A Baía do Espírito Santo, Vila da Vitória e a agricultura - Por Saint-Hilaire, 1818
Moderníssimos autores consideraram as águas de Vitória como pertencentes à embocadura de um grande rio, que, segundo dizem, se chamara Rio do Espírito Santo e teria sua nascente nas montanhas vizinhas de Minas Gerais. Mas, realmente, não é assim. Nenhum rio, no sentido que damos a esta palavra, tem o nome de Espírito Santo; a extensão de água assim designada é uma baía verdadeira, como a do Rio de Janeiro ou o Recôncavo da Cidade da Bahia.
A entrada da Baía da Vitória é bastante larga e estende-se desde o Monte Moreno, do lado sul, até a Ponta de Piraé, do lado norte; a parte setentrional tem pouca profundidade; os navios passam por um canal, apenas compreendido entre o Moreno e a ilhota muito plana chamada Ilha do Boi, perto da qual se encontram outras ilhas de diferentes tamanhos. Além da embocadura, a baía se alarga e forma uma bacia irregular, ladeada ao sul pelos Morros de Jaboruna, onde se situa a casa de Santinhos e ao Norte pela parte oriental da grande ilha em que a capital da província se instalou.
Umas ilhas menores, cobertas de mato, surgem dessa bacia cercada de todos os lados por morros sempre muito pitorescos, e revestidas de florestas, pastagens e plantas cultivadas. A grande ilha mencionada teria quatro léguas de circunferência, alongava-se por quase toda a extensão da baía e era cultivada em parte.
Ao norte, separa-se do continente apenas por um braço de mar muitíssimo estreito e, vista de certos pontos, confunde-se com a terra firme. Esta tem tido comunicação com a ilha, através de uma ponte de madeira sobre o braço do mar, no lugar chamado Passagem de Maroípe. Outrora, era a grande ilha chamada Ilha de Duarte Lemos; hoje não tem mais nome geral, mas cada uma de suas partes tem denominação particular; assim é que se dá o nome de Jucutacoara, de que já falei algo, à fazenda construída pouco abaixado dela, nos montes vizinhos. A oeste da larga bacia que acima citei, a baía se estreita e só deixa um canal às embarcações. Este canal de pouca extensão, é defendido ao norte pelo pequeno Forte de São João, erguido na grande ilha, e ao sul é ladeado por um rochedo quase nu e a pique, o qual tem o nome de Pão-de-Açúcar.
Além da embocadura interior que acabo de descrever, a baía, alargando-se de novo, forma belo canal alongado, que se estende um pouco além da Ilha de Duarte Lemos, e termina em uma grande angra, onde aparece lama nas marés baixas e ao sul da qual deságua o Rio Santa Maria.
É do lado norte desse canal e mais ao centro que surge a Vila da Vitória. A Ilha de Penedo, situada na fronteira à Vila, não é inteiramente cercada pelas águas da Baía; as que a banham pelo sul são de dois regatos, um dos quais é o Arabiri e entre os quais se acha o Paul. A oeste da Ilha de Penedo e na mesma direção vê-se outra, de tamanho menos considerável, chamada Ilha do Príncipe, onde se construiu um depósito de pólvora. Muitos rios se lançam na baía; contudo, excetuado o Santa Maria, têm pouca importância. A Vila da Vitória, como vimos, foi construída a sudoeste da grande ilha chamada outrora “Duarte Lemos”, e do lado mais ocidental da baía; ocupada o dorso de uma colina pouco elevada; apoiada ao monte de forma variada, é muito pitoresca e coberta de florestas, entre as quais se mostram rochedos a nu. Do outro lado do canal, o terreno não é montanhoso; vêem-se, entretanto, em frente à cidade, algumas colinas onde se percebem rochedos negros entre árvores de escassa vegetação. Por fim, a distância, divisa-se, a oeste, a cordilheira que se prolonga paralelamente ao mar (Serra do Mar).
