A vida dos Keyes no Brasil - Imigração Americana
A vida dos Keyes no Brasil
Julia Louisa Hentz Keyes era filha da novelista Caroline Lee Hentz, casada com John Washington Keyes, dentista e combatente veterano da Guerra Civil pelos Estados Confederados da América. Julia e seu marido seguiram para o Brasil após o término do conflito que cindiu os Estados Unidos da América entre 1861 e 1865. Instalaram-se em Linhares, no Espírito Santo, onde permaneceram por cerca de um ano, entre junho de 1867 e maio de 1868 e, posteriormente, no Rio de Janeiro, de onde retornaram aos Estados Unidos em 1870.
Os Keyes possuíam relações com a família Gunter, que, por meio de seu patriarca, Charles Grandison Gunter, havia decidido estabelecer-se na região da então vila de Nossa Senhora da Conceição de Linhares. John Washington Keyes era um pequeno proprietário, possuía apenas dois escravos domésticos nos anos imediatamente anteriores à guerra. Entretanto, as vinculações ideológicas de sua família estavam profundamente marcadas pelo ideal escravista sulista, e a decisão de imigrar ao Brasil foi um reflexo de suas aspirações.
O manuscrito inédito de 1874, Nossa vida no Brasil, de mais de duzentas páginas, traz as impressões de Julia Keyes sobre o período em que sua família esteve no Brasil logo após a Guerra Civil dos Estados Unidos. Trata-se de uma das principais fontes para o estudo da imigração confederada para o Brasil, bem como obra de importância ímpar como fonte descritiva da província do Espírito Santo, em especial da região de Linhares, do século XIX.
A autora fez diversas observações sobre a beleza inigualável da região. Acostumada às amenidades de Montgomery, no Alabama, Julia Keyes demonstrou fascinação pela área selvagem do norte da Província do Espírito Santo. No local, havia uma profusão de aves de diversas cores, que eram domesticadas e, em pouco tempo, estavam sobre osombros das crianças, como periquitos, araras e papagaios. Seus filhos também se encantaram pelos saguis de estimação de alguns brasileiros.
Além de observações sobre a fauna e a flora locais, Julia Louisa Hentz Keyes registrou alguns aspectos interessantes sobre as relações sociais no Brasil, enfatizando seu estranhamento em torno das diferenças em relação às existentes nos Estados Unidos. Talvez o mais surpreendente seja aquele que os imigrantes experimentaram sob o ponto de vista da desigualdade de gêneros.
Uma das mais expressivas distâncias culturais mencionadas por Julia é a posição da mulher na sociedade brasileira frente àquela que ocupava na sociedade sulista. O estranhamento da autora é muito semelhante ao que hoje realizamos frente às sociedades muçulmanas fundamentalistas.
Saltava-lhe aos olhos a existência de uma profunda desigualdade entre os sexos no Brasil, já que às mulheres nem ao menos era permitido que deixassem suas casas desacompanhadas, o que as americanas faziam sempre que lhes era conveniente. No Rio de Janeiro, as mulheres nunca saíam sozinhas para fazer compras, e tinham a escolta constante de cavalheiros. Em Linhares, as mulheres nunca saíam de casa sem uma escrava por perto, nem mesmo para visitar um vizinho próximo.
Outra desigualdade patente entre gêneros que Julia fez questão de frisar em seu livro foi a inexistência de escolas para instrução das meninas na vila de Linhares. Inexistia qualquer instituição educacional para as garotas, mas teria sido a chegada dos americanos à vila que despertou nos brasileiros o desejo de realizar mudanças. Na visão de Julia, a posição das brasileiras era inferior à de “... seus senhores e mestres, e nós presumimos que elas estavam satisfeitas em se contentar com o destino a elas reservado.”
O destino reservado às brasileiras, de acordo com Julia, não seria circunscrito à privação do acesso à educação, mas haveria também um desequilíbrio no esforço realizado por homens e mulheres nas tarefas do dia a dia. Enquanto os homens fumavam cigarro na frente de suas casas, as mulheres traziam água em talhas de barro sobre suas cabeças sem contestar seus maridos.
