havia muitos professores com a titulação exigida pelo MEC, o Estado importou professores de São Paulo, da USP. Era um grupo de seis ou oito espalhados pelos diversos cursos. A principal atração era o professor de Antropologia... um gato, cujo diferencial era ser casado com uma senhora corpulenta e nada bonita, também professora.

Para o nosso curso de Pedagogia, veio WILSON CANTONI, PROFESSOR DE SOCIOLOGIA e gago. Se eu já tinha dificuldades com a disciplina, a coisa ficou pior porque ele gaguejava tanto que me deixava apavorada, parecia que ia perder o fôlego e eu não conseguia acompanhar as explicações. Mas no geral, tivemos bons professores, especialmente um português e ex-jesuíta, Antonio Pinto de Carvalho, que aqui chegou fugindo de Salazar. Era especialista em cultura clássica e dava aulas de Filosofia e História da Educação. Havia trabalhado em grandes escolas europeias. Conhecia grego antigo e tinha algumas traduções feitas. Descrevia, com detalhes as Universidades antigas e suas grandes bibliotecas, especialmente a biblioteca de Monte Cassino afirmando o quanto a História mudaria quando aqueles pergaminhos e papiros fossem, um dia, traduzidos e analisados. Ganhou o apelido de "Coimbrão".

Muito à vontade, entre nós, logo se adaptou aos nossos costumes. Simpático, sempre elogiava uma blusa marrom que eu tinha. Um dia descobri a razão. Ele aprendera a jogar no bicho e a blusa em questão, tinha o desenho de um camelo que lhe dava sorte; quando eu ia à aula com a blusa, ele jogava no camelo e ganhava. Ainda no primeiro ano, incentivadas pelo professor de Matemática, Manoel Valente, apaixonado por Filosofia, criamos um grupo de estudos com o pomposo nome de Centro de Estudos Filosóficos do Espírito Santo, "Dos amigos de Platão", para os íntimos. Nossa sede era um fundo de varanda na casa de Enilda Lordello, com reuniões eventuais na confeitaria do Hotel Sagres, um dos points da época, onde João de Abreu se divertia com as idiossincrasias do professor, ou então nas escadas próximas ao Colégio Maria Ortiz, caso os mosquitos permitissem.

Apesar de informal durante um tempo, esse Centro de Estudos foi levado a sério e nós estudávamos de verdade para poder discutir. Muito nos ajudou nas aulas de Filosofia, que adquiriram um tom de bate-papo, com o professor Antônio sentado em uma das carteiras, formando, com a turma, um grande grupo. Foi aí que desisti da Biologia para me dedicar à Filosofia e História de Educação, que me pareceram fascinantes. Atuei na área por vinte e cinco anos, na Faculdade Madre Gertrudes em Cachoeiro de Itapemirim. Apesar de não ter sido minha primeira opção, foi um bom curso; sem falsa modéstia, sei que fiz a diferença na vida de muita gente.

Cabe observar que, raramente usávamos apostilas. Tínhamos livros para quase todas as disciplinas. A biblioteca da Faculdade não ajudava muito, pois havia poucas obras e o que havia era, em sua maioria, em língua estrangeira. Alguns bons livros de Filosofia e uma bela coletânea de História da Educação eram em Francês, tornando o estudo bem mais difícil. O nosso segundo ano de Matemática foi com a Professora Myrta, e aí a coisa ficou mais séria. A última prova de Matemática de que me lembro tinha um problema que, depois de armada a solução, com todos seus parênteses e colchetes, mais parecia um vaso chinês. Quase um quebra-cabeças. Demoramos para achar todas as soluções e já passava muito das dez da noite, quando o porteiro veio avisar que ia embora porque não podia perder o último bonde: "Quando sair, é só bater a porta". Eu também não podia perder o último bonde da meia-noite, então entreguei a prova sem terminar e bati a porta.