As ruas de Vitória são calçadas, porém mal; tem pouca largura, não apresentando qualquer regularidade.
Aqui, entretanto, não se vêem casas abandonadas ou semi-abandonadas, como na maioria das cidades de Minas Gerais. Dedicados à agricultura, ou a um comércio regularmente estabelecido, os habitantes da Vila da Vitória não estão sujeitos aos mesmos reveses dos cavadores de ouro e não tem motivo para abandonar sua terra natal. Cuidam bem de preparar e embelezar suas casas. Considerável número delas tem um ou dois andares. Algumas tem janelas com vidraças e lindas varandas trabalhadas na Europa. A Vila da Vitória não tem cais; ora as casas se estendem até a baía, ora se vê, na praia, terreno sem construção, que tem sido reservado para embarque de mercadorias. A cidade também é privada de outro tipo de ornato: não possui, por assim dizer, qualquer praça pública, pois a existente diante do palácio é muito pequena, e com muita condescendência é que se chama de praça a encruzilhada enlameada que se prolonga da Igreja de Nossa Senhora da Conceição da Praia até a praia. Há, na Vila da Vitória, algumas fontes públicas, que também não concorrem para embelezar a cidade, mas, pelo menos, fornecem aos habitantes água de excelente qualidade.
Contam-se, na Capital do Espírito Santo, nove igrejas, incluindo-se a dos mosteiros. A igreja paroquial é muito grande, muito limpa e nada apresenta que desperte curiosidade. Desde a expulsão dos jesuítas, os conventos são apenas em número de dois, o das Carmelitas e o de São Francisco, edificados fora ou quase fora da cidade. O Convento de São Francisco, que abrange o panorama de uma parte da baía e as campinas vizinhas, nada tem de notável, salvo sua localização. Quando de minha viagem, havia nele dois religiosos; contudo, embora pequeno, o edifício poderia receber maior número deles; aliás, as receitas dessa casa são pouco ponderáveis.
O Convento do Carmo pareceu-me igual ao dos franciscanos; mas a administração ocupou o pavimento térreo para fazer o quartel dos soldados pedestres. A igreja desse convento é muito limpa e bastante clara, tal como todas do Brasil; é de contristar que a tenham enfeado, colocando em seus altares as imagens mais feias que já vi. Da comunidade do Carmo depende uma belíssima fazenda; mas essa propriedade, disseram-me, é desde longo tempo muito mal administrada; os monges, animados do mesmo espírito da maioria dos brasileiros, só pensam em fazer dinheiro de tudo, destroem as matas e apenas deixarão a seus sucessores terras inúteis.
Na Vila da Vitória há um hospital militar e um pequeno hospital civil. Quando de minha viagem, planejara-se reuni-los, desejando-se instalá-los sobre o morro que se eleva a pequena distância da cidade, bem no extremo ocidental da ilha. Seria impossível escolher posição mais favorável, pois os ventos de nordeste desta região é que afastarão, precisamente, da cidade, as emanações nocivas.
Em 1818, os edifícios do projetado hospital já se erguiam a alguns pés do chão, parecendo que iriam ser dignos da nota.
O mais belo adorno da capital do Espírito Santo é, sem contestação, o antigo convento dos jesuítas, hoje Palácio do Governador, situado no extremo da cidade. Edifício de um andar, é quase quadrado, tendo num dos lados visita para o mar, e a fachada voltada para a cidade, dando sobre pequena praça, em frente a uma igreja, a da Misericórdia; essa fachada tem cerca de cinqüenta pés de comprimento, e cada um dos dois lados perto de 60. Diante da parte que dá para o mar, há uma espécie de terraço coberto de grama ao qual se chegava, vindo da baía, por uma escadaria ladeada por duas filas de palmeiras.