O próprio líder da colônia é mencionado pela historiografia norte-americana como um dos pioneiros no que tange aos direitos femininos no sul dos Estados Unidos, o que nos sugere uma distância ainda maior entre a posição das mulheres da colônia confederada e as brasileiras. Charles Grandison Gunter foi autor de um projeto de lei na assembléia estadual do Alabama, a chamada “lei Gunter”, que reduzia os direitos do marido sobre a propriedade herdada pela esposa. A lei é considerada um dos marcos do movimento pelos direitos das mulheres no Estado
Outro episódio marcante, que causou choque aos Keyes, concerne à dificuldade de contratação de uma lavadeira. Julia acreditou que contrataria facilmente alguém para realizar serviços domésticos, especialmente para lavar roupas, já que observou em Linhares muitos negros livres, e diversas lavadeiras ao longo das margens do rio. Mas não conseguia contratar uma empregada por mês, ou mesmo por dia. Julia Keyes e suas filhas tiveram que lavar suas próprias roupas. A interpretação de Julia sobre a dificuldade de se contratar uma empregada doméstica, posteriormente elucidada por meio do contato com os brasileiros, não sem espanto, é reveladora: as pessoas viam como um descenso em sua posição social trabalhar para os americanos, que, por outro lado, observavam a posição social pela cor da pele.
Sob o olhar de um norte-americano, um mulato ou pardo era considerado negro. Enxergavam de maneira dicotômica, daí a dificuldade em observar quem eram as senhoras e quem eram as escravas, enquanto os brasileiros observavam maior variedade de tons de pele, em função da ampla miscigenação. Os norte-americanos procuravam interpretar a sociedade brasileira apenas pela cor da pele, utilizando o critério de estratificação da sociedade sulista dos Estados Unidos, o que os impedia de compreenderem os motivos pelos quais os negros livres se negavam a trabalhar para eles, os brancos.
Ao mencionar o trabalho doméstico executado com suas próprias mãos, Julia dá sinais de que esse não era seu costume nos Estados Unidos. O sentimento de vergonha demonstrado pelas filhas de Julia nas margens do rio Doce enquanto lavavam roupas confirma que aquela era uma situação nova para a família. Sentiam-se ridículas ao imaginarem como as garotas nos Estados Unidos ririam por vê-las na margem do rio, bem como em relação aos próprios membros da colônia.
Por ser à época uma área pouco povoada e distante da fronteira agrícola da lavoura comercial do café no Espírito Santo, localizada nesse período ao sul da província, havia dificuldades na obtenção de transporte e de mão de obra. A presença indígena na região e, principalmente, o temor que causavam na população, é um indicativo desse relativo isolamento.
Julia descreveu a chegada de um grupo de índios a Linhares. Enfatizou que eram seres completamente desprovidos de vestuário, usando apenas uma faca presa ao pescoço por uma corda, suas cabeças perfeitamente carecas, a pele da cor de um camundongo jovem, seus corpos grandes e os membros pequenos. “As coisas mais feias que se pode imaginar”.
Todos se trancaram em suas residências, inclusive os imigrantes, que estavam morando em casas pertencentes a brasileiros, provisoriamente. O marido de Julia, John Washington Keyes, não estava em casa, e o medo havia tomado sua esposa e filhos. Descreveu-os como “selvagens bêbados”, e seu líder como alguém de “raça mais elevada”, já que não tinha as mesmas características físicas dos índios e falava português.
Mas havia um grupo de brasileiros com quem os imigrantes possuíam certa identificação. Os confederados eram muito próximos dos brasileiros influentes de Linhares, em especial a família Calmon, uma das mais ricas da região.
Foram realizadas festas e bailes, em um primeiro momento na casa dos Keyes, que era de propriedade do senhor, Joaquim Calmon. Participaram alguns dos brasileiros mais influentes e, dias depois, foram os Calmon quem receberam grande número de confederados em sua ampla residência.
O período de permanência na vila de Linhares seria curto, já que os imigrantes intentavam criar uma comunidade e, com o tempo, um núcleo urbano próximo à lagoa Juparanã. Alguns como Gunter e McIntyre, possuíam casa na vila e terras próximas aos Keyes.