Quando, um dia, questionamos a professora, ela nos explicou que aquele conteúdo, somado à Estatística, é que nos daria suporte para analise de dados nos resultados de pesquisas. Muitos anos depois, quando comecei a fazer pesquisa ,lembrei-me de Myrta, mas já havia máquinas que calculavam desvio padrão e todo o resto. Já as aulas de Sociologia eram um castigo. Além da dificuldade de comunicação de parte do professor gago, não tínhamos aqui uma boa livraria. Cantoni queria que lêssemos os clássicos da Sociologia, mas não havia como. A Livraria Acadêmica, uma portinha perto da Praça Oito, não tinha livros para pronta entrega, era preciso encomendar. Ainda assim fizemos um curso sobre Comte e Marx, mediante apostilas, algumas manuscritas pelo professor, e que tivemos que copiar, já que a Xerox ainda não existia. O interessante é que, na época, nossos livros de Filosofia, produzidos por autores católicos, não incluíam Marx, por ser autor listado no Index.

 

Um exemplar de "O Capital", em espanhol, editado em papel Bíblia, chegou a circular entre nós, mas, no meu caso, não valeu grande coisa porque eu não tinha maturidade suficiente para apreender alguma coisa de tal leitura. Nossas provas e notas eram sui generis. Apesar do tamanho da turma, (éramos só seis), Cantoni corrigia as provas e dava tratamento estatístico aos resultados, determinava o desvio padrão e estabelecia nossas notas. As minhas estavam sempre abaixo de zero: menos quatro, menos dois, e por aí vai. Quando ele se foi, quem entrou para substituí-lo ditava as lições até que veio outro professor que adotou um livro. Continuei sem saber Sociologia até que pude encontrar e comprar os autores que o Cantoni listara para mim. Aí, sim, comecei a aprender.

Quando os professores da USP retornaram, o Coimbrão foi embora com eles. Evidentemente em São Paulo ele ganharia muito mais do que nosso Estado poderia lhe pagar. E não tivemos mais notícias dele. Anos depois, soubemos que no final dos anos sessenta Cantoni fugira para Santiago, no Chile, onde chegou a dividir um apartamento com Fernando Henrique Cardoso e outros colegas de USP. Assim que puderam se reunir com as respectivas famílias, cada qual seguiu seu destino; FHC foi para a França e Cantoni resolveu ficar por lá mesmo. Quando a situação política do Chile piorou com Pinochet, Cantoni que nessa época já se curara da gagueira, fugiu para Cuba onde morreu de câncer...na garganta.

Quase me esqueci do Prof. Christiano Fraga e suas aulas de Filosofia da Educação, em nosso último ano. Ele detestava trabalhos muito longos, que chamava de bacalhoada, isto porque muita gente escrevia trechos grandes sem muita relação com o tema proposto, apenas para dar volume ao trabalho. Dizia "-Só li a primeira e a última folha e dei a nota". Também costumava se irritar quando eu andava pelo corredor arrastando as sandálias e com minhas muitas perguntas em aula. Um dia, contou uma lenda antiga sobre um certo demoninho que atentou tanto a Satanás que este lhe dera um caldeirãozinho de breu e um tridente para que ele montasse seu próprio empreendimento. E, olhando firme para mim, arrematava: "Acho que ele se matriculou neste curso de Pedagogia."

Apesar das dificuldades administrativas, da carência de material e, às vezes, da falta de professores, o curso seguia relativamente bem até que terminou o contrato do professor de Filosofia. Ao mesmo tempo, Jânio Quadros, que se elegera governador de São Paulo, chamou de volta os professores paulistas, fora de suas cadeiras há mais de dois anos. Ficamos quase à deriva. Já não teríamos o professor de Sociologia e, se o professor de Filosofia não fosse recontratado, ou se não houvesse um substituto, o curso de Pedagogia poderia ser encerrado e o sonho de Universidade estaria desfeito. A coisa chegou aos jornais que já cobravam providências. A Gazeta tinha uma coluna satírica chamada "Morcegando", onde havia referências críticas à situação em que nos encontrávamos. Resolvemos ir à luta e o diabo me soprou que deveria levar o jornal para alguma eventualidade.