Um Artocarpus e uma Manjifera, plantados à direita da escadaria e bem entrelaçados, contrastam com a simplicidade elegante das palmeiras, por sua espessa folhagem e por seus numerosos ramos. A igreja do palácio, ou dos jesuítas, tem a fachada compreendida na do próprio palácio. Essa igreja é grande, mas nada mostra de notável.
Nela foi sepultado José de Anchieta, o benfeitor mais ardente e generoso dos Índios do Brasil; morreu em 9 de junho de 1597, na Aldeia de Reritiba.
A Vila da Vitória é cabeça de comarca de uma paróquia muito considerável e o centro da jurisdição do Ouvidor encarregado de distribuir justiça em toda a província. Quanto ao termo da Vila da Vitória, em particular, é submetido à autoridade de dois juízes ordinários; esses magistrados, como de costume, são escolhidos entre os habitantes da região; mas a dependência em que os governadores tem por hábito mantê-los impede que os homens mais notáveis aceitem o cargo. Aqui, como em outras partes, a duração das funções de juízes ordinários não vai além de um ano; as eleições, na verdade, só se processam de três em três anos, mas elegem-se seis juízes ao mesmo tempo. Além dos juízes ordinário, é eleito na Vila da Vitória, um juiz dos órfãos, que permanece em exercício durante os três anos.
A população de Vitória subia, em 1818, a 4.245 habitantes, dos quais cerca de 1/3 de escravos e pouco mais de 1/4 de brancos.
Um quadro estatístico no meu Viagem às Nascentes do Rio São Francisco mostrará com detalhes qual é aqui a proporção das diferentes raças entre si, e qual é, nas diversas raças, a proporção dos indivíduos por diferentes idades. Tudo que foi dito até agora prova que a Vila da Vitória é situada vantajosamente para o comércio; todavia, os negociantes desta vila apenas imperfeitamente tiram vantagens de sua favorável posição. Fragatas com pequena carga podem entrar na Baía do Espírito Santo; mas nunca se vêem embarcações mais notáveis do que lanchas e sumacas.
Se, de resto, os moradores desta região se limitam à mais insignificante cabotagem, deve-se isto em parte, pode-se dizer, ao insucesso da única expedição que fizeram nestes últimos tempos.
O Governador Tovar, usando seu tirânico poder, forçara os principais proprietários a consignarem açúcar a uma firma de Lisboa, de que se suspeitou fosse ele sócio. Nada se recebeu do que se mandou e a lembrança desse infausto negócio ainda está presente no espírito dos comerciantes pouco esclarecidos da Vila da Vitória, contribuindo para impedir que saiam da rotina.
Por menos que tenham possibilidade, fazem anualmente viagem à Bahia, ou ao Rio de Janeiro; abastecem-se e procuram sortir bem suas lojas. Não se estendem, além disso, suas idéias. Há, em geral, uma diferença de 30 a 50% entre os preços do Rio de Janeiro e os da Vila da Vitória.
Ferro em barra e instrumentos agrícolas são os artigos que encontram aqui mais fácil consumo. O que esta região fornece à Bahia é milho, arroz e feijão; remetem-se os mesmos gêneros ao Rio de Janeiro ou para a Bahia, transportando-os mesmo alguns em embarcações que lhes pertencem; mas os colonos menos abastados vendem o produto da sua colheita aos negociantes da região.
Tais vendas se fazem a dinheiro, ou como em Campos; o agricultor toma a crédito, na casa do comerciante, as mercadorias de que necessita, e, após, dá quitação com o produto de suas colheitas. É muito raro virem à Vila da Vitória negociantes de fora. Pouco antes da minha viagem, entrou na Baía desta vila um navio de Lisboa, o que foi considerado acontecimento extraordinário. O proprietário desse navio tinha vendido no Rio de Janeiro uma partida de suas mercadorias, pelo que empreendeu a marcha de volta, vindo em seguida à Vila da Vitória; depois de se haver desfeito do restante de sua carga, que constava principalmente de enxadas, machadinhas e outros instrumentos de ferro, completou seu lastro com açúcar e algodão. É fácil observar que a população da Província do Espírito Santo é fraca porque tais operações são extremamente morosas.