É a partir da mudança para as margens da lagoa Juparanã que o manuscrito de Julia narra uma série de dificuldades pelas quais passou sua família, em especial quanto à adaptação a uma vida em meio à mata selvagem, com pouco acesso aos confortos que os Keyes certamente possuíam em Montgomery.
A angústia de morar em uma casa improvisada, que antes servia como galinheiro, as enormes goteiras no teto, o incômodo dos insetos e a ansiedade em relação ao possível término de uma casa mais confortável é contrastada com a grandiosa descrição da paisagem, de ares paradisíacos e edênicos. Sentiam-se em privação e, ao mesmo tempo, maravilhavam-se com a capacidade dos brasileiros viverem sem qualquer conforto em suas casas.
A beleza da floresta também foi enfatizada no capítulo intitulado “A assembleia dos macacos”, no qual Julia descreveu o que chamou de “pesadelo Darwiniano”. Certo dia admirava a bela floresta com suas inúmeras espécies de aves emplumadas em lindas cores e diversos macacos que emitiam sons na mata. Sonhou que os macacos conversavam entre si sobre uma de suas belas damas que havia sido cozida e devorada após ter sido abatida pelas armas dos americanos. Discutiam uma possibilidade de paz desde que Julia lhes entregasse um de seus próprios filhos.
De fato, os Keyes caçaram macacos para alimentarem-se durante o período em que estiveram na lagoa Juparanã, além de outros animais, como patos selvagens e papagaios, que aparentemente existiam em profusão na área. Julia demonstrou arrependimento em se alimentar dos primatas, com a sensação de ter praticado canibalismo.
A vida nos ermos levou-os a praticar a caça para obterem a subsistência, bem como a realizar trabalhos manuais. Por diversas vezes, Julia enfatizou a novidade do trabalho manual, que descreveu como prazeroso dentro daquelas circunstâncias, como o preparo de folhas de palmeira para a cobertura da cozinha de sua nova casa. Entre aqueles que não possuíam escravos no Brasil, como os Keyes, o desbastamento da floresta tropical para a formação de novas áreas de cultivo por estudantes e profissionais liberais desacostumados com o trabalho ao ar livre era um dos principais desafios.
Os Keyes possuíam poucos recursos para adquirirem escravos para o trabalho da lavoura no Brasil. Detentores de pouca propriedade mesmo no Alabama, a posição da família Keyes era singular em face ao restante da colônia, em especial seus membros mais abastados, como os Gunter, que adquiriram ao menos 78 escravos, além do capitão Johnson, James A. Roussell e Lange, confederados que possuíam escravos em Linhares.
Uma das filhas de Julia demonstrou enfado pelas condições da família na lagoa Juparanã, em especial por ter que lavar roupas, algo que demonstrava não lhe ser familiar nos Estados Unidos. Sua felicidade dependia da nova casa que estava sendo erguida pelos brasileiros, de as árvores frutificarem, de o jardim florescer e de uma escrava para realizar os serviços domésticos.
No cenário romântico imaginado por Jenny Keyes, as magnólias floresciam enquanto os escravos domésticos tratavam-na por missus Keyes. O tom do manuscrito é de uma experiência permeada por agruras, privações e dissabores, em grande medida envolvendo situações nas quais a inexistência de um escravo doméstico parece ser um enorme óbice a uma vida digna.
Quando Jenny e outros membros da família contraíram febre amarela no início de 1868, o capitão Johnson ofereceu ajuda aos Keyes. Enviaria uma escrava dentre aqueles que havia comprado do Rio de Janeiro, para realizar os serviços domésticos. Na visão de Jenny, as escravas realizavam qualquer trabalho, e a que o capitão Johnson enviou tinham-nas aliviado, na medida em que a doença não permitia a realização das tarefas domésticas, o que fez com que se sentissem extremamente gratos.
