Vitória dos anos 1920 aos 50 - Por Luiz Buaiz com texto de Sandra Medeiros
Luiz Buaiz só tem lembranças boas dessa primeira década de sua vida, mas nos anos 20 Vitória padecia com problemas de saúde. Havia poucos médicos, e algumas áreas estavam mais desguarnecidas que outras. Psiquiatria era uma delas. Dermatologia era outra. De forma geral, havia problemas e na raiz de tudo estavam dificuldades econômicas.
A Santa Casa de Vitória – da qual Luiz Buaiz iria ser Provedor por três gestões – estava em funcionamento havia uma década quando ele nasceu. Inaugurada em 1910, fora construída no monte da Fazenda do Campinho, num terreno doado por Dona Maria de Oliveira Subtil à irmandade criada pelo donatário Vasco Fernandes Coutinho, no terceiro quartel do século XVI. Funcionando em um prédio bem menor que o atual e com a ajuda de abnegados, quando Luiz Buaiz nasceu a Santa Casa ainda não oferecia o atendimento ideal aos portadores de doenças venéreas e de distúrbios mentais, porque não podia abrigá-los como internos.
A Venereologia era um segmento da Medicina a que poucos médicos queriam se dedicar, embora Vitória, uma cidade portuária, necessitasse de grande atenção para evitar contágio e disseminação indiscriminada. Navios mercantes de várias regiões do mundo fundeavam aqui, e os marinheiros faziam incursões ao meretrício. Era uma época, como Luiz Buaiz assinalaria 90 anos depois, em que a iniciação sexual dos meninos acontecia nas casas de prostituição. Necessário, portanto, o controle. E este era feito da maneira possível, até mesmo com ajuda da força policial. Quando foi Chefe do Centro de Saúde, já médico atuante na sua cidade, o próprio Luiz Buaiz cuidou desse controle: semanalmente as prostitutas da cidade precisavam ir ao Centro de Saúde. Aquela que não fosse era buscada à força por um soldado do Quartel sediado no Parque Moscoso.
“A visitadora sanitária, Maria Pádua, e o guarda da Polícia Especial, que usava um boné vermelho, o Altamiro, iam buscar quem não ia à consulta de rotina.”
O Quartel, aliás, estava relativamente perto de uma das zonas de perigo: os números 120 e 130 da Rua General Osório, casas controladas por Juju. Era bem nas imediações do Cine Polytheama. Dali, seguindo em frente, numa linha reta, chegava-se ao Quartel. Mais em direção à Praça Independência, perto da Catedral, “na Duque de Caxias, tinha um rendez-vous, onde se levavam mulheres, mas escondido,” recorda ainda Luiz Buaiz. A Duque de Caxias fica atrás da Praça Oito, paralela à Avenida Jerônimo Monteiro, e lá funcionou, nos anos 60, o Farolito.
Além desses três lugares havia um, na Ilha do Príncipe, comandado por Maria Tomba Homem. E a Volta de Caratoíra, no caminho para o bairro Santo Antônio, onde estava instalado o principal reduto de prostituição. Era lá que Aurora Gorda, espécie de gerente, ganhava a vida com as suas meninas, que atendiam, numa ampla casa de 40 quartos, a classe média de Vitória. Na Volta de Caratoíra funcionavam várias casas que ganharam notoriedade, entre elas a Casa Branca, voltada aos frequentadores da elite.
O tratamento médico semanal a que eram submetidas essas mulheres era doloroso e praticamente inócuo, no entanto era o único recurso de que dispunha a Medicina da época. Cada uma das 15 – às vezes 20 – mulheres que havia em cada casa recebia uma injeção de bismuto e arsênico para combater a sífilis, então a doença sexualmente transmissível mais grave. “Sífilis pode levar à paralisia dos membros inferiores e, geralmente, ataca o cérebro, o sistema nervoso. Pode chegar ainda ao coração. Não eram raros os casos em Vitória. Era preciso quebrar a cadeia de contágio venéreo, por isso o controle severo e permanente”, explica Dr. Luiz.
Essas mulheres, na maioria, chegavam a Vitória vindo do interior. Trabalhavam numa clandestinidade consentida. “Antigamente era um estigma muito grande perder a virgindade. Essas mulheres chegavam aqui nessas condições e na maioria das vezes não encontravam outra forma de sustento. O homem não queria se casar com a moça que perdia a virgindade. Alguns casamentos aconteciam, mas só depois que os pais da moça pediam ajuda numa delegacia, o que por si só já era uma vergonha.”
Os marinheiros dos navios que fundeavam na costa de Vitória chegavam ao Porto dos Padres, ao Cais do Imperador, a bordo de botes conduzidos pelos catraieiros. Desciam e, se não ficavam pelo Centro, ou no Parque Moscoso, pegavam o bonde e iam para Caratoíra. Descer diretamente no Cais do Porto só foi possível a partir de 1940, depois que a Baía de Vitória foi dragada para ficar mais profunda, permitindo a atracação dos navios. Até então as grandes embarcações ficavam afastadas da terra.