Não há na Vila da Vitória qualquer negócio público.
O estorvo de atravessar a água faz com que, dos arredores, se tragam à vila poucos legumes e outras provisões; também as pessoas que nada tem senão choças, cuidam apenas dos alimentos indispensáveis à vida.
Em verdade, abatem-se bovinos duas vezes por semana na Vila da Vitória, mas isto não se faz em maior número por ser desnecessário ao consumo dos moradores.
Depois de haver dado uma idéia da situação do comércio na vila capital da Província do Espírito Santo, seria útil tornar conhecida a maneira de se cultivarem nessa região as plantas que fazem sua riqueza.
Para colher informações exatas sobre as práticas em uso entre colonos, eu não poderia estar melhor colocado do que em casa do Capitão-mor Francisco Pinto, homem inteligente e bom agricultor. Herdeiro do conhecimento dos métodos que os jesuítas introduziram na administração de suas terras, o Senhor Pinto tratava seus negros com humanidade.
Tinha o cuidado de uni-los e, por sábias medidas, conservava as crianças junto de suas mães.
Enquanto seguidamente seus vizinhos se punham com esmero a fazer, a qualquer preço, um pouco de açúcar no máximo, o Senhor Pinto cultivava o algodão, assim como a cana, e por sua parte, podia dar trabalho a seus escravos sem os forçar, no campo, sob um sol requeimante.
Até transcorrer um ano, cada mãe ficava em casa tecendo algodão e amamentando o filho recém-nascido.
Passo aos pormenores que havia anunciado. Os agricultores da Vila da Vitória crêem muito na influência da lua. Têm o cuidado de plantar no minguante todos os vegetais de raiz alimentícia, como os carás (Discorea), as batatas, a mandioca, e, ao contrário, plantam durante a lua nova a cana-de-açúcar, o milho, o arroz, o feijão.
Têm, igualmente, o cuidado de fazer as derrubadas no minguante e imaginam que, feitas em outra época, serão bem cedo atacadas pelos vermes, não tardando a apodrecer. O senhor Pinto me disse que, tão logo se pôs à frente de sua propriedade, começou a discutir essas afirmativas de preconceitos, mas a experiência o havia forçado a voltar aos costumes comuns.
Quer tenha sido um campo antigamente cultivado, quer a cultura suceda imediatamente à queimada de uma mata virgem, tem-se tido, sempre, a preocupação de aprestar o terreno antes de nele plantar feijão ou milho, e soube-se que esses vegetais davam pouco quando se deixava de preparar o solo. Quanto à mandioca, pode-se plantá-la em terreno virgem, sem fazer qualquer preparo da terra. Durante minha segunda estada, no mês de novembro, em casa do Capitão-mor Pinto, vi negros plantarem mandioca num terreno antes coberto de capoeiras.
Após a primeira colheita, que, conforme o costume, foi feita ao termo de 18 meses, deviam plantar mandioca no mesmo terreno. Pensavam, após isso, plantar, duas vezes em seguida, milho e feijão, com cana, que aqui dá três cortes. Finalmente, quando a terra haja assim produzido, sem ser adubada, durante nove anos consecutivos, deixam-na descansar por cinco anos, para fazerem nela, a seguir novas plantações.
Os agricultores que não possuem terreno muito extenso, apenas dão as suas terras dois anos de descanso. Os pobres, mesmo, não deixam as suas repousarem, mas sente-se que acabarão por exauri-las. Dividem suas propriedades em três partes, todas elas plantadas de algodão e, como esse vegetal produz três anos seguidos, ajeitam as coisas de modo a ter sempre duas partes em novedio e uma terceira recentemente plantada, na qual fazem vir, com o algodão, feijão e milho, plantas que progridem mal no meio do algodão, cujas raízes se tornam robustas.
