As expedições e as suas conclusões - Por Estilaque Ferreira dos Santos
Os antigos historiadores do Espírito Santo, inclusive Daemon, haviam adotado o procedimento pragmático e correto de procurar traduzir para a história local os resultados das pesquisas de caráter geral realizadas pela historiografia nacional. Nossa homenagem a eles nesta apresentação, especialmente a Daemon, consistiu em efetuar o mesmo procedimento no que diz respeito à historiografia das últimas décadas a que tivemos acesso.
As evidências que apresentamos – extraídas das fontes que a historiografia recente vem utilizando, a saber, os mapas antigos, os roteiros de viagem mais conhecidos, e parte da historiografia luso-brasileira das últimas décadas – nos permitem concluir o seguinte: o reconhecimento documentado do litoral do Espírito Santo, pelo menos até o início de sua colonização efetiva em 1535 (questão que transcende claramente a tradicional interrogação sobre a “descoberta” do território, levantada por Daemon de forma pioneira), foi seriamente prejudicado pela necessidade que sentiram os navegantes daquela época de contornar os Abrolhos navegando “por fora” deles numa extensão de mais de cem milhas, vindo a aterrar novamente apenas na região do atual Cabo Frio. O hiato que se observa na toponímia da época entre a região dos Abrolhos e a de Cabo Frio corresponde exatamente à maior parte do litoral do atual Espírito Santo, o que significa dizer que essa parte do litoral permaneceu relativamente desconhecida pelas navegações da época, segundo essa mesma documentação. Esse resultado contrasta claramente com algumas das pressuposições e conclusões a que chegara, até aqui, a historiografia capixaba a respeito da questão, em que pese o grande mérito dos nossos ilustres predecessores, que já haviam percebido as dificuldades e lacunas na abordagem do problema.
Daemon, por exemplo, acreditava que a suposta menção aos limites da capitania do Espírito Santo feita na carta de doação de 1534 indicaria que a capitania já fora “descoberta” e explorada antes da chegada do donatário Vasco Coutinho em 1535. Ocorre, em primeiro lugar, que, efetivamente, não existe menção desses limites na carta de doação. Pelo contrário, nela o que se diz é o seguinte:
“...de çimquoenta legoas de terra na dita costa do brasyl as quais se começaram (na parte onde acabarem as cinqüentas léguas de que tenho feito mercê a Pedro do Campo Tourinho) e correram pêra a bamda do sull tamto quamto couber nas ditas çimquoemta legoas. Emtrando nesta capitania quais quer Ylhas que houver athe dez legoas ao maar na fromtaria e demarcaçam destas cimcoenta legoas de que hasy faço mercê ao dito VASCO FERNANDES as quais cimquoemta legoas se emtemderam e seram de larguo ao lomguo da consta e emtraram na mesma largura pello sertam e terra fyrme a demtro tamto quamto poderem emtrar e for de minha comquista... (apud OLIVEIRA, 2008:16-21)”
Essa passagem confirma que a doação da capitania do Espírito Santo em 1º de junho de 1534 foi feita tendo como única referência o suposto limite extremo da capitania anterior de Porto Seguro, doada a Pedro de Campo Tourinho, sem mencionar com precisão qualquer acidente geográfico realmente existente na região (Daemon cita explicitamente o rio Mucuri e o Itabapoana). Assim, partir deste documento, a carta de doação, não se pode absolutamente deduzir que antes desta doação a capitania já teria sido “descoberta” e explorada pelos navegantes portugueses. Acerca do assunto Teixeira de Oliveira já notara acertadamente que não havia, no “que respeita à testada marítima, nenhuma alusão a acidente físico que determinasse as raias do quinhão”, e que “não se sabe qual o processo ou por que convenção se estabeleceu o rio Mucuri como o limite setentrional da capitania.” (OLIVEIRA, 2008:24)
Outra pressuposição fundamental que o próprio Daemon ajudou a contestar, embora se servindo dela para justificar sua hipótese, adotada pela maioria dos historiadores que lhe sucederam, e mais importante ainda do que a primeira, era a de que, se as navegações de reconhecimento tiveram como missão o esquadrinhamento do litoral brasileiro, em toda a sua extensão, no sentido de norte a sul, não poderiam ter deixado de reconhecer também, como parece óbvio, o litoral capixaba. Infelizmente, porém, as evidências que apresentamos com base nos atuais estudiosos da questão sugerem que foi justamente isso que ocorreu: o hiato toponímico que se observa na cartografia da época e os relatos das viagens conhecidas atestam cabalmente que nosso litoral ficou em grande parte inexplorado nos primeiros anos.
Essa última conclusão prejudica, aparentemente, tanto a hipótese de que o Espírito Santo teria sido “descoberto” já em 1501 pela primeira expedição de reconhecimento – como teriam sugerido Varnhagen e Rio Branco e, na esteira deles, os capixabas Ceciliano Abel de Almeida e Mário Freire –, quanto a hipótese de Daemon de que esta “descoberta” se teria dado em 1504, e isso por absoluta falta de referências nos documentos a topônimos localizados no referido litoral.
Disse que a última conclusão prejudica aparentemente as hipóteses tradicionais mas não disse que as afasta completamente, mas por quê?