Nossa primeira, e famosa, turma de Pedagogia nada mais era que um pequeno grupo de seis pessoas, mas fomos falar com o Secretário da Educação. Logo percebemos que não havia interesse na recontratação do professor de Filosofia. Falamos, falamos , falamos e ele desconversava. Gastamos todos os nossos argumentos e ... nada. O Secretário não se dera conta de que Filosofia era a disciplina que segurava o curso de Pedagogia e que o curso de Pedagogia é que ancorava a Universidade. Percebemos que era uma conversa inútil, já estávamos cansadas, a ponto de desistir. Então achei que era hora de mostrar o jornal. Felizmente, as alfinetadas do cronista de A Gazeta sensibilizaram o Sr. Secretário que, finalmente, entendeu o problema e o professor de Filosofia foi recontratado. Salvou-se a Universidade.

Salvara-se naquele momento, mas muito ainda precisava ser feito. Como não tínhamos o quarto ano da Licenciatura, o Estado nos deu bolsas de estudo para completar o curso no Rio. Embora fosse obrigação da Secretaria de Educação fazer uma comunicação formal, isto não ocorreu. Pessoas da minha família tentaram se comunicar comigo em Cachoeiro por telefone, sem conseguir, uma vez que os interurbanos eram feitos apenas por intermédio de posto telefônico. Uma parenta me mandou uma carta e imediatamente vim a Vitória. Na Secretaria de Educação, alguém, candidamente me informou que "fulana dissera" que eu não tinha interesse na bolsa porque iria me casar. "Mandamos outra pessoa no seu lugar"...

Finalmente, a Universidade se tornou Federal; e cresceu; e ampliou seus cursos. Voltei para fazer a Licenciatura. Finalmente terminaria meu curso. Voltei mais uma vez para o Mestrado e me assustei quando, na sala de aula, fui vaiada ao pedir licença para passar entre duas pessoas que conversavam. Algumas colegas se perguntavam "o que esta velha vem fazer aqui?" As pessoas jogavam, no chão, cascas de mexerica, copinhos de cafezinho, papel amassado, embora houvesse na sala um depósito de lixo. A turma do "Balão mágico" jogava lixo nas nossas cabeças quando passávamos debaixo de suas janelas. O que aconteceu com os grandes objetivos da Universidade? Em que desfiladeiros eles se perderam?

Agora, vamos soprar as velinhas do bolo, mas depois há que arregaçar as mangas, retomar a estrada e recomeçar a busca. Que se reencontre e retome o caminho da Ciência, da Ética, da Transcendência. Mais sessenta e cinco anos e talvez eu volte reencarnada, com meu caldeirãozinho de enxofre e meu tridente a tiracolo. Quem sabe? Mas hoje é festa. Vamos comemorar! Obs. Primeira turma de Pedagogia: Anna Maria Bernardes, Regina Helena Magalhães, João de Abreu Ribeiro, Enilda Lordello, Gercia Guimarães e Ailse Terezinha Cypreste.

 

Fonte: UFES: 65 anos – Escritos de Vitória, 33 – Secretaria de Cultura da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), 2019

Conselho Editorial: Adilson Vilaça, Ester Abreu Vieira de Oliveira, Francisco Aurélio Ribeiro, Elizete Terezinha Caser Rocha, Getúlio Marcos Pereira Neves

Organização e Revisão: Francisco Aurélio Ribeiro

Capa e Editoração: Douglas Ramalho

Impressão: Gráfica e Editora Formar

Foto Capa: David Protti

Foto contracapa: Acervo UFES

Imagens: Arquivos pessoais

Autora: Ailse Cypreste Romanelli

Pedagoga. Mestre em Educação. Pertence à AFEL.

Compilação: Walter de Aguiar Filho, janeiro/2020

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