Se o algodão não entrava no afolhamento a que o Capitão-mor submetia o campo em que vi seus escravos plantarem mandioca, era porque, durante grande número de anos, ficara sem cultivo essa parte de sua propriedade e os terrenos novos não convém muito aos algodões. Após os cinco anos de descanso que deviam, conforme disse, seguir-se aos nove anos de produção, plantar-se-a algodão e essa cultura será substituída por duas plantações de cana, de 3 anos cada qual.
O arroz, a mandioca, a cana e o algodão são as plantas com que mais se ocupam os colonos da Província do Espírito Santo, em especial os da Vila da Vitória.
Plantam-se ou semeiam-se os caroços de algodão após as primeiras chuvas, isto é, nos meses de setembro, outubro e novembro, dependendo de ser a estação das águas mais ou menos prolongada.
Os agricultores experientes semeiam o algodão em vez de plantá-lo porque, por esse sistema, os brotos adquirem maior robustez quando nascem de grãos postos juntos na mesma cova e porque, no meio de grande número de pés, sempre alguns escapam aos danos das formigas.
Quando se segue esse método, limpa-se a terra ao cabo de três meses, e então se arrancam os pés supérfluos. Os que preferem plantar o algodão, fazem covas e lançam em cada uma, um punhado de sementes.
Quanto mais fértil for o terreno, mais ficam afastadas as covas, porque, nas terras boas, o algodão se expande mais; entretanto, em geral, deixa-se entre as cavidades uma distancia de seis palmos.
No mês de janeiro, dá-se um reparo com enxada, à terra e apenas se conservam dois ou três algodoeiros que nascem em cada cavidade. A colheita vai do mês de junho até o de outubro. Como em Minas, deixam-se abrir as cápsulas nas hastes e delas se extraem flocos de algodão. Quebram-nos imediatamente após a colheita, no chão; ou no mês de janeiro, quando se prepara a terra. Os mesmos algodoeiros produzem dois ou três anos seguidos. O algodão do Espírito Santo, de qualidade muito inferior ao de Minas Novas, vendia-se, quase na época da minha viagem, a 1120 réis a arroba, com sementes. Para separar o algodão do caroço, usa-se aqui uma pequena máquina de dois cilindros, usada também na Província de Minas Gerais e da qual fiz a descrição em outra parte.
Uma arroba de algodão com caroço dá 8 libras de algodão lavado. Duas mulheres, trabalhando durante um dia, podem separar uma arroba dos caroços e por isso se apuram 240 réis.
Os habitantes do Espírito Santo não só vendem quantidades consideráveis de algodão em rama, como também remetem para o Rio de Janeiro muito em tecido.
Também se faz, na Província do Espírito Santo, um tecido grosso, branco, de algodão, semelhante ao de Minas Gerais; uma parte desse tecido é despachado para a Capital do Brasil, e para os outros portos; o resto serve na região para fazer as camisas e as calças dos escravos. Os proprietários que tem certo recurso mandam fabricar tecido mais fino. Algumas pessoas plantavam aqui o algodão de fibra amarela; no entanto, como não procuravam seus produtos, hoje cultivam-no somente para misturá-lo em uma espécie de tecido encorpado e sólido que os agricultores fabricam para o uso de sua família e que não sai da região.
Pode-se, junto, com o algodão, plantar milho e feijão, mas, somente no primeiro ano; mais tarde, esses vegetais seriam absorvidos pelos novedios vigorosos dos algodoeiros, o que não ocorre entre as socas de cana-de-açúcar, que se elevam sem estender-se.
Sacham-se o feijão e o milho um mês depois de serem plantados e, fazendo-se essa operação deve-se ter o cuidado de chegar terra aos brotos a fim de preservá-los dos ventos, que nesta região são freqüentemente muito violentos.
