O Liceu: uma fábrica que virou escola - Por Gabriel Bittencourt
Desmembrado da vila de Itapemirim, no dia 25 de março de 1867, Cachoeiro mal ultrapassava de três mil habitantes no momento de sua emancipação.
Dividido pelo rio Itapemirim, tudo indica, o povoado nasceu do obstáculo natural que se concretiza no encaichoeiramento do rio, onde se estabeleceu o primitivo quartel de pedestres, ponto obrigatório de parada dos raros tropeiros que desciam do sertão imenso e iam se acomodando nessas paragens e plantando suas lavouras.
Por muitos anos, ainda, foram alguns dos habitantes de Itapemirim os grandes proprietários de toda a terra marginal ao rio, onde exerciam soberania absoluta. Entre estes destacavam-se os Gomes Bittencourt e os Silva Lima (cujo chefe era o barão de Itapemirim).
Da vila de Itapemirim, vinham estendendo suas propriedades até Cachoeiro. Os Gomes Bittencourt (os Areas), adversários políticos dos Silva Lima, pela margem esquerda, até o atual bairro do Aquidabã, e o Barão, toda margem direita, até as terras do Bananal (próximo a Duas Barras).
Antônio Marins (Minha terra meu município) ressalta a importância que teve o baixo Itapemirim no século passado:
"...de um e do outro lado do rio existiam vinte fazendas de açúcar em sua maioria movidas a vapor. Até 1887 essas fazendas abasteciam de açúcar e aguardente toda a província e exportava ainda em grande quantidade para a praça do Rio de Janeiro."
O café e a cana exerceram considerável influência na arrecadação do sul da província, e a elite rural concentrava seus esforços nessas duas culturas. Acontece que, nessa época, o açúcar continuava sua trajetória de decadência, de que se ressentia o baixo Itapemirim, enquanto o café, produzido na zona agrícola de Cachoeiro de Itapemirim, permitia mais investimentos na ampliação das forças produtivas.
Data de 1846 as primeiras casas comerciais, no coração da vila, próxima à antiga matriz do Senhor dos Passos, sede da freguesia de São Pedro de Cachoeiro de Itapemirim; seguindo a urbe sua trajetória, avolumando-se as residências pela rua Moreira, marginal ao rio, ou pelas transversais, divido à necessidade de expansão da cidade e/ou fuga das cheias periódicas, que punham em polvorosa a população. Mas Cachoeiro terminou por se tornar o mais importante centro do sul-capixaba.
Essa hegemonia econômica de Cachoeiro de Itapemirim, desde o início, formou uma consciência urbana compatível com o final do século, redundando daí um movimento pelas reformas sociais, políticas e econômicas sem precedentes. Ali recrudesceu o movimento abolicionista, ali, também, reuniu-se, em 1888, o primeiro congresso republicano da província do Espírito Santo. Foi ainda em Cachoeiro de Itapemirim que o presidente Jerônimo de Souza Monteiro, 1908-1912, tentou implantar o primeiro "Parque Industrial" do estado. Depois vieram os bondes, 1925, e uma intensa vida cultural de que tanto se orgulhavam os cachoeirenses.
É dentro deste ambiente renovador que atingiu o Espírito Santo no Governo Monteiro, que se propiciou um dos momentos mais favoráveis às letras cachoeirenses, com a criação do principal estabelecimento de ensino primário da cidade, o Bernardino Monteiro, etapa ideal de acesso posterior ao Liceu.
Mas como se sabe, os atos do Governo 1908/12 far-se-ão sentir ainda mais na infraestrutura econômica do Espírito Santo.
A cultura do café que dera bons frutos para a administração pública no final do século XIX, já começava a apresentar os primeiros sinais de sua debilidade. Não era outra, porém, a situação nacional.
A fragilidade da estrutura econômica brasileira, caracterizada também pela monocultura, fazia-se sentir, sensivelmente, de acordo com as oscilações do mercado internacional, Mas para o Espírito Santo, onde o café chega a representar 94,33% de sua arrecadação, algumas vezes, os períodos de baixa foram caóticos.