Contra a hipótese sugerida por Varnhagen de que o chamado rio de Santa Lúcia (ou Santa Luzia) poderia ser o atual rio Doce, poder-se-ia argumentar com um juízo contrafactual: se fosse verdadeira, isso significaria que o famigerado hiato de que tanto se falou aqui estaria localizado entre o rio Doce (ou a baía de Vitória) e a região de Cabo Frio, o que originaria um fenômeno absolutamente inexplicável: afinal, nesse caso, perguntar-se-ia, por que razão teriam inúmeras navegações contornado os Abrolhos, aterrado no rio Doce (o que já é inverossímil) e logo depois deixado de percorrer, à vista de terra, todo esse extenso litoral, incluindo a baía onde se encontra a atual cidade de Vitória? Implausível imaginar que esses viajantes não tivessem avistado e dado informações a respeito de referências tão notórias como as famosas montanhas do Espírito Santo, o Mestre Álvaro, o morro do Moreno, e o Moxuara, de que falava Abel de Almeida.
Mas será que esse juízo contrafactual atestaria cabalmente a tese defendida pelos modernos historiadores de que as evidências são exatamente no sentido de que o último topônimo que dá início ao hiato, ou seja, o próprio rio de Santa Luzia, localiza-se defronte dos Abrolhos e não poderia ter sido confundido com o rio Doce, nem muito menos com a baía de Vitória, e que esses pontos do litoral teriam mesmo ficado completamente desconhecidos no período em questão, inclusive pela expedição de 1503-4, ao contrário do que defendia Daemon?
O relato de suas viagens que Américo Vespúcio nos deixou nas cartas que escreveu é infelizmente completamente negativo no que diz respeito a indicações toponímicas, e essa é ainda hoje uma das causas da maior parte das polêmicas que até hoje mantemos sobre o assunto. Mesmo assim a carta conhecida como La Lettera contém passagem que parece fornecer uma pista digna de exame. Com efeito, na viagem de 1501, depois de terem permanecido num porto por cerca de cinco dias, onde se teriam abastecido e de onde teriam levado consigo dois homens da terra “para que nos mostrassem a língua”, mas que poderiam muito bem ter servido de guias para atravessar os próprios recifes dos Abrolhos, diz Vespúcio que “partimos deste porto, sempre navegando para sudeste à vista da terra, continuamente fazendo muitas escalas, e falando com uma infinidade de gente: e tanto fomos para o austro, que o pólo do meridiano se alçava acima do horizonte 32 graus…” (VESPÚCIO, 1980:129)
A observação de Vespúcio de que eles teriam ido “sempre navegando para sudeste à vista da terra” não comprometeria a hipótese defendida pelos modernos historiadores de que já a primeira expedição teria contornado “por fora” os Abrolhos, tornando-a, portanto, equivocada? E, se fosse possível responder positivamente a essa pergunta, não seria plausível imaginar que a expedição tivesse aterrado mesmo no Espírito Santo, logo depois de transpor os Abrolhos, e criado o topônimo Santa Lúcia ou Santa Luzia, correspondente ao dia 13 de dezembro, e que daí tivesse zarpado em direção ao sul, viajando agora de forma mais tranquila e menos arriscada e aportando no topônimo do “cabo de São Tomé”?
Não fica aí bastante evidente o possível erro cometido pelo historiador Soares Pereira e demais colegas sugerindo que a complicada navegação entre Caravelas e o porto de São Tomé tivesse sido feita navegando-se “por fora”, contrariando o depoimento do próprio Vespúcio de que eles teriam ido “sempre navegando para sudeste à vista da terra”?
E, se a hipótese que estamos sugerindo pudesse ser considerada plausível, não se poderia imaginar que, após a primeira expedição de 1501, as outras expedições teriam mesmo desviado dos Abrolhos, aí sim navegando “por fora” deles, e aterrando tão-somente em algum ponto mais abaixo da região de Campos, fazendo a partir de então viagens sempre num roteiro sem escala entre essa região e a de Porto Seguro e justificando assim a permanência do hiato toponímico existente nos antigos mapas entre Santa Lúcia e São Tomé e a relativa “marginalização” do litoral do Espírito Santo no período?
Esta é a hipótese que defendo hoje com os dados e as informações que foi possível coligir até este momento e que apresento aqui para homenagear o inteligente e esforçado Basílio Daemon que 130 anos atrás colocou o problema com tanta perspicácia. De qualquer forma, não descartamos a hipótese de que outras navegações, quer portuguesas, quer de outros estrangeiros, tenham também freqüentado, e portanto reconhecido, o nosso litoral, no período anterior ao início da colonização em 1535. Nesse caso, todavia, é completamente certo que não deixaram registro desse feito, pelo menos não na documentação a que tive acesso.
Por: Estilaque Ferreira dos Santos
Nota: 1ª edição do livro foi publicada em 1879
Fonte: Província do Espírito Santo - 2ª edição, SECULT/2010
Autor: Basílio Carvalho Daemon
Compilação: Walter de Aguiar Filho, maio/2019
Pero de Magalhães de Gândavo, autor da 1ª História do Brasil, em português, impressa em Lisboa, no ano de 1576
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