A literatura do séc. XVI: a presença de viajantes e jesuítas
A literatura sobre o Brasil inicia-se com a carta de Pero Vaz de Caminha, escrita em Porto Seguro (BA) em 1º de maio de 1500. Esta tem um valor histórico documental, como registro da memória do nascimento de um país, e algum valor literário, posto que nos fala de uma visão de mundo, um tipo humanista da renascença portuguesa, produto direto de uma cultura ainda incompleta, já que aberta a possíveis encontros.
A Carta de Caminha é o modelo primeiro e mais preciso de conceitos que se tornarão constantes nas outras narrativas testemunhais que se seguirão, naquele século e nos seguintes, e que formariam uma mitologia cultural do Brasil e do brasileiro: “paraíso terreal”, “mundo novo”, “bom selvagem”.
Uma marca constante na literatura sobre o Brasil iniciada pela Carta de Caminha é a visão idílica do paraíso refletida na descrição da maravilhosa fertilidade do solo, na docilidade de seus habitantes, a quem se deveria catequizar para dominar. A ambição das riquezas, sobretudo o ouro, mascarava-se sob o “levar a fé cristã aos gentios”.
Nos trinta primeiros anos da descoberta, o Brasil ficou em segundo plano junto aos portugueses. Duas prioridades foram as viagens asiáticas e as costas da África. No Brasil só lhes interessavam o pau-brasil, a primeira riqueza a ser devastada, e os papagaios, pelo exotismo e a beleza. Somente em 1532 começa de fato a posse portuguesa no Brasil, com a colonização. Em 23 de maio de 1535, Vasco Fernandes Coutinho aporta a sua caravela “Glória”, trazendo 60 pessoas, na região onde fundaria a vila do Espírito Santo, que se tornaria a freguesia mais antiga do Brasil ao sul da Bahia.
Em 1540, a Capitania do Espírito Santo prosperava com alguns engenhos de açúcar, não se contentando com a simples exploração do pau-brasil. Com o aparecimento das primeiras riquezas, a corte começou a nomear seus funcionários: em 1546, vieram Belchior Correia, para escrivão da Câmara, e Rui Fernando, para provedor e contador das rendas e direitos da Capitania. Dez anos após a vinda de Coutinho, 1545, foi instituída a freguesia do Espírito Santo, com a vinda de um capelão. Em 1550, dois escravos (índios) foram remetidos para o Reino como parte do ordenado do vigário da Capitania do Espírito Santo.
A vila de Nossa Senhora da Vitória foi fundada na ilha antes chamada Duarte de Lemos, no alto da colina, onde os jesuítas, vindos com Tomé de Souza, em 1549, estabeleceram sua residência. Dois eram os principais inimigos: os índios, por trás, e os invasores vindos pelo mar. Tomé de Souza pôde constatar que o Espírito Santo, pela posição privilegiada, terras, águas e clima, era a melhor capitania; no entanto, era também, a mais arruinada.
Leonardo Nunes foi o primeiro jesuíta a doutrinar os índios escravos, em 1549, seguido pelo padre Pero de Souto, Afonso Brás e Simão Gonçalves. Este apregoava ser a terra do Espírito Santo “a melhor e a mais fértil de todo o Brasil”.
Os jesuítas, liderados por Padre Manoel da Nóbrega, foram os iniciadores da literatura brasileira. Nóbrega, com o seu Diálogo sobre a conversão do gentio, escrito em 1557, numa forma literária clássica, inicia a literatura brasileira, ainda que nela predominasse um interesse catequético, religioso ou informativo. Como superior dos jesuítas, Nóbrega visitou o Espírito Santo, deixando suas impressões: “E partiu, visitando algumas capitanias da costa até chegar ao Espírito Santo, capitania de Vasco Fernandes Coutinho, onde achou uma pouca de gente em grande perigo de serem comidos dos índios e tomados dos Franceses (...). Esta capitania se tem por a melhor cousa do Brasil depois do Rio de Janeiro: nela temos uma casa, onde se faz fruito com Cristãos e com escravos, e com uma geração de índios, que ali está que se chamam do Gato, que aí mandou vir Vasco Fernandes do Rio de janeiro: entendeu-se também com alguns Tupiniquins, e se Nosso Senhor der tão boa mão ao Governador à tomada como lhe deu em todas as outras partes, que as ponha a todos em sujeição e obediência, poder-se-á fazer muito fruito, porque este é o melhor meio que pode haver para a sua conversão”.
No entanto, foi o Padre José de Anchieta (1534-1597), vindo em 1553, com o segundo governador-geral, Duarte da Costa, que com suas produções em português, espanhol e tupi-guarani, quem inaugurou a literatura brasileira no Espírito Santo. Nesta capitania, onde passou os últimos anos de sua vida, estrearam oito das doze peças teatrais que escreveu, os autos, com fins catequéticos. Tendo como cenário a Vila de Vitória, compôs os seguintes poemas: “De São Maurício” (antigo padroeiro da cidade), “Ao Padre Costa” (superior da casa do Espírito Santo), “Quando, no Espírito Santo, se recebeu uma relíquia das onze mil virgens”, (em que assim se refere a atual capital do estado: “Da Senhora da Vitória, /Vitória sou nomeada. / E, pois sou de vós amada, / d’onze mil virgens na glória / espero ser coroada.”), “Ao P. Bartolomeu Simões Pereira”, dentre outras.