Por consequência, mesmo no seio da elite cafeicultora espírito-santense, havia permeabilidade às ideias da necessidade de criação de mercado para uma agricultura diversificada e que essa diversificação poderia ocorrer a partir da criação de um "distrito industrial" (para absorção da matéria-prima agrícola diversificada do café). O amadurecimento desta ideia concretizar-se-á no Governo Monteiro.
Originário de uma importante família de cafeicultores de Cachoeiro de Itapemirim, Jerônimo Monteiro, como sabemos, desde cedo, dirigiu sua plataforma política para interferência do Estado na economia, com vistas à implantação de inúmeras fábricas no vale do Itapemirim. Assumindo o governo, em 1908, algum tempo depois, celebrou inúmeros contratos com particulares para construção e montagem de indústrias, algumas destas no entorno do antigo centro da cidade de Cachoeiro, nos arredores da primitiva matriz de Nosso Senhor dos Passos: As fábricas de papel e cimento, na rua Moreira.
Sem obediência às condições do mercado regional, porém, tais implantes industriais não surgiram como em outros estados, normalmente voltados para as necessidades locais, na forma de atividades complementares à atividade predominante. O esforço industrial do Espírito Santo objetivara o mercado nacional, alvo difícil de ser atingido, sobretudo, se considerarmos que, quando as fábricas de maior porte foram concluídas, após a 1ª Guerra Mundial, já se consolidavam as indústrias do eixo Rio-São Paulo, melhor estruturadas. Além do que, a despeito da dinâmica do café, não se conseguiu formar uma base urbana no Espírito Santo, como nesses dois polos nacionais. Não havia condições infraestruturais para um desenvolvimento manufatureiro expressivo: — capitais, mão-de-obra especializada, mercado, e até mesmo matéria-prima. A agonizante TECISA é bem um exemplo disto, lutando até bem pouco tempo com a carência de algodão.
Outros setores como cimento, madeira, açúcar, álcool, sal, óleo, energia elétrica, papel, raros corresponderam às expectativas dos estímulos governamentais, remunerando os capitais neles investidos; fechando-se fábricas, paralizando-se empreendimentos, arrendando-se unidades produtivas, ou alienando-se equipamento, como no caso da fábrica de papéis da rua Moreira. Destarte, esta política, praticamente isolada de "Capitalismo de Estado", terminou por ficar nos justos limites da ação governamental, recanalizando-se os investimentos públicos e privados para o setor cafeeiro.
Assim sendo, nasceu o Liceu, instalado no prédio da primitiva fábrica de papéis, na rua Moreira nº 170, depois do desmonte e alienação do maquinário daquele empreendimento industrial. É parte, portanto, do conjunto de edificações da Rua Moreira que compunham os projetos industrializantes de Jerônimo Monteiro.
A fábrica de cimento, um pouco mais abaixo do Liceu, ainda funcionou intermitentemente até sua transferência para a fazenda Monte Líbano (antiga propriedade da família Monteiro), mas a fábrica de papéis, em 1930, com a Revolução, já servia para alojamento das tropas acantonadas em Cachoeiro de Itapemirim. Foi nessa época, algum tempo mais tarde (1934), que se decidiu criar uma escola normal e um ginásio na cidade, optando-se pelo formidável prédio da fracassada fábrica de papéis daquela rua.
Remodelada e adaptada em escola, a tradicional instituição nada mais lembra o antigo empreendimento industrial, nem mesmo a depredação que sofreu com a ocupação pela tropa revolucionária.
Segundo Waldemar Mendes de Andrade, o título Moniz Freire (Colégio Estadual e Escola Normal Moniz Freire, na minha época), a princípio foi dado apenas à Escola Normal, em homenagem ao ex-presidente do estado José de Mello Carvalho Moniz Freire.
A denominação de Liceu (que já funcionava desde sete de setembro de 1936) só foi incorporada a ambos os educandários a partir de 3 de janeiro de 1937, nome consagrado por gerações de cachoeirenses que passamos pelos seus bancos, de grata recordação.
A Tribuna — Vitória (ES), 26 de junho de 1987.
Fonte: Notícias do Espírito Santo, Livraria Editora Catedra, Rio de Janeiro - 1989
Autor: Gabriel Bittencourt
Compilação: Walter de Aguiar Filho, março/2021
Conhecendo a história conseguimos entender o nosso tempo
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