Antes do governo do Marquês do Lavradio, o arroz, sobrecarregado de impostos, era pouco cultivado na Província do Rio de Janeiro e parece que o mesmo acontecia no norte do Brasil, porque em 1768 o Maranhão só exportava 283 arrobas desse cereal, ao passo que atualmente tem exportado 284.721 arrobas. O arroz é igualmente, na Província do Espírito Santo, artigo de exportação. Não se cultiva aqui, como em Minas, a variedade guarnecida de pendão; das duas variedades que se conhecem nesta região, todavia, uma tem o grão de cor branca e é plantada de modo geral, a outra tem o grão vermelho e trás o nome de arroz vermelho; vende-se com dificuldade e é usada apenas para enfermos.
Essas duas variedades se cultivaram unicamente em terrenos alagadiços, mas aqui não é mister dispensar aos arrozais cuidados como no Piemonte e nas Índias; fazem-se com enxada buracos pouco fundos, separados de cerca de palmo e meio, e neles se lança um punhado de sementes. É preciso defender as plantas até que os grãos brotem, por haver uma turba de passarinhos que os comem, particularmente os das espécies conhecidas na região pelos nomes de guaxi ou icovaso, paparroz e grumará. As pessoas que não tem recursos pecuniários para resguardar seus campos, atiram as sementes em covas mais fundas, feitas com piquete, onde os pássaros tem dificuldade em ir buscá-los; mas, logo que se adotou esse método, os arrozais nasceram muito próximos e se prejudicaram mutuamente.
É no mês de setembro, um pouco antes da estação das águas, que se planta o arroz; é sachado quase mês e meio depois, e a colheita se faz em fevereiro. Neste trabalho, corta-se a haste logo abaixo da espiga, usando uma faca ou um pedaço de pau cortante, e se abandona a palha. As espigas são batidas com longas varas; em seguida, expõe-se o grão ao sol durante um dia ou meio dia e ele é pilado. Tem-se o cuidado de não deixar o grão muito tempo ao sol porque, secando-se mais do que o necessário, quebra-se na pilagem. De outro modo, para verificar o grau preciso de secagem, toma-se pequena quantidade dele, que se põe numa mesa; tem-se o costume, bastante excêntrico, de passar-lhe por cima um sapato e quando, por essa operação, os envoltórios se separam sem dificuldade, começa-se a pilar. Em um dia, uma negra pode, com o pilão, separar dos invólucros um alqueire de arroz e, um negro, a quantidade de um alqueire e meio a dois alqueires. Pagam-se 160 réis por alqueire, quando não se empregam escravos próprios. O Capitão-mor Francisco Pinto construíra uma espécie de moinho que movimentava vários pilões ao mesmo tempo; mas obrigado, por falta de uma cascata, a servir-se de bois para por a máquina em movimento, acabou por achar mais econômico fazer pilar seu arroz por suas escravas. Dava-lhes por empreitada pilar um alqueire por dia; costumeiramente terminavam às duas horas da tarde e a seguir descansavam. Sendo esse trabalho muito fatigante, o senhor Pinto não obrigava uma mesma negra a pilar durante dois dias seguidos. Quando a pilagem se conclui, limpa-se o arroz por meio de uma peneira feita de palha e quase chata, que pode ter 2 ½ a 3 palmos de diâmetro. Finalmente, por meio de peneira, separam-se os grãos inteiros dos que foram partidos pelo pilão. Calcula-se que aqui o arroz é produzido de 100 a 110 por 1.
Não devo esquecer de dizer que depois da colheita, pisa-se a palha sob os pés para quebrá-la.
A raiz produz logo rebentos e, no mês de maio seguinte, faz-se a 2ª colheita que dá um terço da procedente. Novos rebentos sucedem-se aos primeiros; contudo, como renderiam pouco, não se permite que cresçam, deixando-se a plantação ao gado, muito ávido pela palha do arroz.
