A cultura capixaba e o universo
Conta Naly da Encarnação Miranda, nos livros que escreveu sobre a história da Serra, que, certa vez, um deputado federal deste município, cumprindo mandato no Rio de Janeiro – na época capital do país – marcou um encontro com conterrâneos numa famosa praça do Centro, desejosos que estes estavam de conhecer a Cidade Maravilhosa.
O “provinciano” deputado, ao aproximar-se a véspera do encontro, deu-se conta de que estaria havendo um grande comício no local, dia e hora marcados. Sem tempo e sem poder contar com os recursos tecnológicos que tanto facilitam a comunicação em nossos dias, o político serrano passou a se preocupar em como haveria de encontrar os convidados. A praça seria certamente ocupada por centenas de pessoas, o que tornaria muito difícil a demanda.
Chegada a ocasião, muito já havia se passado da hora marcada e o esperado encontro ainda ansiava pelo desfecho. Já de cabeça quente, em busca de solução para o problema, o deputado serrano teve uma brilhante ideia! Decidiu caminhar pela praça com mais calma e vagareza, assoviando, com toda a força dos pulmões e sem perder o tom, a toada “Vapo”.
Parêntese! Vapo, ou “Vapô”, pode ser considerado o “hino não-oficial” da Cidade da Serra, Estado do Espírito Santo. É um maxixe ou dobrado cuja data de autoria e cujo autor são desconhecidos. É tocado pelos serranos, possivelmente há mais de um século, nos momentos de grandes solenidades e na abertura e desfecho da participação da histórica e tradicional Banda Estrela dos Artistas nos festejos de São Benedito na Serra.
É a primeira música a puxar o bloco de “brincantes”, que segue a Banda pelo cortejo. A Banda é precedida pela procissão, o barco Palermo e as inúmeras bandas de congo, compondo os principais elementos da festa. A Festa de São Benedito na Serra é uma das manifestações folclórico-religiosas mais tradicionais e simbólicas do Sudeste do país e maior do Estado.
Feito o adendo (fechado o parêntese), voltemos à história.
O Encontro
O deputado não caminhara meia hora e o agudo assovio, a ventar sobre o vozerio da praça, despertou e surpreendeu um grupo de “perdidos na multidão”. A singular comunicação foi rapidamente intuída pelo grupo! Mas, sem alcançarem a origem do som, passaram igualmente a assobiar a música, constituindo verdadeira “sinfonia de bicos”.
A mais tradicional canção serra em breve reunira os amigos, além de provocar algo mais curioso! Outros serranos, ali despercebidos, mas igualmente presentes no Rio naquela ocasião, “capturados” pelo assovio, juntaram-se ao grupo, proporcionando verdadeira festa de capixabas em plena praça carioca.
Os presentres jamais esqueceram o ocorrido, passando o relato do inusitado encontro através de gerações.
Raízes
Dessa história real, que valeria um filme, o que mais se destaca não é tanto a surpresa do encontro ou mesmo o surpreendente recurso usado pelo antigo deputado, mas a força do símbolo de identidade cultural imantado na toada “Vapo”, que os unira naquele momento. Mesmo em meio ao mar de gente, num dos berços da cultura nacional, somente eles poderiam entender aquele som, aquela “linguagem” que os fizera únicos naquele instante e local.
Hoje, numa época em que nossa identidade cultural (como brasileiros e capixabas) corre o risco de extinção, é justíssimo lutar pela preservação dos laços identificadores de todas as comunidades e povos, em todas as suas nuances geográficas e geopolíticas.
Pois é a localidade cultural, bem vivida e compreendida, que nos destaca no Todo, é o que nos faz de fato participar do Universo, ou seja, “da unidade de todas as coisas”. Ser local é abrir uma janela para o mundo, por onde, com nossos próprios olhos, somos possibilitados a observar a Vida, dentro da Vida.
E é isso que nos permitem em verdade, evoluir.
Autor: Fábio Luiz Miranda Boa
Fonte: Revista Zênite. Edição 25, nov 01/ dez 01, janeiro 2012
Compilação: Walter de Aguiar Filho, agosto/2012
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