Embarcar para viagem, desembarcar na chegada, desembarcar mercadorias, tudo isso envolvia operações de risco, a partir de certo tempo controladas por uma única pessoa: o comerciante Antenor Guimarães. “O trapiche era controlado por ele, que trazia as mercadorias do navio até o cais e enriqueceu com isso.” Para embarcar, ia-se de bote até o navio, e subia-se por uma espécie de escada de cordas grossas. Aconteciam acidentes, às vezes. As cenas de embarque, com uma multidão observando do trapiche, para dizer adeus ou por curiosidade, eram cinematográficas.
Essa foi uma época em que Vitória tinha apenas a Avenida Jerônimo Monteiro, que a partir de certa altura era a Capechaba, e ao longo da qual o comércio tinha acesso direto ao mar. Toda casa comercial tinha atracadouro, se servia de um pequeno cais. E os trapiches eram três: Irmãos Vivacqua, Antenor Guimarães (o maior deles, aquele a que se refere Luiz Buaiz) e Mesquita e Companhia. Na direção da Praça Independência (hoje Costa Pereira) e dando para o mar, funcionava o Éden Parque, espaço semicoberto que comportava em torno de 150 pessoas, onde aconteciam, entre outras festividades, os bailes de Carnaval, com mascarados que se misturavam a homens de terno e gravata. Foi o primeiro lugar a exibir um filme, aqui.
Mas o risco de transmissão de doenças venéreas era só um dos muitos problemas de saúde que afligiam a capital. Vitória também não contava com um lugar para receber e internar os alienados, como eram chamados aqueles com distúrbios mentais. A Santa Casa fora a primeira a acolhê-los, até que, em 1889, o novo administrador percebeu a situação deplorável em que se encontravam e fechou a seção.
Um asilo começara a ser construído na Praia de Bento Ferreira, no final do século XIX, mas a queda do preço do café – base da economia espírito-santense – no mercado internacional levara à interrupção das obras. Os loucos primeiro foram mandados de navio para o Rio de Janeiro. Depois passaram a ser recolhidos ao Quartel de Polícia, onde hoje funciona uma representação do Serviço Social do Comércio (Sesc). Ali era o Largo do Campinho e hoje é a Praça Misael Pena.
Mudanças no setor de Saúde aconteceriam vagarosa e pontualmente. Exatamente em 1921, ano de nascimento daquele que viria a ser um dos maiores médicos de toda a história do Espírito Santo, a situação ainda era preocupante. Os moradores se queixavam do descontrole do grande número de mendigos e alienados espalhados pelas ruas. Os alienados ora estavam recolhidos no Quartel, ora estavam a vagar pela cidade, causando confusões. Crescia a cada ano o número de pessoas nessas condições. Os mais humildes, que aqui chegavam dos estados vizinhos, atraídos por perspectivas de trabalho que não se concretizavam, logo se transformavam em pedintes. E, junto com os alienados – que às vezes podiam sair das celas e flanar pelas ruas – causavam distúrbios, incomodando a cidade pacata e simples.
Em 1921 Nestor Gomes firma um contrato com o Asylo Deus, Christo e Caridade, de Cachoeiro de Itapemirim, para enviar à instituição os alienados que até então só tinham um destino: permanecer encarcerados. Em 14 de julho desse mesmo ano foi inaugurado um pavilhão especial naquele asilo e para lá Vitória enviou os primeiros seis internos.
Pouco antes que o ano de 1921 terminasse, a capital, Victoria, ganharia uma novidade. No dia 30 de dezembro, o tenente-coronel Archimimo Martins de Mattos (hoje nome de rua em Santo Antônio) criou, na Polícia Militar, uma Secção de Bombeiros, que apagava incêndios e ajudava a recolher aqueles que perambulavam sem rumo.
Relatório do Presidente de Província, Florentino Avidos, datado de 1928, sete anos depois, traz, em sua página 55, uma informação que mostra a atração que o Espírito Santo sempre despertou: “Em Victoria, não há propriamente mendigos aqui vinculados pelos laços de família ou de nascimento... O número dos que vivem da caridade pública accentuou-se com a entrada de elementos estranhos, vindos attraídos pela fama de prosperidade que o nosso Estado tem desfructado nesses últimos tempos”.
Trem com baldeação e avião que pousava na água
Mas antes disso, quando Luiz Buaiz nasceu, havia pouco mais de um ano que o coronel Nestor Gomes substituíra Bernardino Monteiro na presidência da Província e estava decidido a deixar sua marca no Governo. Nestor Gomes era presbiteriano e foi o primeiro representante não católico à frente do governo estadual. Ele queria modernizar a capital, promover o crescimento e para isso tentava também levar o progresso ao interior do estado. Em agosto de 1921 andava às voltas com o Rio Itaúnas, que banha boa parte do norte do Estado. Queria fazê-lo navegável na maior extensão possível. Cuidava dos procedimentos necessários para a abertura do canal que o ligaria ao Porto de São Mateus, importante entreposto de escoamento da produção agrícola da região Norte, a maior parte proveniente da Colônia Germânica. O trânsito fluvial era indispensável numa época em que pouco havia de estradas cortando o Espírito Santo. Eram as ferrovias que garantiam o intercâmbio, possibilitando as viagens e ajudando no escoamento da produção. Interligavam o Sul do estado, como Itapemirim a Villa do Alegre, a Castelo e a Victoria do Rio Pardo, ou ligavam o Espírito Santo ao Rio de Janeiro.