Uma das mais longas peças teatrais de Anchieta, escrita em tupi, de 1589 a 1594, é “Na aldeia de Guaraparim”. Nela fornece dados etnográficos, sociais e antropológicos, como o comportamento dos casais, a adoção de muitos nomes, à moda indígena, além de indicações geográficas de aldeias não conhecidas na documentação da época. Curioso é o relato que faz das crianças indígenas, que assaltam os incautos jesuítas: “De Reritiba, minha terra eu venho. / a todos os meus amiguinhos / eu disse que vinha celebrar / este grande dia santo. / Trouxe estas ostras / com elas te podes banquetear. / No caminho, os meninos / me assaltaram, / para comê-las todos de mim. / Em todo o caso, tirei estas / dos malvados e corri. / Tomara que hoje não haja brigas comigo”.
Reritiba, atual Anchieta, Guarapari e Vitória, foram antigas referências para as peças compostas por Anchieta, assim como por seus poemas escritos à Virgem. Baseado, ainda, na tradição medieval, com a feitura dos seus versos em redondilhas populares e seus autos de fundo catequético, Anchieta foi o introdutor, em terra brasileiras e capixabas, da tradição literária ibérica. Sua obra possui valor literário, ainda que marcada pela intenção moralizante, e constitui as nossas raízes literárias. Anchieta pode ser considerado o primeiro poeta capixaba, como o fez Elmo Elton em sua antologia.
A literatura informativa sobre o Brasil sempre faz referências ao Espírito Santo e à excelência de suas terras e à fertilidade de suas produções. Pero de Magalhães Gandavo, em seu Tratado da terra do Brasil, de 1570, no cap. VII, descreve a Capitania do Espírito Santo, o melhor açúcar do Brasil produzido em seu único engenho e a abundância de rios, peixes e mantimentos. Em História da Província de Santa Cruz, de 1576, afirma: “E assim é esta a mais fértil Capitania, e melhor provida de todos os mantimentos da terra que entre algumas que haja na costa”.
Fernão Cardim, em sua “Narrativa epistolar de uma viagem em missão jesuítica da Bahia a São Vicente”, de 1583 a 1590, indo por visitador o Pe. Cristóvão de Gouveia, faz um dos mais completos e pitorescos retratos do Brasil.
Gabriel Soares de Souza publica, em 1587, seu Tratado descritivo do Brasil, talvez a obra mais admirável do século XVI, na opinião de Varnhagen. Produto do próprio exame, observação e pensar, com um caráter enciclopédico, nela se encontram precioso dados para a compreensão do início da formação da terra e do povo brasileiro.
Literatura informativa ou documental, catequética ou religiosa, em prosa ou verso, carta, diálogo ou auto, a literatura do século XVI alicerça a base da literatura brasileira verdadeiramente iniciada com o Barroco, no séc. XVII. Sobretudo a literatura jesuítica reflete as contradições de sua cultura terminal, ainda na Idade Média, hostil ao negro e sem respeitar as tendências naturais do índio brasileiro, obstinada em sujeitar homens de cultura paleolítica a um ensino altamente acadêmico.
Todavia, os textos que nos legaram os escritores jesuítas do século XVI e os viajantes que escreveram sobre a terra recém-descoberta refletem a colonização portuguesa, capaz de defender-se contra poderosas economias europeias da época. Preocupados em contestar o tipo de sociedade que se formava nos trópicos, calcados na superioridade branca e escravocrata, os jesuítas falharam em seus propósitos de criar um estado religioso, mas deixaram toda uma história para ser lida e contada.
O Espírito Santo, pela sua privilegia da posição geográfica no mapa brasileiro, exuberância tropical, clima temperado, abundância de rios e peixes, terras férteis, foi o cenário ideal das lutas pela conquista da terra, de seus habitantes originais e de suas riquezas. No século seguinte, com a descoberta de ouro nas Minas Gerais, acentua-se a decadência do Espírito Santo, já iniciada com o fracasso de Vasco Coutinho e seus descendentes.
Os principais textos da literatura brasileira do século XVI, escritos no/ ou sobre o Brasil, referiam-se ao Espírito Santo. Apesar da previsão de Gandavo de que o Espírito Santo seria uma das principais províncias do Brasil, tal fato não se confirmou. Durante 400 anos, nosso Estado viveu à margem dos centros e sua literatura, pobre e insignificante apenas reflete essa marginalidade periférica.
Fonte: Literatura do Espírito Santo – uma marginalidade periférica, 1996
Autor: Francisco Aurélio Ribeiro
Compilação: Walter de Aguiar Filho, agosto/2012
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