Viagem ao Espírito Santo (1888) - Princesa Teresa da Baviera (PARTE V)
Santa Teresa – Petrópolis, quarta-feira, 29 de agosto.
Como ao amanhecer os animais de carga ainda não haviam chegado e não tínhamos conosco nem mesmo um pente, a toalete daquela manhã deixou tanto a desejar quanto a da noite anterior. Também não podíamos pensar em continuar a cavalgar, pois primeiro teríamos que ter certeza de que a bagagem realmente chegaria. Aí o lema era: esperar, paciente ou impacientemente.
Aproveitamos a parada forçada para conhecer um pouco de Santa Teresa. Isso foi rápido. A localidade, que pertence a Timbuí, ex-colônia de Santa Leopoldina, se situa entre montanhas de altura média, muito próximas umas das outras, bem perto do riacho Timbuí. Ela consiste de apenas alguns casebres feios com muros em volta, e de uma igrejinha que ainda não conta com sacerdote. As casinhas têm telhados cinza e, sem contar as janelas e as portas, lembram um pouco as casas dos camponeses do Tirol, de modo que daria até para pensar que estávamos lá. Bem de acordo com o costume italiano, a torre da igreja com o sino se encontra à parte; ali o sino não é tocado através de batidas, como é o nosso costume, mas puxando-se por uma corda a ele amarrada. Mais do que pelo povoado sem graça, eu me interessei por uma sarigueia, isto é, um gambá que, para alegria do dono da casa, havia caído numa ratoeira na noite anterior. O animal, um ladrão de galinhas, semelhante à fuinha, devia medir no mínimo 45 cm de comprimento sem a cauda, tinha pernas curtas e pelo ralo com grandes manchas de malhado preto e branco. Pela sua aparência, imaginei que se tratasse da Didelphys marsupialis L. var. typica Oldf Thom, ainda usando a pelagem do inverno.
Foi somente no decorrer da manhã que nossas três mulas de carga chegaram. Uma delas havia se perdido durante a noite na mata e podemos dizer que ficamos muito felizes por ela não ter se perdido para sempre, juntamente com nossos pertences. Por causa desse acidente perdemos meio dia de viagem. Em Santa Teresa formava-se nesse meio tempo a nossa caravana definitiva. O Sr. Meier, de Porto do Cachoeiro, que havia nos acompanhado até aqui, retornou para casa e, como guia, nos foi destinado um autêntico tropeiro. Entende-se por tropeiro o guia de tropas de cavalos que realizam o transporte de mercadorias pelo interior do país. Os tropeiros são pessoas honestas e confiáveis e assim devem ser, caso contrário não lhes seriam confiadas as preciosas cargas. Nos países de língua espanhola, seriam chamados de arrieros, na Grécia, de agogiatos. Cada tropeiro conta, por sua vez, com peões, que, montados a cavalo, vigiam cada uma das partes da tropa, sendo o tropeiro o líder de todos. Os cavalos mais fortes e mais bem tratados lhe pertencem – são seu capital – e com eles trabalha. Selas bem apropriadas para a finalidade, denominadas cangalhas, facilitam ao animal o transporte da carga. Distribuir corretamenente a carga para evitar que ela escorregue facilmente nessas más estradas, essa é a arte do bom tropeiro. Geralmente os tropeiros são mestiços que têm sangue de índio correndo nas veias. Mas o nosso guia é um tirolês italiano de nome Ferrari, um ex-caçador imperial e quando perguntei se ele teria se nacionalizado no Brasil(55), respondeu orgulhoso: “Austriaco sono nato, Austriaco voglio morrire(56)”. Os dois peões cavaleiros também são tiroleses italianos, mas se comunicam entre si em português. Interpelado por que todos os italianos entre si falavam o idioma estrangeiro, ele disse que isso vem de forma muito natural quando alguém ouve sempre esse idioma estrangeiro perto de si. Essa facilidade de deixar a língua materna para trás, segundo minhas observações, só acontece no caso de imigrantes cujo idioma está próximo do idioma do novo país. Desse modo, romanos não portugueses adaptam-se facilmente ao português no Brasil, ao passo que os imigrantes alemães conservam o uso de seu idioma por toda a vida em sua comunicação pessoal(57). De modo inverso, acontece com os imigrantes alemães nos Estados Unidos da América, pois quando se encontram em círculos alemães muitas vezes fazem uso do idioma inglês, muito próximo do próprio idioma, ao passo que as nacionalidades mais distantes da raça inglesa não largam tão facilmente o próprio idioma, conservando-o mais puro.