Da Estação de Eugênio Renê, em Porto das Argolas, a Estrada de Ferro Sul do Espírito Santo partia em direção a Cachoeiro de Itapemirim, passando por Vianna, Santa Isabel e Mathilde, entroncava-se com a Itapemirim-Allegre-Castelo e prosseguia até a divisa com Minas Gerais, em Santa Luzia do Carangola. O trecho Estação de Itabapoana-Carangola era sempre movimentado. Levava capixabas a Minas Gerais e os trazia de volta, mas a quantidade de mineiros que migrava para o Espírito Santo era sempre maior que o número daqueles que daqui saíam. Ainda estava em estudos a criação da estrada que, numa rota bem diferente, partiria de São Matheus dos Aymorés, norte do Espírito Santo, até Minas Gerais, e apressaria o fim dos índios botocudos.
A Estação de São Carlos, da Estrada de Ferro Vitória-Diamantina (empresa com sede em Paris até 1910), também ficava em Argolas e também ligava a capital a Minas Gerais, percorrendo 783 quilômetros. O trem saía da estação e, entre as muitas propriedades que cortava, estava a Fazenda Modelo Sapucaya, tocada por colonos alemães e portugueses que, além de café, comum em terras capixabas plantaram trigo, aveia, algodão e arroz, culturas exóticas no Espírito Santo e que por isso mesmo atraíam a atenção dos passageiros.
Para ir ao Rio de Janeiro, capital federal, havia duas possibilidades: viajar de trem ou, a partir de 1939, de hidroavião. De carro era praticamente inviável. O acesso por rodovia era difícil, com trechos interrompidos, e a estrada era pouco melhor que uma rota de tropeiros. Um itinerário arduamente vencido pelos ônibus, até que o interventor Punaro Bley desse início, nos anos 1930, à construção da rodovia.
As viagens de trem eram corriqueiras. O embarque acontecia na Estação Leopoldina. Eram 22 horas de viagem de Vitória ao Rio. O trem saía da capital às 10 da manhã e chegava ao Rio às 8 da manhã do dia seguinte. Uma viagem que Luiz Buaiz fez quando foi estudar no Colégio São José. E que fez também em 1936, quando a família foi prestigiar a formatura do médico Benjamin. Dessa vez, no entanto, foi preciso fazer baldeação no meio do caminho para chegar a Belo Horizonte. Benjamin foi o único dos irmãos que não estudou no Rio. Um exame de rotina apontou um problema pulmonar e como a capital mineira oferecia o melhor clima para esses casos, ele foi para lá.
Para ir à capital federal de avião, o embarque era em Santo Antônio. No Cais do Avião, pequeno hidroporto com flutuador, pousavam aviões da Panair, da Cruzeiro e da Pan América. A Panair do Brasil, que foi a maior companhia aérea brasileira até 1965 e que, na rota Brasil-Europa servia os passageiros com talheres de prata e copos de cristal, inseriu Vitória como escala da rota intercontinental Nova Iorque-Buenos Aires. Os voos aconteciam de duas a três vezes por semana, e a viagem normal durava de três horas e meia a quatro horas.
Só em 1942 começaria a ser construído o aeroporto da capital, num terreno que era do Aeroclube do Espírito Santo. Um ano depois, em plena Segunda Guerra Mundial, ele entraria em operação e em 1946 já tinha pista de 1.500 metros por 45 de largura. Na época o lugar era um areal com muitas goiabeiras e pitangueiras. Numa alusão ao passado, hoje ele é o Aeroporto de Goiabeiras.
Quem viveu na Victoria dos anos 30 viu hidroaviões e dirigíveis sobrevoarem a cidade. Cartões postais e páginas de revistas locais comprovam isso. Luiz Buaiz tem vívida na memória a imagem de um zepelim flutuando nos céus, antes da Segunda Guerra, e também não esquece as fotos que viu, como a que ilustrou uma das capas da Revista Chanaan, em 1936, atestando o fato.
PRODUÇÃO
Copyright by © Luiz Buaiz – 2012
Coordenação do Projeto: Angela Buaiz
Captação de Recursos: ABZ Projetos
Texto e Edição: Sandra Medeiros
Colaboraram nas entrevistas:
Leonardo Quarto
Angela Buaiz
Ruth Vieira Gabriel
Revisão: Herbert Farias
Projeto e Edição Gráfica: Sandra Medeiros
Editoração Eletrônica: Rafael Teixeira e Sandra Medeiros
Digitalização: Shan Med
Tratamento de Imagens: TrioStudio; Shan Med
Fonte: Luiz Buaiz, biografia de um homem incomum – Vitória, ES – 2012.
Autora: Sandra Medeiros
Compilação: Walter de Aguiar Filho, novembro/2020
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