Em maio de 1868, a família Keyes deixava a lagoa Juparanã, logo depois que um dos filhos do casal, George Keyes, adoeceu. Partiram rumo ao Rio de Janeiro, onde permaneceriam até retornar aos Estados Unidos, em 1870. Entre as famílias que deixaram o local nesse período estavam os McIntyre, os Miller, o senhor Davis, além do Dr. Johnson, o capitão Johnson, e outros.
O período em que o governo provincial do Espírito Santo tomava providências para tentar mitigar o sofrimento da população de Linhares acometida pela febre amarela coincidia com aquele do capítulo Rompendo a colônia. Desagregava-se assim a colônia confederada de Charles Grandison Gunter e, a despeito dos esforços de Charles Nathan em trazer mais imigrantes para a área, apenas algumas famílias e homens solteiros permaneceram.
As aspirações de ascensão social dos Keyes
Os Keyes eram um dos poucos membros da colônia Gunter que não possuíam um plantel significativo de escravos nos anos imediatamente anteriores à guerra. A exceção, no entanto, não contraria a idéia de que os confederados buscavam reproduzir o velho sul escravista no Brasil, mas, ao contrário, reafirma-a: seu sonho era tornar-se um fazendeiro no Brasil, assim como seus conterrâneos moradores de Linhares o eram, nos Estados Unidos, antes do final da guerra.
Em carta ao seu irmão, residente nos Estados Unidos, datada de 18 de junho de 1868, John Washington Keyes descreveu sua situação no Rio de Janeiro. Havia deixado Linhares com sua família e se estabeleceu em uma pequena ilha que adquiriu na baía da Guanabara, antiga propriedade do general confederado Alexander Travis Hawthorne, chamada Dixie. Era uma referência ao que era considerado o hino nacional dos Estados Confederados da América “I wish I was in Dixie”.
Em suas cartas aos seus conterrâneos, Keyes explicita seu desejo de abandonar a prática da odontologia. Por mais rentosa que fosse, entendia-a como algo temporário, pois seus planos mais ambiciosos envolviam tornar-se um fazendeiro. Desse modo, buscava obter uma fonte de renda baseada na reprodução do mesmo padrão observado entre os imigrantes confederados nos Estados Unidos e no Brasil: obter terras e escravos.
Aqui ressaltamos um mecanismo analisado por Florestan Fernandes a respeito da ordem social escravocrata brasileira, na qual “... a escravidão irradiou-se por toda a ordem estamental: todos os estamentos, dos nobres e dos homens bons aos oficiais mecânicos viam nos escravos ‘os seus pés e as suas mãos’. (...) Os que não são nem escravos nem libertos adotam, de uma forma ou e outra, a ótica senhorial.”. Há um mecanismo análogo entre os imigrantes sulistas, para os quais também vigia a lógica apontada por Florestan, qual seja: em uma sociedade escravista, todos os não escravos são virtualmente senhores. Destarte, a postura dos Keyes nada tem de irracional se analisada sob o cenário do sistema escravista sulista.
Diante da soma elevada de recursos investidos em terras e escravos possuídos por seus pares, não seria desarrazoado afirmar que, enquanto Keyes veio ao Brasil para buscar dar continuidade às suas possibilidades de ascensão social no âmbito de uma sociedade escravista, seus vizinhos tencionavam retornar à posição que possuíam antes do término da Guerra Civil Americana. A escala de valores, prestígio e aspirações de ascensão social do grupo de imigrantes confederados estavam permeados pelo habitus escravista, fossem eles pequenos médios ou grandes proprietários.
Sob esse contexto, tornam-se mais claros os motivos de ansiedade e angústia de Jenny, Julia, John e o restante da família Keyes em meio à Mata Atlântica. A privação, a ausência de conforto e a insatisfação possuem uma relação muito íntima com a sua sociedade de origem, enquanto referência daquilo que se constitui uma vida digna. Mas deixemos agora que o leitor possa percorrer a trajetória dos Keyes no Brasil.
Fonte: Nossa vida no Brasil – Imigração Norte-Americana no Espírito Santo 1867-1870
Autora: Julia Louisa Keyes
Tradução e notas: Célio Antônio Alcântara Silva (Historiador)
Publicação: Arquivo Público do Espírito Santo, 2003
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