Os peões a cavalo nos deram motivo para estudos não somente no que se refere ao idioma falado, mas também quanto à sua socialização. Entre eles se encontra um peão, cuja consciência está pesada há alguns meses por causa de um assassinato. Na época da ocorrência, o assassino teve que evitar a região por algum tempo. Agora ele havia retornado sem ser molestado e fora aceito silenciosamente no seu círculo, o braço da justiça não o havia alcançado. Esse tipo de acontecimento é bastante comum por aqui. Nessas regiões pouco habitadas, nas quais, durante vários dias de viagem, não pode ser encontrado nenhum funcionário público, as pessoas não contam com a proteção do Estado e precisam arranjar-se sozinhas e por conta própria, da melhor maneira possível. Se, desse modo, entre duas pessoas se cria uma relação de hostilidade, cada parte afetada fará de tudo para tirar o inimigo de seu caminho, para não ser ele mesmo tirado do caminho. Esse tipo de ato é considerado no Brasil como legítima defesa e assim é julgado. No entanto, nada se ouve falar de assassinato por latrocínio nessa redondeza pouco civilizada. É assim que um estranho, que se encontra afastado das inimizades dos colonos entre si, pode viajar com toda a segurança, talvez com maior segurança ainda do que em muitos lugares da civilizada Europa.
Pouco tempo depois do meio-dia, nos aprumamos para sair de Santa Teresa e alcançar a casa de um morador tirolês. Isso levaria aproximadamente quatro horas e meia. Esse lugar pertence à parte da ex-colônia Santa Leopoldina denominada Petrópolis, e forma um agrupamento de povoados, estendendo-se ao longo de um vale relativamente largo que leva horas para ser percorrido. Nosso trecho de cavalgada ia às vezes montanha acima, outras, montanha abaixo. Às vezes era plano, nunca, porém, extremamente íngreme. Pequenos trechos de mata virgem se alternavam com roças, trechos desmatados e plantações de café, cujos pés estavam em plena florescência. Em ambos os lados havia elevações cobertas de mata e também diante de nós parecia que o vale era fechado por montanhas repletas dessa vegetação.
De vez em quando passávamos ao lado da cabana de um colono. Os moradores eram em sua maioria poloneses. O cabelo amarelado como palha, a tez clara, os malares salientes e os olhos claros e amorosos indicavam indubitavelmente o tipo eslavo. No meio do caminho tivemos a alegria de encontrar um conhecido da Baixa-Baviera, igualmente um colono assentado na região.
Na mata virgem havia árvores de altura gigantesca. Entre outros, ficamos conhecendo o pau d´alho (Gallesia Gorazema Moq.), um gigante da mata virgem que, como o nome indica, se caracteriza pelo forte cheiro de alho. Buganvílias cobriam as copas das árvores mais baixas com folhas involucrais de cor violeta. Ramos de cipó muito retorcidos, pertencentes ao mesmo tipo de planta que vimos ontem(58) e patas-de-vaca (Bauhinias), trepadeiras com tronco em forma de tira ondulada, como as que vimos pela primeira vez no Pará, saíam do solo e cresciam em direção à alta cúpula da mata virgem. Bem mais acima na encosta da montanha cresciam palmitos (Euterpe edulis Mart.) e açaizeiros. Estes se desenvolvem bem mesmo em terreno pobre e seus frutos e folhas encontram muita aplicação. Duas araras, cujos gritos já havíamos ouvido havia muito tempo pela floresta, voaram por cima de nossas cabeças. Nas bordas da mata, por debaixo dos arbustos, passou um belo pássaro que brilhava em azul-claro como uma pedra preciosa, possivelmente uma cotinga de colar (Cotinga cincta Kühl), uma das aves mais coloridas do Brasil. Ao cavalgarmos ao longo de um declive da floresta, ouvimos, de repente, um enorme estrondo e estalos bem acima de nós, à esquerda. Não sabíamos o que isso significava e ficamos atentos ao barulho. Parecia que uma parte da mata acima de nós havia se quebrado e escorregado e agora as gigantescas árvores estavam tombando, arrastando tudo consigo para o vale, com estrondos semelhantes a trovões. Um enorme tronco sem folhas e sem galhos ainda estava em posição ereta ao deslizar, depois cambaleou, caiu e foi jogado para as profundezas de ponta-cabeça, arrastando consigo todo o emaranhado de plantas que se encontrava no caminho. Foi uma cena sobremaneira espetacular e poderosa. Poucos minutos antes havíamos passado pelo trecho que agora se encontrava sob os escombros da vegetação. Mais tarde nos disseram que a visão que tivemos era consequência do desmatamento. Várias fileiras de árvores haviam sido semicortadas, mas somente a fileira de cima havia sido derrubada totalmente e foi essa que causou a queda das demais. Logo depois que vimos essa avalanche de árvores cair no vale, chegamos à meta prevista para hoje. Foi a primeira vez, durante a nossa viagem pelo Espírito Santo, que alcançamos o local do pernoite ainda em dia claro. No caminho até aqui, chegou um segundo guia, natural de Brandenburgo, que, aos sete anos, juntamente com os pais, havia trocado a pátria alemã pelo Brasil. Ele é um colono dos arredores, um exímio caçador, e usufrui, segundo ele, de uma renda aceitável, porém de forma alguma é rico.