A mandioca não é menos cultivada que esse cereal pelos habitantes do Espírito Santo. Tal como disse, assisti, no mês de novembro de 1818, à plantação da mandioca numa parte dos domínios do Capitão-mor. A terra havia ficado por muito tempo coberta de capoeiras e podia, sob vários pontos de vista, ser considerava virgem. Começara-se, segundo o costume, por derrubar e queimar as matas. Na véspera do dia de plantação, preparou-se o terreno com enxada. No momento de plantar, os negros fizeram no campo largos buracos, pouco fundos e oblíquos, dando uma enxadada, puxando a terra virando-a na extremidade do buraco. O feitor tinha perto de si pacotes de talos de mandioca (maniba), cujas folhas e ramos haviam sido retirados, e cortava cada haste em pedaços de 5 a 8 polegadas. Negras os pegavam e enfiavam obliquamente na terra, que, como disse, havia sido levantada para a extremidade dos buracos.
Ao fim de 3 meses, limpava-se o solo, arrancando-se com a mão as ervas daninhas e, de 3 em 3 meses, se repetia o mesmo trabalho, até a ocasião da colheita, que é costume fazer 18 meses após a plantação.
Ao termo de um ano pode-se arrancar as raízes, mas então elas contêm ainda muita água. Não se usa enxada para limpar os campos onde se haja plantado mandioca, porque as raízes desta planta são pouco profundas e sabe-se que rachaduras, mesmo as mais leves, as fazem apodrecer. Para fazer as estacas tem-se cuidado em só usar ramos que tenham pelo menos um ano.
Eis de que maneira tenho visto preparar a farinha de mandioca na Província do Espírito Santo. Os negros começam por tirar a casca das raízes com uma faca e depois as passam num ralador. Este ralador é de latão e cobre a volta, de uma grande roda móvel, em estreita mesa. O negro gira a roda por meio de uma manivela, e durante esse tempo apresenta as raízes ao raspador, apoiando-o na mesa. Debaixo da roda há um aparador onde a polpa cai. Esta é comprimida a princípio com as mãos; em seguida, para acabar de fazer sair o liquido venenoso que a mandioca contém, como todos sabem, colocam-se numa peneira feita de uma espécie de palmeira, que chamam tipiti.
A extremidade superior da peneira é presa no soalho, a outra a um cabrestante; este gira e por esse modo espicha a rede, que, agindo sobre a polpa, força o resto da água a sair. A polpa, em seguida, é posta a secar em cima de um forno, numa cadeira de terracota, de orla muito baixa e fundo muito raso, onde ela se espalha sem interrupção. A maior parte das caldeiras para mandioca empregadas nos arredores da Vila da Vitória e provavelmente em toda a província vem da Bahia; entretanto, fabricam-se também num lugar chamado Goiabeira, próximo da Capital do Espírito Santo. Essas caldeiras variam um pouco de tamanho, mas, em geral, têm 3 ½ pés ingleses de diâmetro, uma polegada de espessura e quatro de altura.
A farinha de mandioca e a de tapioca são por demais conhecidas para que me alongue muito sobre seu uso. Os luso-brasileiros chamam-na farinha de mandioca, ou de pau.
É misturada ao feijão e a outros pratos a que se costuma juntar molhos e, quando a comem com alimentos secos, lançam-na à boca, com uma destreza adquirida, na origem, dos indígenas e que ao europeu custa muito imitar.
Não posso deixar de considerar a farinha de mandioca inferior à de milho, empregada da mesma forma pelos mineiros, mas há luso-brasilienses que preferem a primeira à segunda e acham mesmo que, misturada a certas substancias alimentícias, é mais agradável que o pão de trigo. Seja como for, deve-se desejar que os brasileiros diminuam o consumo da mandioca em seu país, pois parece que essa planta gosta dos terrenos novos e, pelo menos em certos distritos, ela exaure o solo; conseqüentemente, sua cultura deve acelerar a destruição das florestas. O padre João Daniel mostrou o quanto a cultura da mandioca é prejudicial aos habitantes das margens do Orellana, ou Rio das Amazonas e José de Sá Bittencourt disse que, já em 1798, os habitantes do termo da Vila de Camamu, Província dos Ilhéus, se achavam reduzidos a miséria extrema, porque a mandioca não podia mais progredir na sua região, despojada de matas virgens, que havia outrora com abundância.