A casa que nos foi destinada num vale solitário e sério, é bem isolada, afastada de qualquer outra moradia. O proprietário é um tirolês alemão, sua esposa é da Baixa Baviera e ambos descendem de círculos de camponeses muito simples. Nessa casa modesta que, no entanto, foi preparada carinhosamente pelos donos para que ficássemos confortáveis, nós mesmos providenciamos o jantar com as provisões que trouxemos. Estendemos as mantas, cobertores e todas as peças de roupa das quais podíamos prescindir para que secassem. É que na cavalgada até aqui passamos por um temporal e durante praticamente todas as quatro horas e meia apanhamos chuva forte. Finalmente ainda consegui me dedicar um pouco à botânica e pude trazer do campo que havia diante da casa, amostras de Dipteracanthus Schauerianus N. ab E., provavelmente da variedade nanus, que são pequenas e lindas acantáceas(59).
Para passarmos a noite foi-nos destinado um quarto espaçoso, sem forro, sem porta e que, em vez de janelas com vidro, tinha janelas de madeira. As camas eram autênticas camas do Tirol ou da Alta Baviera, com colchão de mola, e não sacos de palha de milho como as de Santa Teresa.
NOTAS
(55) Desde então, ou seja, desde o decreto do governo de 15 de dezembro de 1890, “todos os estrangeiros que em 15 de novembro de 1889 estavam residindo no Brasil serão considerados cidadãos brasileiros, exceto se, dentro de seis meses após a publicação deste decreto, declararem o contrário diante da câmara municipal”. Visto que Ferrari, pela profissão de viajante, talvez não tenha tido conhecimento desse decreto e, se tivesse, dificilmente teria tido tempo de prestar a declaração necessária, ele certamente deve ter sido naturalizado.
(56) “Como austríaco eu nasci, como austríaco quero morrer.”
(57) Nas colônias alemãs, a língua alemã se conserva até mesmo durante gerações.
(58) Tal como na nota da p. 314 do original.
(59) Uma linda planta ornamental.
PRODUÇÃO
@2013 by Arquivo Público do Estado do Espírito Santo
Coordenação Editorial
Cilmar Franceschetto
Revisão
Julio Bentivoglio
Apoio Técnico
Alexandre Alves Matias
Jória Motta Scolforo
Maria Dalva Pereira de Souza
Agradecimentos
André Malverdes, Levy Soares da Silva, Cláudio de Carvalho Xavier (Biblioteca Nacional), Adriana Pereira Campos, José Eustáquio Ribeiro, Adriana Jacobsen e a Hadumod Bussmann pelo fornecimento do diário de Maximiliano von Spiedel.
Editoração Eletrônica
Lima Bureau
Impressão e Acabamento
Dossi Editora Gráfica
Fonte: Viagem pelo Espírito Santo (1888): Viagem pelos trópicos brasileiros = Meine reise in den brasiliaischen tropen - Vitória: Arquivo Público do Estado do Espírito Santo, 2013
Autora: Princesa Teresa da Baviera
Tradução: Sara Baldus
Organização e notas: Júlio Bentivoglio
Compilação: Walter de Aguiar Filho, novembro/2020
Nas últimas duas décadas do século XX, o Espírito Santo foi palco de uma efervescência política negra com a criação de um conjunto de organizações
Ver ArtigoFlorentino Avidos construiu o prédio destinado à Biblioteca e ao Arquivo Público, na rua Pedro Palácios
Ver ArtigoUm pouco mais tarde, ouvimos a voz exótica de uma saracura, isto é, de um raleiro que poderia ser uma Aramides chiricote Vieill
Ver ArtigoBernardino Realino pode ser invocado como protetor de certas categorias de cidadãos, que julgam poder contar com poucos santos
Ver Artigo1) A Biblioteca Pública do Estado. Fundada em 16-6-1855, pelo Presidente da Província Dr. Sebastião Machado Nunes.
Ver Artigo