Não poderia, sem afastar-me de meu plano, referir-me com minúcias a todos os vegetais de grande e pequena cultura que são objetos dos cuidados dos colonos do Espírito Santo. Entretanto, algumas palavras direi do repolho, porque o modo pelo qual se multiplica prova qual é, sob este clima feliz, o poder da vegetação. Aqui, como noutras partes do Brasil, essa planta não se semeia, mas propaga-se por si. Quando se corta a cabeça do repolho, nascem brotos ao redor do pé; separam-nos, deixando embaixo de cada, um pedacinho do tronco; enfiam o pedacinho de pé na terra e de cada broto logo nasce um novo repolho, capaz de perpetuar a espécie do mesmo modo. Ao chegar o Rei D. João VI ao Brasil, deram-se ordens aos agricultores das cercanias da Vila da Vitória para plantarem trigo e linho, distribuindo-lhes sementes. Mas em geral se dedicaram com pouca vontade a esse ensaio, que pouco resultado teve. Entretanto, como esse resultado não foi de todo nulo, é de crer que, se fizessem novas experiências e se procurassem principalmente a época mais favorável para as plantações, poderiam ser recompensados por algum êxito.
Não há grandes pastagens na Província do Espírito Santo e, portanto, não se pode criar nela muitos cavalos e gado. Em toda a província, o transporte de mercadorias se faz por terra; não se conhece outro veículo além das barcas e das pirogas. Não é, por isso, surpreendente que não se vejam nenhuma parte burros, e os meus foram, por vezes, objeto de curiosidade das crianças. Só se usam cavalos e, como não é costume carregar esses animais e as albardas são muito mal feitas, o cavalo que, extraordinariamente, carrega uma carta até um pouco longe, chega quase sempre ferido. Enquanto em Minas Gerais os mais pobres criam porcos, os agricultores do Espírito Santo desleixam quase completamente esse gênero de criação e se justificam alegando que esses animais destroem as plantações de mandioca.
É verdade que os bacorinhos causam muito dano a essas plantações, quando nelas penetram; no entanto, com menos preguiça, os colonos poderiam cercar os seus campos e defendê-los.
Poderia parecer que os agricultores do Espírito Santo têm inimigos temíveis nos répteis; pois, o senhor Capitão-mor Francisco Pinto disse-me que, desde que possuía sua fazenda, quatorze de seus negros foram mordidos por serpentes venenosas; porém, a exceção de um só, curou todos os seus doentes. Eis o remédio de que fazia uso: no momento em que o homem era picado, fazia-o engolir um punhado de pólvora misturada com o sumo de três ou quatro limões. Em seguida, dava-lhe, por três vezes diferentes, durante o dia, uma taça de cozimento feito com raízes das 3 plantas seguintes: a Aristolochia, chamada milhomens; jarro, outra Aristolochia e a batata de junca, erva de brejo cujas raízes trepadeiras produzem, de distância a distância, tuberosidades e que, segundo a descrição que me fizeram, deve ser uma Juncácea ou uma Ciperácea. Os senhor Pinto tinha o cuidado, também, de esfregar a ferida com a mesma solução a que se juntam, caso se queira, raízes do taririquim, ou fedegoso-do-mato, espécie de Cassia que, se não me engano, tem em geral as mesmas propriedades do C. occidentalis L.
Fonte: Viagem ao Espírito Santo e Rio Doce ano 1974
Autor: Auguste de Saint-Hilaire
Compilação: Walter de Aguiar Filho, julho/2015
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